(Juliana Lourenço*) – As meninas indígenas são as mais afetadas, proporcionalmente, nas estatísticas de maternidade infantil, resultado de violências sexuais que atravessam seus corpos há séculos. Dos cem municípios com as maiores taxas de fecundidade (nascimentos) entre meninas de 10 a 14 anos nos últimos dez anos, pelo menos 90 estão concentrados em regiões com forte presença indígena.
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Entre 2014 e 2023, nasceram 8.820 crianças filhas de meninas indígenas nessa faixa etária no Brasil, de acordo com o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc). Este número é, provavelmente, ainda maior, considerando a subnotificação, equívocos ou ausência de inclusão de raça/etnia no momento do registro de nascimento.
Os municípios de Campinápolis (MT), Nova Nazaré (MT), Assis Brasil (AC), Itacajá (TO), General Carneiro (MT), Jacareacanga (PA), Tocantínia (TO), Alto Alegre (RR) e Uiramutã (RR) são as mais altas taxas de fecundidade de meninas com até 14 anos, sendo Uiramutã a cidade mais indígena do país, conforme o último censo do IBGE, realizado em 2022.
Esse é um debate complexo que as mulheres indígenas estão aprofundando coletivamente há pelo menos seis anos, desde a 1ª Marcha das Mulheres Indígenas, explica a antropóloga Joziléia Kaingang, que é cofundadora da Articulação das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga). Elas percebem a necessidade de discutir as inúmeras violências presentes nas realidades das mulheres indígenas, independentemente do contexto em que estão inseridas, se em seus territórios tradicionais ou nas cidades.
“A violência está presente dentro das comunidades indígenas, o racismo, o machismo, a sexualização e a subalternização dos corpos das mulheres chegam com força até mesmo para os próprios líderes indígenas”, declarou Joziléia à reportagem do projeto Meninas Mães, de AzMina..
A antropóloga também aponta que há uma questão cultural que envolve a concepção de maioridade dentro de muitas culturas indígenas, que é marcada pela primeira menstruação. Mas Joziléia ressalta que, apesar de não estarem abandonando aspectos culturais, as mulheres indígenas estão tendo outra visão sobre si.
A violência não é cultural
“Não estamos rompendo com um traço cultural, mas sim oportunizando que as mulheres indígenas vivam suas vidas com dignidade sexual”, acrescenta Joziléia. E destaca que “quando compreendemos que não queremos isso (a maternidade precoce) para nossas filhas, conseguimos fazer com que a comunidade entenda a necessidade dessa mudança.”
Avelin Buniacá Kambiwá, indígena socióloga do povo Kambiwá, em Pernambuco, reforça que o debate sobre a violência de gênero ainda é muito novo dentro do movimento indígena. Por muito tempo o tema foi tratado como tabu, pois pautar a questão do estupro e a violência sofrida por essas mulheres dentro e fora das aldeias poderia dividir a unidade coletiva dos povos.
Assim como Joziléia, Avelin também ressalta que existem questões antropológicas muito profundas, como os ritos de passagem que geralmente ocorrem com a primeira menstruação – e aí essa menina é vista como adulta perante sua comunidade, podendo, assim, se tornar mãe.
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Veja o que já enviamosO Código Penal brasileiro, no entanto, considera que até completar 14 anos a pessoa é vulnerável e, portanto, quem tem relação sexual com ela está cometendo um estupro, levando assim ao direito do aborto legal, caso essa violência resulte em gravidez. A legislação do Brasil, porém, não faz distinção entre meninas indígenas ou não indígenas.
“Então, a gente precisa entrar nesse consenso, do Código Penal brasileiro ou do relativismo antropológico”, analisa a socióloga indígena. Mas Avelin destaca que o nível de violência, de invasão, de vulnerabilidade são tão grandes, que não há mais tempo para fazer questionamentos antropológicos e sim defender todas as meninas.
A socióloga do povo Kambiwá alerta que, seja no contexto aldeado ou urbano, as meninas indígenas continuam engravidando muito cedo. Ela conta que sua própria mãe foi dada em casamento aos 14 anos para seu pai, que à época tinha 33 anos. “Isso a 50 anos atrás, e hoje ainda é assim, as meninas casando jovens, mas agora com a possibilidade de se separar, não tem mais essa questão da permanência, como existia na época da minha mãe”, conta Avelin.
