Faltou luz na serra, e a paradisíaca tarde do céu irretocável de inverno devolveu a vida ao velho e delicioso normal dos tempos pré-internet. Só assim para a estante recuperar o merecido protagonismo; recém-arrumada, apresenta os livros ainda em ordem, por autor. Estão lá exatos 32 livros de Luis Fernando Verissimo, maior coleção do acervo – e mesmo assim, poucos, diante dos mais de 80 que compõem a obra desse gênio brasileiro.
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É sempre hora de revisitá-lo. Diante da prateleira, vem à memória a história do patriarca que deixou pequena fortuna guardada dentro de um livro, numa biblioteca gigantesca. O texto, então, passeia por obras icônicas, relacionando-as com a riqueza, o capitalismo, a cobiça, como pistas de onde estaria guardada a herança.
Verissimo nunca escreveu nada sequer regular, é daqueles craques que só produzem maravilhas. Assim, vamos no primeiro da estante, a partir da porta: “Ver!ssimas – Frases, reflexões e sacadas sobre quase tudo”, coletânea editada pela Objetiva em 2016, a partir da seleção de Marcelo Dunlop. Uma sucessão de verbetes em ordem alfabética, de “Abacaxi” a “Zodíaco” – além de ilustrações igualmente brilhantes.
Logo no início, a surpresa pela atualidade: “Certas opiniões podem me custar amigos. É pena. Prefiro ter amigos a ter opiniões”. Poucas páginas adiante, mais uma: “No Brasil, o fundo do poço é apenas uma etapa”. A ironia política desfila exuberante: “Pense só: quando esse cometa passar por aqui de novo, daqui a 66 anos, nossos netos é que estarão discutindo a reforma agrária”. A econômica, também: “Assim é o inevitável mundo moderno, a culpa é de ninguém, dizem eles. Ser neoliberal é jamais ter que pedir perdão”.
Há também, precisas lições de convivência: “A vida me ensinou uma coisa importante: nunca acredita quando alguém diz ‘você pode me falar com toda a franqueza’”. E mais atualidade: “Desconfie sempre dos que pregam banhos de sangue, eles sempre se referem ao sangue dos outros”. E mais Brasil: “Nossas instalações carcerárias melhorariam muito se as elites começassem a frequentá-las”. Ou: “A Constituição brasileira, como se sabe, sai em fascículos”. Ou ainda: “Até hoje, ninguém que confiou na falta de memória do Brasil se arrependeu”.
São, ao todo, cerca de 800 frases e rigorosamente todas valem a pena. “Bufê do mais fino humor”, define o organizador, deslumbrado como qualquer um que conheça as obras do criador da Velhinha de Taubaté (“a última pessoa a acreditar no governo”), do Analista de Bagé e seus joelhaços, da Família Brasil, de “Mort. Ed Mort. Está na placa”, das “Comédias da vida privada”, de Dudu o Alarmista, da socialite Dora Avante, das Cobras… Filosofia, crítica, ficção, denúncia, paixões – fica tudo melhor na escrita de Verissimo.
Durante muito tempo, ele foi o escritor brasileiro que mais vendeu livros, mas sempre manteve colunas em jornais. No Rio, escreveu no Jornal do Brasil e n’O Globo. Tímido, visitava as redações em ritmo bissexto – também porque, nessas raras oportunidades, a idolatria se expressava intensa. Certa vez, no JB, formou-se fila comprida de embevecidos jornalistas para cumprimentá-lo.
A luz voltou na serra, e com ela a internet; caiu a noite, mas as pérolas de Verissimo tornaram-se imbatíveis. Algumas vivem na parede da memória, por aquelas razões indecifráveis das preferências humanas. Sobre o Internacional, paixão futebolística do cronista, escreveu que o vermelho do clube seria impossível de definir, como o azul descrito por Paulinho da Viola em “Foi um rio que passou em minha vida”. (Sobre o clube, escreveu o livro “Internacional, autobiografia de uma paixão”.)
Em outra crônica, criou diálogo perfeito entre dois amantes, o homem admirado por enfileirar frases antológicas, que arrebatavam a moça. Corta para os dois na cama, ela entediada, e ele anotando: “Naquela hora, o que foi que respondi mesmo?”
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Veja o que já enviamosDe amores, tem mais. Como a do homem que, voltando para casa após um dia insano de trabalho, fura o pneu do carro em meio a uma chuvarada. Ele desce para trocar pelo estepe; na mistura de óleo e água, sua aliança escorrega do dedo, rola até um bueiro e desaparece para sempre. Ao chegar em casa, muitas horas depois, a mulher logo nota a falta da joia e pergunta, furiosa, onde ele estava. “No motel, com outra. Acabei esquecendo a aliança. Mas voltei para você”. A esposa, então responde: “Tudo bem, pelo menos você me contou a verdade”.
São recordações inscritas nas paredes da memória, resultado das leituras de uma vida inteira, ao lado das lembranças dos poucos momentos de convivência com o ídolo. Por exemplo, na Copa do Mundo de 2006, quando ele fez parte da equipe d’O Globo na Alemanha. Viajou, como sempre, na companhia da mulher, Lucia, com quem vive o inquebrável amor de toda uma vida. Dos mais de 20 integrantes da caravana do jornal, os dois eram invariavelmente os primeiros a chegarem prontos ao saguão do hotel, para o dia de trabalho. Aguardavam, com paciência e bom humor, os retardatários, na simplicidade das melhores pessoas.
Da viagem também sobraram fotos (uma delas está aqui na coluna) e uma relíquia: uma coluna de Verissimo, que ele pediu para transmitir ao jornal, da sala de imprensa do estádio de Munique. Tenho o texto original, digitado por ele, guardado. Nele, o cronista homenageia Bussunda, genial humorista do Casseta e Planeta, que morreu durante o mundial, vítima de parada cardíaca. “Certa vez o Serginho Grossman teve a ideia de nos convidar, ele e eu, para falar sobre humor no seu programa. Triste ideia. Não falamos muito nem sobre humor nem sobre outra coisa. Mas depois o Bussunda me assegurou que nossos silêncios tinham sido inteligentes”, homenageou Verissimo no texto que guardei.
A pouco mais de um mês de completar 89 anos, o magistral escritor gaúcho está internado na sua Porto Alegre, em estado grave, devido a uma pneumonia. Tem vivido recluso desde 2021, quando sofreu um AVC, que se somou ao Mal de Parkinson. O acidente vascular afetou justamente a área do cérebro responsável pelas palavras. Comunica-se basicamente com mãos e olhar. “Um dia, ele chegou a dizer: ‘Eu não falava porque não queria, agora não falo porque não posso’”, recordou Lucia ao repórter Fabio Victor.
Verissimo recusou-se a fazer fonoaudiologia, deixando os descaminhos da mente humana seguirem seu curso. Agora, pronuncia poucas palavras, e em inglês. “São coisas soltas, yeah, thank you, stop. Não chega a fazer uma frase, mas é em inglês. De vez em quando, os rapazes que ficam com ele [fisioterapeutas e enfermeiros] dizem também ‘Stop’, ‘No’, ‘Thank you, my friend'”, detalhou a parceira, 81 anos recém-completos, casada há 61 com o escritor.
Os fãs seguem sua romaria à casa do colunista (e humorista, desenhista, saxofonista, entre outros muitos talentos) e, na falta de condições para autógrafos, recebem uma bem-humorada ilustração, com auto-retrato e frase bem no estilo dele, impressos por meio de carimbo. “Um abraço com carimbo do Luis Fernando”.
Abraço para você também, Verissimo amado. Força. Para reverenciá-lo, nunca faltará luz.