(Schirlei Alves e Deyse Cruz-Noronha*) – Quando chegamos à casa de Silene**, uma menina que engravidou aos 13 anos após ter sido vítima de estupro, o bebê havia nascido há uma semana. A avó, dona Ana**, tentava convencê-la a amamentar o recém-nascido, seguindo a orientação médica. Porém, Silene apresentava algum tipo de deficiência, cujo diagnóstico não é conhecido pela família. Além disso, era tão criança quanto o bebê que acabara de chegar. Seu olhar, seu físico e seu comportamento deixavam isso evidente.
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Uma das manifestações da tenra idade de Silene aconteceu diante de nossos olhos, quando, durante a entrevista com a avó, ela pegou a chupeta do bebê e a colocou em sua própria boca. Silene estava chupando a chupeta do seu filho.
A avó de Silene nos contou que a menina tem uma deficiência intelectual e, por isso, não consegue expressar com palavras o que sente ou pensa. Ao engravidar, portanto, não dizia se queria, ou não, continuar com a gestação. Durante a gravidez, teria ficado ainda mais calada e a avó lembra que ela chorou quando foi informada pela equipe de saúde que estava grávida. A menina foi vítima de um abuso, engravidou e foi forçada a parir o filho do seu agressor.
Silene vive com a mãe – que também possui deficiência intelectual -, além da avó, o avô e um irmão, em uma casa simples de Assis Brasil, no interior do Acre. Quem cuida do bebê recém-nascido é a avó de 57 anos. Dona Ana já ajudou a criar ao menos 10 pessoas, entre filhos, netos e agora, o bisneto.
Após descobrir a gravidez da neta, dona Ana trocou 20 hectares de terras da propriedade onde vivia – em uma região distante chamada localmente de “ramal”- pela casa da filha mais velha, na cidade. Isso porque, no ramal, não havia escola nem posto de saúde. Silene, inclusive, estava fora da escola e só conseguiu retornar aos estudos quando foi morar na “rua” com a avó, como é chamada a área urbana da cidade.
Norte e Centro-Oeste concentram casos
De cada mil meninas entre 10 e 14 anos no município de Assis Brasil, 28 ficaram grávidas na última década (entre 2014 e 2023). O cálculo foi feito com base em dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), do Ministério da Saúde e do Censo Demográfico 2022 do IBGE.
Os números revelam um problema grave: a naturalização da gravidez infantil, decorrente de crimes de estupro de vulnerável. O levantamento feito pelo projeto Meninas Mães, da Revista AzMina, aponta que os dez municípios brasileiros com as maiores taxas de fecundidade estão localizados nos estados do Mato Grosso (Centro-Oeste do país), Acre, Roraima, Tocantins e Pará, na região Norte.
Além de Silene, entrevistamos outras três meninas que engravidaram na mesma faixa etária em Assis Brasil. As três tiveram filhos de relacionamentos iniciados quando ainda eram crianças ou pré-adolescentes. Uma delas tem um histórico de abusos sexuais cometidos pelo padrasto, outra vivenciou negligência e maus-tratos em casa, e a terceira, de origem indígena, sofreu violência doméstica.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) manifestou, em comunicado publicado no dia 13 de maio de 2025, preocupação com decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que enfraquecem a proteção legal de brasileiras menores de 14 anos vítimas de violência sexual. Segundo a CIDH, o Brasil deve garantir a responsabilização criminal de agressores adultos.
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Veja o que já enviamosAvó notou mudanças no corpo da neta
A gravidez de Silene foi descoberta por dona Ana ao notar a ausência de menstruação após três meses e mudanças no corpo da neta. A suspeita recaiu sobre um sobrinho maior de idade que ficou de favor na casa dela por um tempo. Os abusos teriam ocorrido, acredita, nas suas saídas para a igreja, quando elas ainda morava no ramal. “A Silene menstruava de dois em dois meses desde os 12 anos de idade. Aí passou os dois meses e nada. Desconfiei”, disse a avó.
