O perfil do Instagram de Maria Alice e Maria Flor, filhas da influenciadora Virginia Serrão Costa e do cantor Zé Felipe, acumula cerca de 7 milhões de seguidores e mais de 200 publicações. A maioria são imagens do cotidiano das crianças e o mesmo acontece em diversos outros perfis, principalmente de filhos de celebridades e também no TikTok. Mas até que ponto a exposição constante de crianças – conhecida como sharenting – pode afetar a segurança, a identidade e a saúde mental de menores de idade?
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Pesquisa publicada nesta sexta-feira (11/04) na Revista Bioética aponta os riscos do compartilhamento de imagens e informações sobre crianças em redes digitais por pais e parentes. O termo em inglês surge da combinação entre a expressão share (compartilhar) e o sufixo nting de parenting (parentalidade, na tradução para o português).
Diferentemente do passado, quando familiares acompanhavam a exposição das fotografias de crianças, com o surgimento das redes sociais na internet, fotos são expostas não apenas a pessoas restritas, mas a um público geral, e perpetuamente, levando à dataficação infantil
Entre os principais pontos abordados no estudo, estão a possibilidade das informações compartilhadas serem utilizadas para fraudes e roubos, além de alimentar redes de pedofilia. Outras questões levantadas na pesquisa abordam os impactos psicológicos e sociais do desrespeito da privacidade de crianças, o que pode implicar em problemas de identidade e gerar cyberbullying.
“A prática do sharenting pode expor toda a rotina de uma criança ou adolescente na internet, fazendo com que criminosos consigam identificar a rotina da família e da própria criança”, alerta Lucas Garcia, um dos autores do estudo e professor do Programa de Pós-Graduação e Promoção da Saúde da Universidade Cesumar (UniCesumar), de Maringá (PR).
O compartilhamento de informações pelos pais não configura um crime, porque os direitos de imagem dos menores ficam a cargo dos seus responsáveis legais. De acordo com Lucas, não se trata de penalizar ou judicializar, mas de alertar e educar as famílias para lidar com o tema, principalmente para os casos em que essa prática torna-se cotidiana e excessiva, o chamado oversharenting.
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Veja o que já enviamos“Essa exposição nas mídias e redes sociais pode levar a riscos ao desenvolvimento da identidade da criança, levantando questões relacionadas a consentimento informado, privacidade, segurança, proteção e a própria relação com os pais”, aponta um dos trechos do estudo. Também assinam a pesquisa Sophia Ivantes Rodrigues, graduanda de psicologia e responsável pela sua concepção, e Leonardo Pestillo de Oliveira, professor da UniCesumar.
Exposição que vira monetização
Na última linha da chamada biografia do perfil das irmãs Maria Alice e Maria Flor, aparece a frase “Nossos produtos Maria’s baby”, com uma seta para o link abaixo. Na tentativa feita nesta semana pela reportagem do #Colabora para acessar o endereço disponibilizado no perfil das crianças, o redirecionamento levou a um site de apostas on-line.
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O exemplo pode indicar a ação de criminosos e também revela outro aspecto da presença de crianças no universo digital: a comercialização da infância. Frequentemente, pais têm utilizado o sucesso dos filhos nas redes para produção de verdadeiras campanhas publicitárias e parcerias com marcas.
“Diferentemente do passado, quando familiares acompanhavam a exposição das fotografias de crianças, com o surgimento das redes sociais na internet, fotos são expostas não apenas a pessoas restritas, mas a um público geral, e perpetuamente, levando à dataficação infantil”, indica a pesquisa feita na UniCesumar.
No final do ano passado, o Ministério Público do Trabalho do Distrito Federal (MPT/DF) chegou a abrir uma investigação para analisar o fenômeno dos influencers mirins. O caso está sendo investigado como possível estelionato, uma vez que a imagem das crianças é explorada para fins comerciais e econômicos.
Dados da pesquisa TIC Kids Online Brasil, mostram que 93% da população de 9 a 17 anos é usuária de internet no país, o que representa aproximadamente 25 milhões de crianças e adolescentes. Exemplos citados em apuração da Repórter Brasil mostram como muitos conteúdos de publicidade infantil que aparecem em feeds ferem o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Como a pesquisa foi feita?
O estudo da UniCesumar sobre sharenting foi realizado através do método conhecido como revisão integrativa de literatura, ou seja, a busca sistematizada de trabalhos que abordaram o tema anteriormente. Ao todo, foram analisados 73 estudos entre 2016 e 2023, em três diferentes línguas: inglês, espanhol e português.
Lucas conta que a ideia para a pesquisa surgiu de debates entre estudantes de cursos de psicologia e de comunicação. “E também do fenômeno das influenciadoras, que são mães e têm os perfis dos seus filhos, até fetos de crianças que estão ainda em processo de gestação, sobretudo no TikTok”, descreve o professor.
A pergunta que guiou a investigação foi “quais são as implicações bioéticas do sharenting na privacidade, segurança e desenvolvimento da identidade das crianças?”. A discussão considerou a divisão em quatro temáticas: 1) privacidade e segurança digital; 2) implicações psicológicas e culturais; 3) dinâmica social e familiar; e 4) resposta societal e legal.
Um dos principais dados encontrados foi de um levantamento feito pela empresa AVG Technologies, apontando que 81% das crianças com menos de 2 anos de idade de países, como Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Japão, França, Reino Unido, Alemanha, Itália e Espanha, já estão no ambiente virtual e possuem “pegadas digitais”.
Educação para os pais
Lucas aponta que existem alguns cuidados essenciais que devem ser observados pelos pais, como não permitir a identificação da escola e da rotina da criança e família. Para o professor, as orientações sobre isso devem começar desde o primeiro contato com pediatras e equipes multidisciplinares durante a gestação.
O estudo também levanta a hipótese sobre o crescimento do sharenting como uma forma de pais se conectar com familiares, o que não elimina o risco dessa prática, mas chama atenção para a responsabilidade da sociedade e das plataformas sociais.
“Os pais devem estar conscientes dos riscos associados ao sharenting e ser incentivados a adotar práticas mais responsáveis. É fundamental que haja um maior envolvimento e cooperação entre pais, educadores, legisladores e profissionais de tecnologia, para desenvolver estratégias eficazes que minimizem riscos sem comprometer os benefícios das interações sociais on-line”, afirma outro trecho da pesquisa.