Outro dia, subindo a pé a mesma ladeira que me levava à casa da minha avó (que já partiu mais de vinte anos, mas que continua me puxando de volta sempre que o corpo decide se lembrar do passado) me veio a lembrança de quando consegui vencê-la de bicicleta, ainda criança. Eu suava, a respiração rasgava, a rua parecia nunca acabar. E chegar ao topo foi uma glória tão íntima que, na época, eu nem tinha palavras para nomear. Hoje percebo que a subida nem é tão íngreme, mas entendo que percorrê-la na íntegra, na época, foi uma das minhas primeiras vitórias conscientes.
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Crescer me ensinou que elas nunca foram óbvias, como chegar viva e inteira aos 40. Depois de atravessar uma depressão que me afundou por meses. Um câncer de mama que quase me matou. Uma pandemia que roubou nossas rotinas e pessoas queridas. Um relacionamento abusivo que tentou me roubar de mim mesma. Cada manhã em que abro os olhos é uma vitória que não sai no jornal, e é assim pra todo mundo, de conseguir levantar da cama no frio a ser capaz de concluir um grande projeto profissional. A lente mais nítida de uma conquista só é acessível a nós mesmas.
Sendo mulher, há muitas outras, quase invisíveis invisíveis a olho nu (sobretudo o alheio), que tenho certeza que compartilho. Pagar uma conta sem entrar em dívida. Sair sozinha à noite sem que o medo paralise as pernas. Ver meu corpo resistir quando disseram que não daria conta. Poder olhar para trás e não sentir vergonha de ter mudado de opinião. Rir alto no ônibus. Dizer não sem tremer (nessa ainda preciso subir ao pódio, mas estou em treinamento intensivo).
Também existem as vitórias que, por serem coletivas, ganham outra dimensão: barrar a lei que torna crime o aborto em casos garantidos por lei e obriga mulheres a parirem filhos de um estupro. A condenação, mesmo que tardia, de um feminicida ou abusador. O direito de votar e ser votada, ainda que a política continue nos cuspindo para fora das mesas de decisão. E tantas outras que parecem dadas, direitos certos e inameaçáveis. Mas são conquistas arrancadas a fórceps, nunca oferecidas de bom grado.
Tudo isso em meio a um mundo que insiste em nos enterrar: Donald Trump mais uma vez alimentando o grotesco da extrema direita e massacrando todo mundo e todo o mundo (ou, ao menos, tentando). Bolsonaristas que seguem transformando o Brasil em caricatura de si mesmo. O planeta ardendo no aquecimento global enquanto se morre às centenas em Gaza diariamente, sem que a palavra humanidade pareça ter peso algum. Nesse cenário de derrotas diárias e tragédias normalizadas, celebrar nossas vitórias é um ato de insurgência.
Eu espero muito que mesmo diante de dores indizíveis, a gente continue somando vitórias silenciosas e as fazendo ecoar, mesmo enquanto o mundo tenta contabilizar apenas as nossas perdas. Que nossos triunfos, os minúsculos e os gigantes, nos lembrem sempre de uma coisa inegociável: não estamos aqui para sermos salvas, mas para para seguirmos vivas, ruidosas e insubmissas.