Uma professora ajudou Ana e comprou um teste de gravidez que comprovou a suspeita. Ao chegar ao posto de saúde, a gestação foi confirmada. O médico afirmou que seria uma gestação de risco. “É porque o médico disse que ela não conseguia ter a criança, que o útero dela tava tampando a frente, por isso ia ser cesariana, né”, falou Ana.
Foram feitas diversas ultrassonografias. Havia dúvidas sobre o tempo de gestação e o médico disse que era uma gestação de risco. Após demora no encaminhamento, a menina realizou uma cesariana no Hospital Regional do Alto Acre Wildy Viana, em Brasiléia, município que fica a cerca de 110 km de Assis Brasil – o mais próximo com estrutura para realizar partos. Já a distância até a capital, Rio Branco, é de 342 km. Nossa equipe de reportagem levou 8 horas de ônibus nesse trajeto entre Assis Brasil e Rio Branco, com uma passagem que custou R$ 100.
“Toda gravidez em crianças deveria ser encarada com extrema preocupação. Estamos falando de um corpo infantil que está gestando, que vai enfrentar um parto e, depois, será obrigado a maternar e amamentar – sendo ainda uma criança que brinca de boneca, em uma fase completamente diferente do desenvolvimento”, afirma Beatriz Galli, assessora sênior de políticas e advocacy do Ipas.
Agressor não foi encontrado
Uma das enfermeiras que atendeu Silene ainda no posto de saúde informou o caso ao Conselho Tutelar, que encaminhou a denúncia de abuso sexual à polícia e ao Ministério Público. A avó prestou depoimento e informou quem seria o principal suspeito. “Eu quero que a justiça faça o que tem que fazer, não vai ser eu, porque quem sou eu para condenar alguém”, comentou dona Ana.
Quando falamos com o delegado Luccas Vianna, faltava uma diligência para que a investigação sobre o caso de Silene fosse concluída. Ele não deu mais detalhes por conta do sigilo que envolve os casos de violência sexual.
Diferentemente dos outros casos com os quais nos deparamos em Assis Brasil, a possibilidade de interrupção da gravidez foi comunicada à avó de Silene após a intervenção do Ministério Público, que foi acionado pelo Conselho Tutelar. Em casos de gestação resultante desse crime, a legislação garante o direito ao aborto legal. Vale lembrar que o aborto é permitido em situações de estupro, risco à vida da gestante ou anencefalia do feto.
A conselheira tutelar Daniela Regis afirmou que esse foi o único caso que ela teve conhecimento onde foi oferecida a possibilidade do aborto legal. Como a avó é responsável pela guarda da menina, foi ela quem tomou a decisão. Para dona Ana, que é bastante religiosa, interromper a gravidez da neta se tornaria, conforme suas crenças, um peso em sua vida. Outro fator que a levou a tomar a decisão foi a hipótese de, um dia, o filho assumir os cuidados de Silene, que não tem autonomia para tarefas básicas do dia a dia.
O Ministério Público, por meio do promotor Luã Brito Barbosa, informou que atua para garantir o direito ao aborto legal em casos de estupro de vulnerável, quando é acionado por órgãos de saúde ou proteção. Se a adolescente manifesta interesse na interrupção, o MP acompanha as etapas legais e solicita o encaminhamento imediato ao serviço de saúde.
Engravidou aos 13, casou e se tornou vítima de violência doméstica
Ainda em Assis Brasil, encontramos Tuíra*, uma menina de 15 anos, que havia deixado a casa da mãe aos 13 para viver com o namorado, na época com 18 anos. Ela via outras meninas da mesma idade “arrumando marido” e acreditou que essa também seria uma boa escolha para ela. O relacionamento começou com trocas de mensagens por celular, e logo ela se mudou para morar com o companheiro. Inicialmente, ficaram de favor na casa de uma conhecida. No mês seguinte, descobriu que estava grávida.
