Como a pandemia uniu três desconhecidos na luta contra a fome

Pedro, Dani e Renata organizam as filas para entregas de fichas para o almoço. Eles se revezam nas ações em turnos diferentes (Foto: Arquivo pessoal)

Renata, Dani e Pedro tinham um objetivo em comum: ajudar a população mais vulnerável em São Paulo. Mas não se conheciam. Agora, juntos, já garantiram a entrega de mais de 12 mil refeições.

Por Vinícius Grossos | ODS 2 • Publicada em 8 de julho de 2020 - 09:38 • Atualizada em 11 de fevereiro de 2021 - 16:35

Pedro, Dani e Renata organizam as filas para entregas de fichas para o almoço. Eles se revezam nas ações em turnos diferentes (Foto: Arquivo pessoal)

Quando a pandemia causada pelo novo coronavírus se infiltrou entre as ruas e avenidas do Brasil, o medo veio junto, como uma cortina de neblina sobre nós. Pela grande mídia, estávamos acompanhando e recebendo notícias vindas de fora do país, em choque. Mas, e quando o perigo bateu nas nossas portas? E quando a covid-19 se tornou parte presente da nossa rotina? E quando a doença simplesmente levou a vida de tantos amigos e familiares num sopro? O que fazer? Um grupo de São Paulo deu uma resposta um tanto corajosa para a nossa atual realidade. Mas, antes de aprofundar, é preciso traçar uma linha do tempo, na qual os destinos de três pessoas se cruzaram para essa corrente do bem acontecer.

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Renata

Em tempos precedentes ao coronavírus, a empresária Renata Zamur, de 37 anos, já atuava em projetos pessoais focados em solidariedade. “Todo ano, antes do inverno, eu já fazia a campanha dos cobertores. E, mensalmente, conseguia arrecadar dinheiro para até 300 marmitas, que eu entregava para pessoas em situação de rua no centro de São Paulo”. Chegou a ter o trabalho voltado para a Cracolândia. “Como eu atuava geralmente sozinha, na Cracolândia é difícil o trabalho de aproximação, de ajuda, por conta da situação em que as pessoas se encontram. Decidi deixar os grupos que já atuavam ali e parti para outros espaços”.

Porém, com o início da pandemia e do isolamento social, Renata se viu numa situação ainda mais complicada. Com as ruas vazias, consequentemente o número de pessoas doando caiu. Para quem não tem casa para se proteger, e a fome é como uma presença constante, a hashtag #fiqueemcasa não faz muito sentido. Foi quando ela, moradora da capital paulista, teve um despertar sobre como poderia potencializar sua atuação. O Bom Prato é um programa criado no Estado de São Paulo com o objetivo de servir refeições a preços acessíveis à população de baixa renda. “Pensei em focar minha atuação lá, para usar a estrutura deles, e conseguir, assim, alcançar mais pessoas”, explica.

Dani

Em outro ponto da cidade, Danielle Alves Avelar, fisioterapeuta de 36 anos, ou apenas Dani — como é conhecida no grupo —, tinha que lidar com a ansiedade do início da quarentena, como muitos de nós. “Eu já estava uma semana em casa direto, vendo as notícias diariamente, e aquilo estava me incomodando. Senti que precisava fazer algo”. Impulsionada por esse movimento interno, ela rapidamente achou um foco. “O pensamento que me ocorreu foi: com os restaurantes fechados, menos pessoas na rua para dar uma moeda ou pagar um lanche para os mais vulneráveis”.

Doamos com carinho e sem preconceito pra cada um ali, que tem um nome, sobrenome e uma história… Vai além de entregar a refeição, é o ouvir os pedidos, é dar atenção. E acredito que aprendemos muito mais do que ensinamos

A partir daí, Dani começou a organizar uma força-tarefa de solidariedade entre os amigos próximos para arrecadar mantimentos. “A primeira entrega foi feita em um sábado. Fizemos 80 marmitas na minha casa, colocamos no carro e fomos para a Praça de Santana, Zona Norte de São Paulo. No dia seguinte, fizemos mais 160. Só que a notícia da entrega do dia anterior se espalhou, e foram aparecendo mais e mais pessoas pedindo… No final, algumas ficaram sem marmita e isso me deixou muito triste”. Frustração. Era essa a palavra que definia a Dani naquele momento.

Mas, naquela tarde, um dos homens assistidos pela jovem disse algo que serviria de incentivo para os próximos passos que ela daria. “Durante a distribuição, um morador de albergue agradeceu a doação e falou: ‘Que bom que vocês vieram. Aos finais de semana o Bom Prato não abre e não temos onde comer”. Dani dormiu com a fala do homem em sua cabeça, e quando acordou já sabia que atitude tomar.

Pedro

Agora, a terceira peça nessa linha do tempo. Afastado do centro de São Paulo, Pedro Almeida, editor de livros de 49 anos, se deparou com uma matéria no jornal que lhe chamou atenção. Nela, um professor relatava sobre a ajuda que deu a um rapaz em situação de rua, comprando-lhe um lanche, que custou aproximadamente quinze reais. Depois, refletindo, o professor percebeu que aquele valor poderia ajudar a alimentar até quinze pessoas, se usado no restaurante popular.