Um sistema que falha em proteger
Bekóy Tupinambá, liderança e comunicadora do povo Tupinambá de Olivença, na Bahia, reforça que a violência não é um traço cultural dos povos indígenas e sim reflexo de um sistema que falha em proteger. Ela também é ativista pelos direitos das crianças e adolescentes no enfrentamento à violência sexual, da qual foi vítima dos seus 3 aos 27 anos.
Nos territórios indígenas, muitas vezes a realidade dessas meninas é interpretada com distorção, segundo Bekóy, que enfatiza que a cultura indígena tem um respeito profundo pela vida e pela infância, e não há espaço para a ideia de que a violação possa ser culturalmente aceita. “Pelo contrário, é justamente o racismo estrutural que tenta colocar sobre nós esse estigma.”
O número de mulheres indígenas vítimas de violência sexual mais que triplicou, entre 2014 e 2023, de acordo com levantamento divulgado pela Gênero e Número, com dados do Ministério da Saúde. Entre as mulheres de todas as raças teve um aumento de 188%; já entre as mulheres indígenas, o número de registros de assédio, estupro, pornografia infantil e exploração sexual salta para 297%. E mais de 50% das vítimas de violência sexual, com foco em mulheres indígenas, são menores de 14 anos.
Em todos os cenários analisados, os números de violência contra a mulher indígena (física, psicológica e sexual) sempre estão acima da média nacional da população geral, o que reforça um alerta de quão vulneráveis essas vítimas estão.
Na avaliação de Bekóy, essa realidade de violações e insegurança atravessa contextos indígenas assim como os demais espaços sociais, a diferença é que o acesso à denúncia, justiça e acolhimento não ocorrem da mesma forma. Há falta de informação, medo e julgamentos em comunidades indígenas. “Na maioria das vezes, o aborto legal sequer é apresentado como opção.”
A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) muitas vezes não está preparada para atender esses casos com a sensibilidade e o acolhimento necessários, apontam mulheres indígenas ouvidas nesta reportagem. E ainda há muitas interferências religiosas ou morais que silenciam o debate.
O direito não garantido
Mesmo quando há acesso à informação, as mulheres indígenas frequentemente enfrentam barreiras que culminam na morte daquela que deveria ser assistida pelo poder público. Como foi o caso de Mirian Bandeira, mulher indígena de 35 anos que foi vítima de estupro pelo ex-companheiro e teve o aborto negado pelo Estado. Mãe de dois filhos, e residente da Terra Indígena Mangueirinha, dos povos Kaingang e Guarani, ela descobriu a gravidez com 20 semanas na Unidade Básica de Saúde (UBS) de Guarapuava (PR).
A idade gestacional foi outra barreira imposta a ela, para que não fosse realizada a interrupção da gestação. Mirian foi acolhida pela Defensoria Pública do Paraná e por coletivos e redes de proteção feministas, mas mesmo assim teve que seguir com a gestação. Mirian faleceu no parto e a criança, assim como seus outros dois filhos órfãos, vivem com sua família.
A juíza responsável pelo caso, contou a antropóloga Joziléia Kaingang, pretendia colocar a criança para adoção nacional, o que contraria o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), que prioriza a adoção de crianças indígenas por famílias indígenas.
A socióloga Avelin Kambiwá considera que o aborto sequer é visto como uma possibilidade, seja para a menina indígena aldeada ou em contexto urbano. Segundo ela, apenas as mulheres mais velhas ainda tentam apoio junto aos coletivos de mulheres. Mas isso não garante que o direito à interrupção da gravidez seja plenamente exercido.
O papel da saúde pública no enfrentamento
“O constante apagamento dessas violências dentro e fora dos territórios tem levado muitas meninas indígenas ao suicídio”, afirma Kysã Kaingang, psicóloga indígena. Ela defende que o Estado se importe em mapear os números de gravidez na infância e adolescência de meninas indígenas, para que políticas públicas possam ser pensadas e pautadas na discussão de violência sexual e de gênero.