Tuíra é indígena, nasceu em uma aldeia do Acre, mas foi morar com os pais em Assis Brasil quando ainda era criança. Ela disse que não tem mais contato com sua terra de origem nem com práticas culturais do seu povo. Muitos indígenas dos povos Manchineri e Yaminawá vivem na região urbana.
Após a descoberta da gravidez, ela se mudou para uma área rural do município, onde passou a viver com a sogra, o sogro e uma cunhada. Para chegar até Tuíra, nossa equipe fez uma viagem de barco de 1 hora pelo Rio Acre, seguida de uma caminhada de aproximadamente 15 minutos pela mata e mais meia hora a pé pela estrada de barro. Paramos no meio do caminho, na casa de uma vizinha, onde a jovem chegou com o filho no colo de carona em uma moto de trilha pilotada pela cunhada de 13 anos.
A conselheira tutelar Daniela Regis, que acompanha o caso de Tuíra há mais tempo, nos contou que o relacionamento, inicialmente marcado por promessas de amor, rapidamente se tornou abusivo e permeado por sofrimento. O companheiro da jovem fazia uso de bebida alcoólica em excesso, momentos em que a xingava e maltratava. E, depois de descobrir traições, a adolescente retornou para a casa da mãe.
Foi então que o Conselho Tutelar entrou em cena, oferecendo apoio para que a adolescente saísse do ciclo de violência. Daniela destacou que, em uma ação simbólica, a equipe de conselheiros levou um bolo para Tuíra, que nunca teve a oportunidade de comemorar um aniversário.
A realidade é gritante”, diz conselheira tutelar
As condições da casa onde Tuíra vivia com a mãe eram precárias. Ela acabou retornando para a casa do companheiro que insistia em tê-la de volta. O Conselho Tutelar continua acompanhando o caso. Daniela aponta que a realidade social do município é tão crítica que, se a lei fosse aplicada de forma estrita, muitos filhos precisariam ser afastados das famílias – mas não teriam vagas em abrigos. A conselheira enfatiza que as meninas buscam fugir da dificuldade financeira, se casam na tentativa de encontrar algum tipo de segurança ou afeto. “A realidade é uma coisa gritante.”
Durante o pré-natal, uma profissional de saúde teria mencionado a possibilidade de interrupção da gestação, mas Tuíra optou por seguir com a gravidez. Mas ela mesma não lembra o que foi dito pela pessoa que a atendeu. Hoje, cuida do filho com o apoio da sogra, enquanto estuda pela manhã, cursando o sexto ano do Ensino Fundamental. Para chegar à escola, percorre um trajeto a cavalo. Sonha em ser professora e diz que não pretende ter mais filhos.
A rotina de Tuíra é dividida entre o cuidado com o bebê e as tarefas domésticas: lavar roupa, fazer almoço. A família cria galinhas, porcos e produz alimentos que ajudam a reduzir os custos, já que vivem com a renda mensal de R$ 600 do Bolsa Família.
Apesar de tudo que presencia em Assis Brasil, a conselheira Daniela Regis destaca que há avanços graças ao trabalho de acompanhamento das famílias. Isso permite melhorias nas condições de cuidado e prevenção de novas violações de direitos. “De 10 famílias, conseguimos que seis façam mudanças reais. Mas as outras continuam”, lamenta.
Desconhecimento no posto de saúde
Nós visitamos um dos postos de saúde em Assis Brasil e conversamos com o clínico-geral, um médico boliviano que havia iniciado o trabalho no serviço brasileiro um mês antes, e com o enfermeiro, que já atua há mais tempo na unidade. Ambos afirmaram que nunca receberam orientações sobre o protocolo do serviço de aborto legal. “Já inicia o pré-natal, faz os exames, manda para o nutricionista, atendimento odontológico, faz tudo o que é relacionado à consulta do pré-natal. Tem acompanhamento psicológico se precisar”, disse o enfermeiro.
