Senadores tentam acelerar projeto para permitir até garimpo em terras indígenas

Entidades denunciam inconstitucionalidade, violação de direitos e ameaças aos povos originários e também ao meio ambiente e à biodiversidade

Por Oscar Valporto | ODS 15ODS 16
Publicada em 20 de agosto de 2025 - 09:37  -  Atualizada em 20 de agosto de 2025 - 10:07
Tempo de leitura: 9 min

Garimpo ilegal na Terra Yanomâmi: Senadores tentam acelerar projeto para permitir até garimpo em terras indígenas (Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil – 02/03/2023)

Após aprovar o projeto de lei destroçando o licenciamento ambiental, que teve 63 vetos do presidente Lula, novo ataque ao meio ambiente está em gestação no Congresso onde senadores tentam acelerar a aprovação do PL 6.050/2023, que regulamenta a exploração econômica em terras indígenas, como extração de minerais, inclusive por meio de garimpo, de petróleo e de gás natural. Após a aprovação do projeto na Comissão de Direitos Humanos (CDH), os senadores do colegiado também aprovaram requerimento de urgência para que a matéria não passe por outras comissões e vá direto à votação no Plenário.

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Enquanto aguardam a decisão do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, sobre o pedido, os senadores da CDH podem aprovar nesta quarta (20/08) o PL 1331/2022 que autoriza, especificamente, “a pesquisa e a lavra de recursos minerais” em terras indígenas homologadas ou em processo de demarcação. Entidades indígenas denunciam os projetos como parte dos ataques sistemáticos para enfraquecer as garantias aos povos originários na Constituição. “Os projetos de ei nº 1331/2022 e nº 6050/2023 representam uma ameaça direta aos direitos fundamentais dos povos indígenas do Brasil, ao propor a abertura de seus territórios para atividades econômicas como mineração, produção de energia, agricultura comercial e turismo”, afirma nota técnica elaborada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e encaminhada ao Senado e aos partidos.

O documento de 33 páginas alerta que os projetos de lei promovem “a flexibilização do usufruto exclusivo dos territórios indígenas”, disposto no artigo 231 da Constituição Federal, e ignoram os direitos de “consulta e consentimento livre, prévio e informado”, assegurados pela Convenção nº 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), do qual o Brasil é signatário. “As tentativas recorrentes de legalizar a exploração econômica dos territórios indígenas revelam uma agenda desenvolvimentista e extrativista que busca chancelar o desmonte das políticas indigenistas no Brasil, calcadas em propostas legislativas que acentuam os conflitos nos territórios, fragilizam os instrumentos de proteção da biodiversidade e da gestão territorial e ambiental indígena, e abrem caminho para violações generalizadas aos direitos humanos”, denuncia a nota técnica da APIB.

De acordo com a análise da entidade, que reúne sete organizações indígenas de diversas partes do Brasil, os dois projetos de lei trazem uma “nova roupagem” a trechos do PL 191/2020, que foi encaminhado pelo Governo Bolsonaro ao Congresso para a “regulamentação” da exploração de recursos em Terras Indígenas. Lideranças indígenas mobilizaram-se contra o projeto que avançou pouco. Com o novo governo, a APIB e outras entidades pediam ao Ministério dos Povos Indígenas a retirada do projeto, pedido feito formalmente pelo presidente Lula ao Congresso em 31 de março de 2023, o que resultou no arquivamento. Os dois projetos em tramitação no Senado, de acordo com a nota técnica, “desrespeitam os direitos constitucionais e coletivos” dos povos indígenas.

Requerimento de urgência

O PL 6.050/2023, já aprovado pela CDH, foi proposto pela CPI das ONGs, que funcionou no Senado entre junho e dezembro de 2023. Relator da CPI, o senador Marcio Bittar (União-AC) foi também o relator do PL na comissão e defendeu a aprovação da proposta que regulamenta a exploração econômica em terras indígenas, como extração de minerais – inclusive por meio de garimpo – de petróleo e de gás natural e também disciplina o uso de recursos hídricos para geração de energia e as atividades ligadas ao ecoturismo e ao etnoturismo.

O texto estabelece condições, direitos e obrigações dos envolvidos nessas atividades, como consulta prévia aos povos locais e licenciamento ambiental e prevê também pagamento aos indígenas pela participação nos resultados, indenização e medidas de compensação pelos impactos ambientais causados. “Essa exigência confere protagonismo às comunidades indígenas, garantindo-lhes a autonomia para decidir sobre o uso de seus territórios e o modelo de desenvolvimento que consideram adequado às suas tradições e necessidades”, argumentou Bittar.

Além de aprovar o relatório, a CDH aprovou requerimento de urgência para a matéria, o que faria ela ser votada pelo Plenário sem passar por outras comissões: de acordo com o despacho inicial da Mesa Diretora do Senado, o projeto deveria seguir para análise também da Comissão de Serviços de Infraestrutura (CI) e posteriormente para a Comissão de Meio Ambiente (CMA) e para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ).