Kysã avalia que a maternidade infantil afeta não somente o corpo físico, mas também o emocional e o social, uma vez que a criança e a adolescente estão em processo de desenvolvimento psicológico, e alterações hormonais bruscas comprometem essas etapas. Há ainda uma enorme sobrecarga e responsabilidade sobre uma criança que sequer sabe o que gestar e maternar significam, indica a psicóloga indígena.
“Uma das primeiras violências trazidas pelo colonizador foi a violência contra a mulher indígena, não é possível negar que até hoje essas violências têm consequências diretas na vida de mulheres e meninas indígenas”, afirma Kysã. Ela lembra dos diversos casos de adolescentes violentadas por garimpeiros dentro e fora dos territórios, com “o machismo e a cultura do estupro sendo perpetuada também dentro das aldeias.”
O que vemos, conforme a psicóloga, é mais violência sendo reproduzida contra essas meninas, que têm muitas vezes atendimento médico negado, sofrem violência obstétrica ou são convencidas por ONGs e igrejas a não abortarem por isso ser considerado um pecado na visão cristã. “É preciso pensar estratégias que sejam efetivas, campanhas de conscientização e educação sexual, acesso básico à saúde e acompanhamento gestacional de qualidade, que respeite a maneira de parir e cuidar de sua gestante dentro de sua própria cultura”, finalizou Kysã.
A médica indígena que atua no Sistema Único de Saúde (SUS), Jennifer Truká, opina que, apesar de existir o direito ao aborto legal em casos de estupro de vulnerável, não vê esse direito sendo aplicado na prática. Jennifer considera que a medicina ocidental pode atuar em conjunto com a medicina indígena para promover acolhimento e orientação, mas é necessário que os profissionais de saúde tenham o conhecimento básico para trabalhar com povos indígenas.
Uma formação poderia explicar as particularidades de cada povo onde o prestador de serviço está sendo inserido. “Ter pessoas do próprio povo atuando nos territórios melhorou muito, e não mais jogar pessoas aleatórias que nunca trabalharam com indígenas”, diz Jennifer.
Organizadas e ocupando todos os espaços
Diante dos contextos de violências, as mulheres indígenas passaram a se organizar coletivamente, em seus territórios e no movimento indígena nacional. A Associação de Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro foi a primeira organização de mulheres do país, criada em 1984. De lá pra cá, elas passaram a se mobilizar criando outras associações e participando de momentos cruciais na luta pelos direitos dos povos originários, a exemplo de Quitéria Binga Pankararu (em memória), que foi ativa no processo da Constituinte e criadora da primeira creche indígena do Brasil.
Durante o Acampamento Terra Livre (ATL) de 2019, as mulheres indígenas organizadas levantaram pautas acerca da violência que atingem seus corpos e territórios, que culminaram na realização da 1ª Marcha das Mulheres Indígenas, com o lema “Território: nosso corpo, nosso espírito”, em 9 de agosto do mesmo ano, em Brasília. Em 2021, no ano da 2ª Marcha das Mulheres Indígenas, surge a Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), em nível nacional.
A chegada às universidades também possibilitou que mulheres indígenas estivessem em contato com temas relacionados à violência de gênero, aborto e direitos reprodutivos. Na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP-SP), as estudantes indígenas criaram o coletivo “Acadêmicas Indígenas Uirapuru (AIU)”, que promove apoio, acolhimento às universitárias, além de rodas de conversa sobre questões de gênero nas relações indígenas, segurança e saúde.
Durante a campanha “Criança Não é Mãe”, contra o Projeto de Lei 1904/2024, que equipara o aborto legal ao crime de homicídio, as mulheres indígenas também tiveram seu papel em levantar suas vozes contra a imposição da gravidez a crianças e adolescentes. A deputada estadual Célia Xakriabá (PSOL-MG), em um ato em Belo Horizonte, declarou que nenhum resultado de família pode ser o resultado de estupro. “São as mesmas caras que votaram o Marco Temporal, que votam o garimpo legal, que autorizou estuprar mais de trinta meninas Yanomami.”
*Juliana Lourenço é ativista indígena, mãe, jornalista e artesã
**Reportagem com colaboração de Lu Belin