O médico falou que não tinha certeza sobre a idade de referência para caracterizar o crime de estupro de vulnerável. Ele nunca tinha ouvido falar sobre aborto legal. Segundo o médico, algumas meninas, ao chegarem ao posto de saúde, nem sabem que estão grávidas. O enfermeiro também desconhecia o direito à interrupção legal da gravidez, e afirmou que a maioria dos casos de gravidez entre meninas menores de 14 anos na cidade envolve indígenas.
A coordenadora da Vigilância Epidemiológica de Assis Brasil, Valcicleia da Silva Costa, confirmou as informações repassadas pelo médico e o enfermeiro do posto de saúde. Lá, o aborto legal só é realizado quando há algum ofício judicial autorizando o procedimento. Embora seja uma preocupação do serviço de saúde, segundo Valcicleia, não há nenhuma política pública em andamento voltada para atender essa demanda de gravidez infantil.
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) determina prioridade absoluta no acesso ao serviço de interrupção legal da gestação para crianças e adolescentes. De acordo com resolução, publicada no Diário Oficial da União em 8 de janeiro deste ano, “toda criança e adolescente deve ter acesso a informações sobre seu corpo para reconhecer e denunciar violência sexual”, além de “conteúdos sobre infecções sexualmente transmissíveis e métodos contraceptivos, conforme sua idade e maturidade”, descreve o documento.
“A resolução está recebendo críticas pelos setores que tentam impedir o acesso, inclusive com projetos de lei tentando derrubar”, analisou Beatriz Galli, assessora sênior de políticas e advocacy do Ipas (organização global de apoio à Justiça Reprodutiva), que também critica a omissão do governo federal na condução da política de saúde sexual e reprodutiva.
Mesmo o Brasil registrando, em média, 20,4 mil nascimentos por ano de meninas entre 10 e 14 anos, de 2014 a 2023, muitos desses casos ainda são tratados como se fossem situações normais de maternidade. Laura Molinari, coordenadora da ONG que defende o direito ao aborto, Nem Presa Nem Morta, acredita que a norma do Conanda oferece respaldo legal para que os profissionais atuem com mais segurança e sem medo de criminalização ao garantir os direitos das vítimas.
Durante a mobilização da campanha Criança Não é Mãe – que é permanente e teve forte atuação contra políticas antidireitos no Congresso Nacional no ano passado – Laura destaca que ficou evidente como esse tema ainda é tratado como algo comum, mesmo em contextos de violência. “O número de partos já indica que há uma naturalização do sistema de saúde. O encaminhamento automático para pré-natal. O uso da expressão ‘oi, mãezinha’. A opção do aborto não aparece em nenhum momento, assim como os impactos da gravidez na criança também são muito negligenciados”, elenca Laura Molinari.
*Schirlei Alves, gerente de projetos de AzMina atua com jornalismo investigativo orientado por dados e com foco em direitos humanos. Graduada pela Univali, é mestranda em Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina e especialista em Gestão Editorial pela Universidade Tuiuti do Paraná e em Jornalismo de Dados pelo Instituto Insper; Deyse Cruz-Noronha, graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Acre, é fotógrafa há 16 anos e segue a linha humanista em seu trabalho; dedicada também ao cinema, trabalhou nos curtas documentários “Entre Fronteiras”, “Ela Dela”, “A Mulher que Sumiu nas Águas” e no longa-metragem “Seringueiras”.
**Por se tratar de meninas menores de idade, os nomes verdadeiros foram preservados. Optamos por Silene em homenagem à ativista cultural acreana Silene Faria, fundadora da Federação de Teatro do Acre. Já o nome fictício da avó foi em homenagem à ativista brasileira Ana Montenegro, que foi militante na luta pelo acesso ao aborto legal e seguro no Brasil, além de atuar como defensora dos direitos humanos e da igualdade de gênero. E o nome Tuíra foi escolhido em homenagem à líder indígena Tuíre Kayapó, conhecida também como Tuíra, símbolo da luta pelos direitos dos povos originários e do protagonismo das mulheres na defesa de seus territórios.