Índice de preço dos alimentos atinge o maior valor em 100 anos

Guerra na Ucrânia, crise hídrica e emergência climática estão entre as principais causas do recorde histórico. Pobres, como sempre, serão os mais prejudicados

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 2 • Publicada em 8 de abril de 2022 - 17:05 • Atualizada em 1 de dezembro de 2023 - 17:57

Criança com desnutrição recebe assistência médica no Hospital Materno Al Sabeen, no Iêmen. Subida recorde no preço dos alimentos deve aumentar a fome no mundo (Foto: Mohammed Hamoud / Anadolu Agency via AFP)

A era da comida barata acabou. Ao longo do século 20, os preços dos alimentos foram caindo na medida em que aumentava a oferta em função da maior mecanização da produção, da maior produtividade agrícola, da redução do preço do petróleo, do aumento da área de cultivo e do aperfeiçoamento dos transportes que ampliaram a globalização e o intercâmbio no mercado de commodities.

No entanto, a menor disponibilidade de combustíveis fósseis, a erosão dos solos, a crise hídrica e a emergência climática reverteram a tendência do preço dos alimentos que começaram a subir no século 21. As duas primeiras décadas do atual século apresentaram preços mais elevados do que as últimas duas décadas do século passado. Mas o que estava ruim piorou com a pandemia de covid-19 e atingiu o grau máximo de tensão com a invasão russa da Ucrânia e o estabelecimento de sanções econômicas que restringiram o comércio de bens de subsistência em decorrência da guerra.

Com isso, o índice de preço da comida atingiu, no mês de março de 2022, o maior valor em 100 anos, como pode ser visto na série do relatório “The environmental food crisis” (Unep, 2009). Este recorde histórico foi registrado na sexta-feira 8 de abril, quando a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) divulgou a atualização da série de longo prazo do Índice de Preços de Alimentos (FFPI, na sigla em inglês).

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O gráfico abaixo mostra que o recorde anterior de alta do FFPI aconteceu em 1974 e 1975 (quando houve o primeiro choque do petróleo na época da guerra do Yom Kippur), sendo que a década de 1971-80 foi a que teve a maior média decenal da série, com 110,2 pontos. Nas décadas de 1980 e 1990 os preços dos alimentos caíram e marcaram os menores valores do século 20. Entretanto, a comida voltou a ficar mais cara e estabeleceu um novo patamar da série histórica. O FFPI ficou em 159,3 pontos em março, superando em muito os valores de janeiro (135,4 pontos) e fevereiro (140,7 pontos).

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Todos os componentes do FFPI subiram em março, mas as maiores altas ocorreram nos subíndices de preços de óleos vegetais e cereais. O Índice de Preços de Óleos Vegetais teve uma média de 248,6 pontos em março, alta de 46,9 pontos em relação a fevereiro e um novo recorde de todos os tempos. O forte aumento do índice foi impulsionado pelos preços mais altos de girassol, palma e soja. As cotações internacionais do óleo de girassol aumentaram substancialmente em março, impulsionadas pela redução da oferta de exportação em meio ao conflito em andamento na região do Mar Negro.

O Índice de Preços de Cereais da FAO teve uma média de 170,1 pontos em março, alta de 24,9 pontos em relação a fevereiro, também marcando seu nível mais alto já registrado. Somente o subíndice de preços do arroz não seguiu a tendência geral de aumento.

O Índice de Preços de Lácteos teve média de 145,2 pontos em março, alta de 3,7 pontos em relação a fevereiro, marcando o sétimo aumento mensal consecutivo e elevando o índice 27,7 pontos acima de seu valor há um ano. O Índice de Preços da Carne teve média de 120 pontos em março, alta de 5,5 pontos em relação a fevereiro, também atingindo um recorde histórico. O Índice de Preços do Açúcar atingiu a média de 117,9 pontos em março, alta de 7,4 pontos em relação a fevereiro, revertendo a maior parte da queda dos três meses anteriores e atingindo níveis mais de 20% acima dos registrados no mês correspondente em 2021.

“De pé, ó vítimas da fome / De pé, famélicos da terra” (Hino da Internacional Socialista)

O impacto da guerra na Ucrânia na oferta de alimentos

A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação publicou o relatório “The importance of Ukraine and the Russian Federation for global agricultural markets and the risks associated with the current conflict”, em março de 2022, mostrando que Rússia e Ucrânia estão entre os mais importantes produtores de commodities agrícolas do mundo. Ambos os países são exportadores líquidos de produtos agrícolas e desempenham papéis de liderança nos mercados globais de alimentos e fertilizantes, onde os suprimentos exportáveis geralmente estão concentrados em alguns países. Essa concentração pode expor esses mercados a uma maior vulnerabilidade a choques e volatilidade.

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Os gráficos abaixo, do site Our World in Data, com dados da FAO, mostram que Rússia e Ucrânia – juntas – foram responsáveis por mais da metade da produção global de semente de girassol (sunflower seed), mais de 20% da produção de cevada (barley) e quase 20% da produção de trigo (wheat). Em 2021, a Rússia ou a Ucrânia (ou ambas) ficaram entre os três principais exportadores globais de trigo, milho (maize/corn), canola (rapeseed), semente de girassol e óleo de girassol, enquanto a Rússia também se destacou como o maior exportador mundial de fertilizantes nitrogenados e o segundo líder fornecedor de fertilizantes potássicos e fosforosos.

