ODS 1
A dor de contar as mortes indígenas pela covid-19
Coiab criou sistema de contagem de infectados e mortos na pandemia, expondo a pouca ação do governo: número de óbitos chega a 667
Izabel Santos*
Manaus (AM) – Valéria Paye relata que contar as vítimas da Covid-19 tem sido o trabalho mais doloroso da sua vida. “Só eu sei o que estou passando…” desabafa, por telefone, na entrevista à Amazônia Real. Depois, após oito segundos de silêncio, ela dá um suspiro: “É difícil falar; é dificílimo falar disso”, admite, em lágrimas, a assessora política da a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira.
Desde março, a Coiab se organizou para buscar informações sobre a pandemia do novo coronavírus de distintas formas e passou a publicar um boletim com os dados captados pela rede coordenada por Valéria Paye. “Eu nunca deixo de pensar como essa doença trouxe tanta dor, tantas perdas. Acompanhar a evolução da doença, entre nossas lideranças, professores e pessoas que foram referência para o movimento indígena é muito doloroso”, relata a assessora da Coiab. “Eu sofro até hoje, porque não consigo relaxar e não pensar em como essa doença chegou tão agressiva, principalmente na Amazônia brasileira. Se a gente compara com outras regiões do Brasil, nós vemos que não estávamos preparados”.
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[g1_quote author_name=”Valéria Paye” author_description=”Indígena do povo Katxuyana e assessora da Coiab” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]
Não é só mais um número, são pessoas que fizeram a diferença na caminhada do movimento indígena. Eu me apego às boas lembranças e ao legado que essas pessoas deixaram quando passaram aqui para continuar com esse trabalho
[/g1_quote]O informativo “Covid-19 e Povos Indígenas da Amazônia Brasileira”, divulgado semanalmente nas redes sociais da organização, é um contraponto às informações fornecidas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde. Normalmente, Coiab e Sesai divergem na contagem de infectados e mortos, já que o órgão federal não inclui na contagem indígenas de contexto urbano. Mas, mais que números, os dados representam vidas perdidas. “É muito difícil perder pessoas que você conhece a história e, de repente, vão embora assim. Mesmo passados seis meses eu não consigo falar sobre isso sem as memórias. Dói demais”, desabafa Valéria Paye, indígena do povo Katxuyana, da Aldeia Missão Tiriyó, na região do Tumucumaque, no Amapá.
O boletim da Coiab de 28 de setembro registra 24.866 casos confirmados em 132 povos da Amazônia; já morreram na região 667 indígenas de 98 etnias. O Amazonas, primeiro epicentro da doença no Brasil, tem o maior número de indígenas atingidos pela covid-19: 5.781 pessoas confirmadas e 200 mortos. “Não é só mais um número, são pessoas que fizeram a diferença na caminhada do movimento indígena. Por isso que arrancamos força, não sei de onde, para fazer esse processo e contribuir para melhorar o atendimento em saúde no futuro”, destaca Valéria.
Lideranças indígenas históricas, como Aritana Yawalapiti, Fernando Makari e Sergio Xexewa Wai Wai e Dionito Souza Macuxi, e anciões detentores dos saberes da floresta, como Cidaneri Xavante, foram vítimas da pandemia. “Eu me apego às boas lembranças e ao legado que essas pessoas deixaram quando passaram aqui para continuar com esse trabalho”, afirma a assessora da Coiab, que diariamente entra em contato com lideranças, representantes de organizações da rede da Coiab e servidores da saúde indígenas para receber informações sobre casos que não entram no boletim atualizado diariamente pelo site da Sesai.
De Brasília, Valéria Paye conversa com indígenas que moram em terras, comunidades e cidades para mapear os povos atingidos nos estados. Ela lembra que, desde o início da pandemia, a Coiab vem tentando dialogar, em vão, com o governo. “Há um descuido da política, como um todo, em relação à saúde. Não houve por parte das instituições uma atuação para o esclarecimento da doença. Eu falo isso porque entrei de cabeça na produção de materiais de informação enviados para as aldeias”, conta.
De acordo com a assessora da Coiab, a falta de ação governamental provocou embates entre as organizações indígenas e dirigentes da Funai e da Sesai. “Antes de a situação chegar ao estágio que está, com muitos casos positivos, em Mato Grosso, Tocantins, Rondônia e Acre, quando ainda não tinha nenhum caso nesses estados, já falávamos ‘vamos construir, fazer uma parceria, um trabalho preventivo, para quando a doença chegar a gente não ter um grande impacto’. Mas nada foi feito”, recorda Valéria, afirmando que a Sesai foi negligente. “Ela faz um trabalho muito mais de burocracia, do tipo ‘a gente fez isso, orientou isso, fez o documento tal’. Sim, mas para efetivação, o que que foi feito?”