Na nota técnica, a APIB avalia que o PL 6.050/2023 converte o garimpo, “uma prática historicamente associada à ilegalidade e violência”, em atividade econômica legítima, “afrontando preceitos constitucionais fundamentais” – além de esvaziar a exigência de consulta prévia. “O Projeto de Lei nº 1331/2022 prevê medidas que, sob o argumento de garantir autonomia aos povos indígenas, abrem amplas possibilidades para a exploração econômica predatória de seus territórios”, aponta o documento.

Para a entidade indígena, ao instituir indenizações pelo chamado “usufruto restrito” e compensações por impactos sociais, culturais, econômicos e ambientais, o texto do projeto ” legitima, de forma implícita, a restrição de direitos originários e imprescritíveis
assegurados pela Constituição”. A nota critica o estabelecimento de conceitos amplos de “atividades econômicas” e “infraestrutura associada”, admitindo desde práticas de subsistência até grandes obras e empreendimentos industriais, “sem prever salvaguardas robustas de consulta prévia, livre e informada, como exige a Convenção 169 da OIT”.

A APIB argumenta que o PL afronta o artigo 231 da Constituição. “O principal vício de inconstitucionalidade do projeto reside na sua tentativa de legalizar, de forma indireta, a prática do garimpo em terras indígenas”. O documento acrescenta ainda que “o projeto flexibiliza indevidamente as garantias constitucionais relacionadas ao usufruto exclusivo dos povos indígenas sobre suas terras tradicionalmente ocupadas”, assegurado pelo caput e §2º do artigo 231 da Constituição. “Ao permitir a instalação de infraestrutura (estradas, ferrovias, sistemas elétricos) e a realização de atividades econômicas comerciais e industriais, o projeto cria brechas para a ocupação e exploração por interesses externos, promovendo a mercantilização das terras indígenas”, afirma a nota.

A Apib aponta ainda outra “flagrante inconstitucionalidade” no projeto PL 6050/2023, por ter sido elaborado e apresentado sem qualquer consulta prévia, livre e informada às comunidades indígenas ou a participação de suas entidades representativas. “A ausência de procedimento de consulta constitui violação direta dos princípios da participação e da autodeterminação indígena, comprometendo a legitimidade democrática do processo legislativo, sobretudo quando afeta direitos fundamentais de coletividades vulnerabilizada”, destaca o texto.

Garimpo em terra indígena na Amazônia: para entidades, projetos são inconstitucionais, violam direitos e ameaçam povos originários, meio ambiente e biodiversidade (Foto: Leo Otero / PMI / Agência Brasil – 11/02/2023)

Impactos nocivos do garimpo

O projeto de lei 1331/2022 também estava na pauta da reunião de 13 de agosto da CDH, que é presidida pela senador bolsonarista Damares Alves, quando o PL 6050/2023 foi aprovado. Mas acabou sendo retirado da pauta pelo autor, o senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR), convencido por colegas de priorizar a aprovação da outra iniciativa, mais ampla. O PL 1331/2022 trata especificamente da regulamentação da pesquisa e lavra de recursos minerais em terras indígenas homologadas ou em processo de demarcação.

Para a APIB, a proposta tem os mesmos vícios de inconstitucionalidade e as mesmas ameaças aos povos indígenas, destacando a violação do direito ao usufruto exclusivo, “ao autorizar o garimpo por terceiros em terras indígenas, o projeto afronta diretamente o Artigo 231″ da Constituição”. aponta. “O projeto carece de critérios claros para a consulta, mecanismos de compensação adequados, garantias de proteção ambiental e previsão de veto comunitário. Além disso, ao prever a possibilidade de mineração por terceiros e livre iniciativa indígena, o projeto desconsidera os profundos impactos profundos sobre modos de vida, saúde e segurança alimentar das comunidades”, acrescenta a nota técnica.

A entidade indígena destaca os evidentes efeitos nocivos da atividade garimpeira nas terras indígenas. “A mineração ilegal, que esses projetos podem inadvertidamente legalizar e expandir, já causa impactos socioambientais devastadores em terras indígenas, afetando as dimensões ambiental, social, sanitária e cultural. Os casos dos povos ianomâmis e mundurukus são exemplos contundentes” argumenta a Apib.

O documento lembra que o povo Yanomâmi, entre os estados do Amazonas e Roraima, enfrentou uma das crises humanitárias mais graves do Brasil, com um colapso sanitário que inclui desnutrição infantil, malária e violência sexual. E que a presença de cerca de 20 mil garimpeiros ilegais no território impedia a locomoção e o cultivo dos próprios alimentos. “A contaminação por mercúrio — substância largamente utilizada na separação do ouro — afeta não apenas o meio ambiente, mas também o organismo das populações indígenas”, frisa a nota. “Dados coletados pela Fiocruz indicam que aproximadamente 90% dos Yanomamis de aldeias assediadas pelo garimpo estão contaminados pelo metal, e indígenas com níveis maiores apresentaram déficits cognitivos e danos nervosos”.

A APIB também destaca o drama enfrentado pelos Mundurukus, no sudoeste do Pará. “o território foi invadido por operações articuladas de garimpeiros ilegais, frequentemente protegidos por milícias e facções criminosas, localizado em áreas ricas em recursos hídricos e
minerais”, aponta a nota técnica.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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