Desta forma, a invasão russa da Ucrânia prejudicou a produção agrícola, reduzindo a oferta global de alimentos, uma vez que Ucrânia e Rússia somavam 29% das exportações globais de trigo, 19% de milho e 80% de óleo de girassol. Mas a Rússia também exporta insumos e nutrientes agrícolas, como o gás natural que é fundamental para a produção de fertilizantes à base de nitrogênio. Cerca de 25% do suprimento europeu dos principais nutrientes das culturas, nitrogênio, potássio e fosfato, são oriundos da Rússia. Portanto, enquanto durar a guerra haverá uma elevação conjuntural do preço dos alimentos, agravando a tendência estrutural de aumento do custo da produção dos bens de subsistência.

Aumento de preço de alimentos prejudica as parcelas mais pobres da população

O alto crescimento demográfico global e as práticas agropecuárias insustentáveis estão por trás do aumento de preço de alimentos. O Relatório da FAO, “The state of the world’s land and water resources for food and agriculture” (Solaw 2021), fornece uma atualização da base de conhecimento sobre a produção agrícola e apresenta um conjunto de respostas e ações para informar os tomadores de decisão nos setores público e privado.

O relatório Solaw 2021 mostra que as pressões humanas sobre os sistemas de terra, solo e a água doce estão se intensificando, justamente quando estão sendo levadas ao seu limite produtivo. Os impactos das mudanças climáticas já estão restringindo as produções de sequeiro e de irrigada.

O aumento de preço de alimentos é um reflexo da incompatibilidade cada vez maior entre o crescimento da economia e o meio ambiente. Os consumidores pobres, especialmente aqueles dos países de baixa renda, gastam proporcionalmente mais do orçamento familiar em alimentos e são mais afetados quando os preços sobem.

O artigo “War-Fueled surge in food prices to hit poorer nations hardest” (IMF, 16/03/2022) mostra que o preço das commodities alimentícias subiram 23,1% em 2021, o ritmo mais rápido em mais de uma década. O índice de fevereiro foi a mais alto desde 1961 e os preços globais dos alimentos continuaram subindo com a guerra na Ucrânia, colocando o fardo mais pesado sobre as populações mais vulneráveis, ao mesmo tempo em que dificultam a recuperação econômica global.

O gráfico abaixo mostra que o choque de preços terá impacto em todo o mundo, especialmente nas famílias pobres para as quais a alimentação representa uma parcela maior das despesas domésticas. Desta maneira, os custos dos alimentos representam 17% dos gastos do consumidor nas economias avançadas, mas 40% na África Subsaariana. Os pobres dos países pobres vão ser mais impactados.

O artigo também mostra que as diferenças na dieta são significativas. Na Europa, onde o pão está profundamente enraizado em muitos aspectos de sua cultura, o trigo compõe cerca de um quarto das dietas. No Sudeste Asiático, o trigo representa apenas 7%, contra 42% do arroz, para o qual os aumentos de preços até agora foram relativamente contidos. As médias em nível de país, no entanto, mascaram diferenças substanciais dentro das nações, pois as famílias pobres tendem a comer mais cereais, mas menos carne, legumes e frutas em comparação com as famílias de renda média.

Adicionalmente, a interrupção das exportações terá maior impacto para os países com laços comerciais estreitos com Rússia e Ucrânia, inclusive na Europa Oriental, Cáucaso e Ásia Central. Os altos preços do trigo pesarão ainda mais nas economias de Oriente Médio e Norte da África, como o Egito, que dependem especialmente das exportações russas. Olhando para o futuro, a redução do fornecimento de fertilizantes e os preços mais altos do petróleo aumentarão os custos de colheita, transporte e processamento de alimentos.

Inflação, preço dos alimentos e insegurança alimentar no Brasil

O Brasil é um dos países mais impactados pelo aumento do preço da energia e dos alimentos. O reflexo é sentido imediatamente na inflação e na carestia. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), considerado a inflação oficial do país, acelerou para 1,62% em março, maior valor para o mês em 28 anos. Em 12 meses, a taxa atingiu 11,3%, bem acima da meta do Banco Central. E o pior é que isto acontece no momento em que a renda média dos brasileiros caiu e atingiu o valor mensal de R$ 1.378, o menor rendimento domiciliar per capita em dez anos, segundo o IBGE.

O mais grave é que tudo isto ocorre quando existe uma reversão do quadro de redução da fome no Brasil. Depois de recuar significativamente até meados da década passada, a insegurança alimentar voltou a crescer no país. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), mostra que houve um retrocesso acentuado nos últimos anos, conforme o gráfico abaixo. Em 2013 a insegurança alimentar estava em 12,6% e passou para 34,7% em 2020. O total de brasileiros vivendo em situação de fome saltou de 10,3 milhões para 19,1 milhões de pessoas.

Desde os tempos bíblicos, como nas dez pragas do Egito, a fome é geradora de mobilizações populares. A Revolução Francesa começou com o aumento do preço do pãozinho (e pela falta de brioche). Estudos do Instituto NECSI (New England Complex Systems Institute) mostram que existe uma alta correlação entre o preço do petróleo e o preço dos alimentos, assim como uma forte correlação entre o aumento do preço dos alimentos e a ocorrência de protestos em todo o mundo, como ocorreu na Primavera Árabe. Na atual onda de carestia, o aumento do preço dos combustíveis e da comida motivou protestos no Peru desde o dia 28 de março, que culminaram com o decreto de Estado de Emergência, assinado pelo presidente Pedro Castillo na terça-feira, dia 5 de abril de 2022.

Nenhum país é uma ilha isolada. O mundo está cada vez mais interconectado. A aproximação do pico do petróleo, o agravamento dos problemas ambientais (erosão dos solos, crise hídrica etc.) e a emergência climática estão transformando a fome em uma questão candente, urgente e global. Certamente estes temas estarão presentes no debate eleitoral que vai ocorrer no ano dos 200 anos da Independência do Brasil.

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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