Manicômios judiciários: relatório revela violações de direitos humanos em lugares que já não deveriam existir

Inspeção identificou mais de duas mil pessoas em manicômios e instituições similares. Resolução que determinou o fechamento desses locais está em julgamento no STF

Por Micael Olegário | ODS 10
Publicada em 21 de agosto de 2025 - 09:44  -  Atualizada em 21 de agosto de 2025 - 09:51
Tempo de leitura: 8 min

Manicômios judiciários visitados durante inspeção possuem condições precárias e que pioram quadro de saúde das pessoas (Foto: Divulgação/CFP – 2015)

Os manicômios judiciários não só ainda existem como seguem sendo “o pior da prisão com o pior do hospício”. É o que aponta o relatório produzido pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O levantamento identificou 2.053 pessoas com deficiência psicossocial em conflito com a lei institucionalizadas em manicômios e outras instituições similares.

Comidas estragadas, controle sobre o consumo de água, banheiros escavados no chão, choques elétricos, solitárias, violências psicológicas e físicas, tortura, isolamento, racismo, misoginia, capacitismo, transfobia. Essas são algumas das violações listadas entre os 26 aspectos críticos de desrespeito aos direitos humanos revelados no documento, feito a partir de visitas em 42 instituições e 21 estados brasileiros, entre janeiro e março deste ano. 

Leu essa? Caso Champinha: laudos divergentes e internação perpétua

O relatório da “Inspeção Nacional de Desinstitucionalização dos Manicômios Judiciários” foi produzido com o objetivo de investigar o processo de fechamento desses locais. Em 2023, a Resolução nº 487 do CNJ criou a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e estabeleceu regras e prazos para o cumprimento da Lei 10.216/2001 e o fim dos manicômios judiciários no Brasil.

“Este relatório é um documento histórico e urgente. Uma denúncia pública e técnica que escancara o que o Brasil insiste em esconder atrás dos muros e das grades dos estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico: a continuidade de práticas de tortura, de abandono, de medicalização forçada e de violações diversas a pessoas com deficiência psicossocial em conflito com a lei mantidas nos manicômios judiciários e instituições congêneres”, afirmou Alessandra Almeida, presidenta do CFP, durante o lançamento do relatório, em Brasília (DF).

Para a realização do levantamento, as equipes dos conselhos de psicologia visitaram diferentes Estabelecimentos de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (ECTPs – nome técnico dos manicômios), hospitais psiquiátricos, alas prisionais e comunidades terapêuticas. Em 11 estados foram constatadas práticas efetivas de desinstitucionalização, com um aumento no número de equipes de EAP-Desint (Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei).

Lançamento de relatório foi realizado em julho, em Brasília; documento aponta 26 violações críticas de direitos humanos (Foto: Divulgação/CFP)

O futuro dos manicômios judiciários

Em 2024, a resolução do CNJ que determinou o fim dos manicômios judiciários ganhou uma nova redação com prazos para que cada estado elaborasse um Projeto Terapêutico Singular (PTS). Esses documentos servem para orientar o processo de desinstitucionalização, garantindo o cuidado em articulação com a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), principalmente, com os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

Conforme dados do CNJ, Ceará, Goiás, Mato Grosso, Piauí e Roraima já fecharam parte dos seus manicômios judiciários. Até a publicação do relatório, apenas o Ceará já tinha cumprido todas as determinações da Resolução 487/2023. Em abril deste ano, o CNJ validou os projetos de 22 estados. Um deles é São Paulo, que concentra o maior número de pessoas em ECTPs – 897, segundo o relatório. Com base no PTS, cada estado definiu um cronograma para o encerramento das atividades dos manicômios. Em São Paulo, o prazo de interdição é até julho de 2026.

Não temos casos de reincidência, porque se tinha essa ideia de que abrir os manicômios seria deixar saírem ‘serial killers’ e pessoas muito perigosas. Pelo contrário, essas pessoas estavam marcadas para ficar presas para sempre

Clarissa Guedes
Psicóloga

Contudo, a resolução do CNJ enfrenta resistências e está em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), devido a quatro ações que alegam a inconstitucionalidade da medida. O julgamento está suspenso por conta de pedido de vista do ministro Flávio Dino. Antes disso, o relator do texto, ministro Edson Fachin, votou a favor da resolução e foi seguido por Luís Roberto Barroso.