Pedro se tocou profundamente com a matéria e, junto ao seu companheiro, decidiu agir. “Existem pessoas em situações muito piores que a minha. Muitas sem casa, sem comida… Então, eu peguei um dinheiro, chamei Marco Antônio, e fomos para a rua”. Era domingo de Páscoa quando Pedro viu um grupo de pessoas entregando marmitas e se aproximou. “Ofereci o dinheiro, visando ajudar, e na verdade eles me pediram apoio na distribuição e organização das marmitas”. Naquela Páscoa tão atípica, nossos três personagens dessa narrativa real trocaram contato, criaram um grupo no WhatsApp, e a história começou. Crescia ali o movimento “Todas as vidas importam”.

Como a pandemia uniu três desconhecidos na luta contra a fome
Pedro (à direita) com o companheiro Marco Antônio em uma das ações em São Paulo (Foto: Arquivo pessoal)

Muito mais do que o alimento

Juntos, Renata, Dani e Pedro se dividem para atender todos os dias, incluindo finais de semana e feriados, em turnos diferentes, pessoas que acabam se tornando rostos conhecidos e afetuosos. A comunidade em prol da solidariedade cresceu. “Criamos o grupo com 10 pessoas, e hoje somos em 110 pessoas ativamente participando das ações”, conta Dani. Dentre essas, há quem ajude com transferências bancárias, que são revertidas em fichas para o almoço no Bom Prato, e outras que colocam a mão na massa e participam da organização das filas e do atendimento ao público.

Além de comida, outras ações acabaram sendo desenvolvidas. Pedro divide que é sempre procurado pelos atendidos: eles querem desabafar sobre seus problemas. “Algumas histórias marcam muito. Conheci recentemente um rapaz de Brasília que veio para procurar trabalho, poucos dias antes de iniciar a pandemia. Tudo deu errado com ele. Teve seus bens furtados, não conseguiu, consequentemente, a oportunidade de emprego que buscava. E tudo o que ele precisava era de ajuda com a passagem para voltar para casa”. Então, comovido, o grupo criou correntes solidárias paralelas a das refeições, para dar suporte a casos como esse.

É de cortar o coração. Elas choram e dizem que estavam com muita fome

Pedro relembra ainda uma família que foi expulsa da casa alugada no auge da pandemia. “Os pais perderam emprego, com duas crianças pequenas, e com aluguel atrasado, tiveram que sair. Quando os conhecemos, eles tinham usado o auxílio emergencial do governo para pagar seis diárias em um albergue. A história comoveu todo o grupo”. Para o editor, o maior catalisador de todas as ações do grupo é a empatia. O ato de se ver no lugar do outro, numa situação tão complicada. “Juntos, conseguimos nos mover e alugamos um espaço para essa família se reconstruir. Pagamos três meses de aluguel, para eles terem um respiro e recomeçarem a vida”.

Uma corrente de esperança

Para todos, é unânime dizer que a grande motivação que os fazem acordar diariamente e irem para as esquinas esquecidas da cidade de São Paulo é a gratidão. Renata afirma que, muitas vezes, as pessoas choram quando recebem a ficha para se alimentar ou uma marmita. “É de cortar o coração. Elas choram e dizem que estavam com muita fome”. E o agradecimento vem em forma de palavras carinhosas, olhos molhados, ou de flores colhidas em algum jardim qualquer.

O que é pouco para mim, o que é pouco para você, às vezes, para o outro, é a salvação. É a sobrevivência

Dani se emociona em dizer que junto, o grupo consegue fazer pequenos milagres: “O nome do grupo fala muito, realmente todas as vidas importam. Doamos com carinho e sem preconceito pra cada um ali, que tem um nome, sobrenome e uma história… Vai além de entregar a refeição, é o ouvir os pedidos, é dar atenção. E acredito que aprendemos muito mais do que ensinamos”.

Para Pedro, o maior objetivo das ações é tentar resgatar um pouco da dignidade dessa população. “O que é pouco para mim, o que é pouco para você, às vezes, para o outro, é a salvação. É a sobrevivência”. O grupo ‘Todas as vidas importam’, até o momento, já distribuiu mais de 12 mil refeições, desde o início da organização. Renata, que já atuava antes de conhecer Pedro e Dani, fala em mais de 25 mil. Itens de higiene, roupas e cobertores também são doados.

Em um mundo cada vez mais empurrado para um pensamento individualista, a pandemia do novo coronavírus fez, de uma forma extremista, é claro, encararmos nossas reais prioridades. Encontrarmos, talvez, no olhar do outro, qualidades que nós mesmos havíamos perdidos. No momento em que essa matéria foi escrita, mais de cinquenta e sete mil pessoas já haviam morrido pela doença no país. Que a nossa empatia, a nossa humanidade e o nosso olhar afetuoso ao próximo sejam o legado deixado após toda essa devastação.

Vinícius Grossos

Natural de Duque de Caxias (RJ) e atualmente morando em São Paulo, é formado em jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora e escritor por amar a poesia da vida. Já publicou quatro livros focados no público juvenil, permeados de protagonismo LGBT+. Um deles foi traduzido e lançado recentemente na Colômbia. Acredita que as palavras podem transformar o mundo.

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2 comentários “Como a pandemia uniu três desconhecidos na luta contra a fome

  1. Josete disse:

    gostaria do contato do movimento “Todas as vidas importam”, Renata, Dani e Pedro do artigo “Como a pandemia uniu três desconhecidos na luta contra a fome” do Vinícius Grossos,

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