[g1_quote author_name=”Aguinilson Tikuna” author_description=”Líder da comunidade Tikuna Wotchimaücü, em Manaus” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Os moradores aqui da comunidade têm vergonha de ir ao hospital, à UBS. Eles dizem ‘ninguém lá me entende, ninguém me escuta’, porque temos a nossa cultura, a nossa maneira de falar. Às vezes, a pessoa não entende o que a gente fala
[/g1_quote]A primeira morte entre indígenas do Brasil também foi registrada oficialmente na Amazônia: um estudante Yanomami, de 15 anos, que morreu em 9 de abril por complicações de uma infecção no pulmão devido à covid-19. Ele apresentou os primeiros sintomas em 18 de março, passou por diversos atendimentos, e chegou a receber alta médica. Como não melhorava, foi testado para a covid-19, mas só em 6 de abril. Três dias depois, ele morreu no Hospital Geral de Roraima, em Boa Vista.
O jovem Yanomami era da Comunidade Helepe, na Terra Indígena Yanomami, mas estudava o ensino fundamental em uma escola da Comunidade Boqueirão, na Terra Indígena Boqueirão, dos povos Macuxi e Wapichana, no município de Alto Alegre, no norte de Roraima. O local registra grande presença de garimpeiros. Esses foram os primeiros episódios do que viria a seguir, traduzida em uma disseminação devastadora da doença sobre os povos indígenas da Amazônia.
Na discrepância entre números, o descaso com indígenas fora das aldeias
De acordo com dados da Sesai, até terça-feira (29/09), eram 28.286 casos confirmados de covid-19 e 443 mortes entre os indígenas no Brasil. Na Amazônia, a Sesai contabilizava 21.021 casos confirmados de Covid-10 e 328 óbitos. Na contagem da Coiab, são 24.866 casos confirmados da doença e 667 óbitos apenas entre os povos indígenas da Amazônia.
Por trás desta diferença entre dados e suas fontes, Sesai e Coiab, reside um problema de outra natureza. Valéria Paye lembra que, durante a pandemia, muitos indígenas que buscaram atendimento em unidades de saúde fora de seus territórios foram registrados como pardos. “Isso faz parte dessa política genocida e preconceituosa. A negação da identidade indígena é uma parte do racismo, do preconceito estrutural. Os relatos são muitíssimo fortes. Esses parentes tiveram a identidade indígena retirada”, explica a assessora da Coiab.
Antes da morte do jovem Yanomami, já havia ocorrido um primeiro óbito de indígena por covid-19, que havia ficado de fora dos registros da Sesai. Em 19 março, em Alter do Chão, no município de Santarém, no Pará., Dona Lusia dos Santos Lobato, de 87 anos, morreu vítima da doença: era uma liderança indígena do povo Borari, muito respeitada na Amazônia. A sua morte chocou os moradores da região. Mas, como ela não morava em aldeia, mas em área urbana, o caso foi tratado como sendo o de uma pessoa não-indígena.
[g1_quote author_name=”Edney Samias” author_description=”Cacique do povo Kokama” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Como os hospitais estavam registrando o nosso povo como pardo, tivemos muitas brigas para fazer ressalvas e nos registrar como indígenas do povo Kokama. Muitos indígenas da área urbana de Tabatinga abriram mão, negaram a identidade, porque o sistema [SUS] não aceita a identificação como indígena, só como pardo
[/g1_quote]A situação dos indígenas em contexto urbano, aqueles que vivem nas cidades e fora das terras indígenas homologadas pela Funai, é preocupante. Eles não têm atendimento de saúde diferenciado e, se não puderem dispor de um plano de saúde, entram na fila do SUS como não-indígenas. O problema nesse atendimento é a diferenciação cultural. “Os moradores aqui da comunidade têm vergonha de ir ao hospital, à UBS. Eles dizem ‘ninguém lá me entende, ninguém me escuta’, porque temos a nossa cultura, a nossa maneira de falar. Às vezes, a pessoa não entende o que a gente fala”, contou Aguinilson Tikuna, liderança e morador da comunidade Tikuna Wotchimaücü, localizada em Manaus.
No início da pandemia, essa comunidade perdeu o seu vice-cacique Aldenor Tikuna. Ele morreu a caminho do hospital e seu corpo esperou por horas até ser recolhido pelo SOS Funeral. “Após a morte do Aldenor, recebemos visitas, atendimento e formação. Mas precisamos de acompanhamento. Aqui não temos nenhum agente de saúde indígena contratado pela prefeitura ou por alguma ONG, e essa é uma necessidade de todas as comunidades indígenas em Manaus”, protestou Aguinilson.