Uma liminar do STF também determinou a suspensão do fechamento de três manicômios, com a justificativa de insuficiência da RAPS em acolher as pessoas egressas dessas instituições. “Há prazos diferentes, porque, assim, temos entraves, mas não pode haver retrocesso. Não faz sentido manter pessoas tendo seus direitos violados, sem acesso ao cuidado em saúde mental, por uma suposta ineficiência da RAPS”, comenta Clarissa Guedes, psicóloga do Tribunal de Justiça da Paraíba e uma das responsáveis por participar da construção do relatório do CFP.

Segundo Clarissa, o fortalecimento das RAPS e a criação de vagas em Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) são desafios reais para a desinstitucionalização, mas a situação é muito pior nos manicômios. “Não é fechar o manicômio judiciário e deixar as pessoas ao léu. Cada pessoa está voltando para o seu território e sua família com um projeto terapêutico singular”, explica a psicóloga.

Pior dos piores

Na Unidade Prisional Feminina e na Unidade Prisional Masculina Francisco de Oliveira Conde (FOC), em Rio Branco (AC), o fornecimento de água é feito uma única vez ao dia, por cerca de 15 a 30 minutos. Conforme o relatório da inspeção do CFP, as pessoas precisam guardar e dividir a água entre consumo, higiene pessoal e limpeza da cela.

“Identificamos pessoas que estão passando sede ou tendo acesso à alimentação estragada ou muito insuficiente do ponto de vista da segurança alimentar”, aponta Clarisse. Em comunidades terapêuticas fiscalizadas em Mato Grosso do Sul foram encontradas condições extremamente precárias de infraestrutura, com teto vazado, paredes com fungos e instalações elétricas com risco de curto-circuito. 

Na Penitenciária de Psiquiatria Forense da Paraíba (PPF), os sanitários são buracos no chão. A maioria dos ECTPs não possuem nenhuma acessibilidade e, em muitos locais, as próprias equipes de profissionais estão sobrecarregadas ou enfrentam condições precárias de trabalho.

O relatório do CFP também mostra que muitas pessoas presas nessas instituições possuem alvarás de soltura expedidos ou já tiveram a pena extinta. Nesse contexto, elas seguem internadas sem qualquer fundamento clínico-jurídico. Sobre essa realidade, Clarissa lembra que a interdição dos manicômios judiciários envolve o estigma do “louco-infrator” como uma pessoa perigosa.

“Não temos casos de reincidência, porque se tinha essa ideia de que abrir os manicômios seria deixar saírem ‘serial killers’ e pessoas muito perigosas. Pelo contrário, essas pessoas estavam marcadas para ficar presas para sempre”, afirma a psicóloga. Para ela, uma das principais violações nas ECTPs é privar essas pessoas de qualquer cuidados mínimos em saúde mental, expondo-as a ambientes que agravam o sofrimento psicológico.

Penitenciária de Franco da Rocha, em São Paulo; estado possui o maior número de pessoas com deficiência psicossocial em conflito com a lei (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Interseccionalidade

Existem poucas estatísticas sobre o perfil das pessoas em manicômios judiciários, mas a grande maioria são homens, sobretudo, pretos e em situação de vulnerabilidade, o que revela uma dimensão do racismo científico no Brasil. “Essas pessoas, muitas vezes, nunca tiveram acesso a nenhum cuidado em saúde mental e só depois que elas cometem uma contravenção penal é que vão parar no manicômio judiciário”, ressalta Clarissa Guedes.

Mulheres e pessoas trans correspondem aos menores percentuais das pessoas institucionalizadas em ECTPs, porém, sofrem ainda mais violações. “A população de mulheres é muito menor, mas para elas as violações são ainda mais graves. Inclusive por ser um número menor, elas ficam em espaços piores”, denuncia a psicóloga do CFP.

O relatório também lista uma série de recomendações para a continuidade do processo, já em curso, de interdição dos manicômios judiciários no Brasil. Parte disso e da luta antimanicomial, passa por mostrar os resultados onde o processo já tem avançado e contribuído com a autonomia e reabilitação dessas pessoas. “Tem casos de pessoas que estão saindo das residências terapêuticas, porque estão construindo laços e conseguindo se reorganizar”, destaca Clarissa.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Sair da versão mobile