Identidade apagada na hora da morte
Cacique do povo Kokama, Edney da Cunha Samias mora no município de Tabatinga, na região do Alto Solimões, no Amazonas, e é funcionário da secretaria municipal de Saúde. Ele perdeu 17 parentes por causa da covid-19 e contou que indígenas da sua etnia sofreram discriminação racial ao buscar atendimento no Hospital de Guarnição de Tabatinga, mantido pelo Exército. “Como os hospitais estavam registrando o nosso povo como pardo, tivemos muitas brigas para fazer ressalvas e nos registrar como indígenas do povo Kokama. Muitos indígenas da área urbana de Tabatinga abriram mão, negaram a identidade, porque o sistema [SUS] não aceita a identificação como indígena, só como pardo”, contou Samias à Amazônia Real. “No momento de dor, muitas pessoas não queriam ficar brigando para corrigir a identificação. No hospital militar de Tabatinga, os médicos e outros profissionais de saúde tratavam os Kokama como pardos ou brancos, mas não como indígenas”, acrescentou Samias.
Segundo levantamento realizado pela Open Knowledge Brasil, divulgado no último dia 22, 82% dos estados brasileiros são transparentes com relação ao quesito raça e cor, mas para os da região amazônica esse percentual cai para 78%. Nas capitais do Brasil, esse número é 58% e nas amazônicas, de 44%. No Amazonas, o Ministério Público Federal recomendou ao Ministério da Saúde adotar medidas para tornar obrigatório o preenchimento por autodeclaração do campo raça e cor. Isso significa implementar, com obrigatoriedade de preenchimento por autodeclaração, o campo etnia nos sistemas e-SUS Notifica (e-SUS-VE) e no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).
[g1_quote author_name=”Mário Nicácio” author_description=”Vice-coordenador da Coiab” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Ainda vai demorar um pouco para a gente pensar, porque temos outras lideranças tradicionais que resistiram como Euclides, Raoni, Davi, Clóvis, Nara. Mas, por conta do nosso luto, é difícil prever o que vamos passar amanhã
[/g1_quote]A medida foi tomada como efetiva pela Coiab, que está dialogando com os órgãos ministeriais de outros estados da Amazônia brasileira para adoção da mesma iniciativa. A ideia é que a identificação da raça e da etnia seja incorporado no sistema SUS. No Amazonas, por conta da recomendação do MPF, essa medida está mais próxima de se tornar realidade.
Com o atendimento em saúde precarizado em todo o País, muitos indígenas resgataram costumes tradicionais como o uso de plantas medicinais e benzimentos para tratamento da Covid-19. Chá de alho, jambu e defumações foram algumas das matéria-primas usadas por populações da Amazônia para tentar evitar a doença ou se recuperar mais rapidamente, em caso de infecção. Os indígenas encontraram soluções entre seu próprio conhecimento ancestral.
“Em muitos locais, tivemos que retomar a medicina tradicional. É como tivesse caído a ficha de que estávamos muito dependentes da medicina ocidental. Quando a doença chegou, e não tínhamos remédio, para onde recorremos? Para os nossos conhecimentos, para a medicina tradicional, os benzimentos, ao fortalecimento da relação espiritual. Isso foi muito forte para a gente”, contou Valéria Paye. “É mais uma lição para que a gente reflita sobre a medicina tradicional. Na falha do sistema, estamos recorrendo aos nossos saberes e isso que está fazendo a diferença”, acrescentou. A Associação das Mulheres Indígenas do Médio Solimões e Afluentes (Amimsa) relatou à Amazônia Real que o atendimento em saúde e o combate à covid-19 na região continua precário, mesmo depois de seis meses do início da pandemia.
O vice-coordenador da Coiab, Mário Nicácio, faz um apelo para que a sociedade se una na luta por assistência em saúde permanente para os indígenas. “Tem muita gente boa no País e essas pessoas precisam unir forças com a gente, porque o povo é maior que o governo. O governo não é dono do nosso País. A sensibilização que fazemos todos os dias com a sociedade é para o bem viver dessa geração, dos filhos e netos das pessoas”, diz Nicácio.
A região amazônica vive um momento de declínio nas taxas de contágio e mortes do novo coronavírus, mas a ameaça deixada pela pandemia persistirá por muito tempo. E a ela se somam outros riscos enfrentados pelas comunidades indígenas. “Enquanto tentamos salvar as comunidades da Covid-19 já estamos perdendo outras vidas também pela violência, pelas queimadas. Tem vários parentes perdendo suas casas, seus bens na Amazônia”, afirma Nicácio.
À Amazônia Real, Nicácio afirma que é cedo para medir o impacto da pandemia entre os povos indígenas. “Ainda vai demorar um pouco para a gente pensar, porque temos outras lideranças tradicionais que resistiram como Euclides, Raoni, Davi, Clóvis, Nara. Mas, por conta do nosso luto, é difícil prever o que vamos passar amanhã”. (Colaborou Elaíze Farias)
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