PL das Fake News: divergência sobre órgão regulador trava votação

Aula sobre notícias falsas em colégio paulista: divergências sobre órgão regulador são principal entrave à votação de PL das Fake News (Foto: Miguel Schincariol / AFP – 25/09/2018)

Especialistas defendem um órgão regulador multissetorial para a fiscalização do cumprimento das regras criadas pelo projeto

Por Ana Carolina Aguiar | ODS 16 • Publicada em 30 de maio de 2023 - 10:09 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 13:05

Aula sobre notícias falsas em colégio paulista: divergências sobre órgão regulador são principal entrave à votação de PL das Fake News (Foto: Miguel Schincariol / AFP – 25/09/2018)

Um dos principais entraves para a votação do PL 2630/2020, conhecido como o PL das Fake News, é a definição do órgão regulador responsável pela fiscalização do cumprimento das novas regras. Retirado de pauta após a apresentação do relatório do deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), o projeto de lei vem passando por novas discussões mas o próprio relator já admitiu que o maior impasse para a votação é sobre quem assumirá o papel de autoridade regulatória.

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Pesquisadores defendem um órgão regulador multissetorial para a fiscalização, com a participação de diversos segmentos da sociedade e do próprio poder público. “Se você tem um órgão indicado só pelo Executivo, por exemplo, você está incorrendo no risco da indicação de pessoas sem compromisso com a liberdade de expressão caso seja uma gestão um pouco mais autoritária. Então, é muito importante que esse órgão não seja somente multissetorial como tenha diversos pilares do setor público”, afirma a advogada Iná Jost, coordenadora da área de Liberdade de Expressão do Internet Lab, centro independente de pesquisa interdisciplinar com foco nas áreas de direito e tecnologia. 

Um modelo que entendo como o mais positivo articularia uma autoridade nova com independência funcional e essa autoridade seria amparada por um comitê ou conselho, uma entidade de caráter multissetorial participativa que pudesse oferecer subsídios para a atuação dessa autoridade reguladora”

Gustavo Rodrigues
Diretor do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS)

O próprio Orlando Silva defendia a ideia de um órgão autônomo semelhante às agências; alguns parlamentares defendiam que essa fiscalização devia ficar sob responsabilidade da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações). Na atual versão do projeto, o deputado retirou a criação de uma autoridade autônoma para fiscalizar as plataformas digitais, após pressão da bancada evangélica, de partidos de direita e de integrantes do Centrão. Com apoio das big techs, a oposição disseminou a tese de que a nova agência seria como um “Ministério da Verdade” censurando as redes sociais, o que acabou sendo decisivo para a retirada de pauta do PL das Fake News.

O antropólogo e pesquisador Gustavo Rodrigues, diretor do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS), afirma que essa narrativa é completamente falsa. “Esse órgão regulador não vai ter nenhuma atribuição de analisar conteúdos em si. Ele não vai analisar se uma publicação é verdadeira ou falsa, se ela está violando ou não os termos de uso da plataforma. Ele não vai definir o que é verdade ou mentira na internet”, argumenta.

Em diversos setores, há uma regulação que precisa de uma autoridade responsável para fiscalizar e a lei ser cumprida. Como há a Agência Nacional de Cinema (Ancine),  Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Agência Nacional de Energia Elétrica e a própria Anatel.  Mas a falta de consenso sobre quem fiscaliza se as regras estão sendo cumpridas trava o debate. 

Críticas à Anatel

Para Rodrigues, existem alguns motivos para a Anatel não ser considerada um órgão adequado para exercer esse papel. O diretor do IRIS argumenta que a agência tem um histórico de não estar conectada com temas que estão no centro do debate sobre as plataformas digitais, como a defesa do Estado democrático de direito, a proteção da liberdade de expressão, o combate a conteúdos ilícitos ou o enfrentamento à desinformação. “A Anatel trabalha com as questões de infraestrutura; está ligada às questões de telefonia, à fiscalização de conectividade e do provimento da conexão. Ou seja, fiscaliza a atuação de empresas que fornecem o acesso à internet. Ela não faz a fiscalização de plataformas específicas que operam acima dessa camada. E essa fiscalização demanda expertise e sensibilidade para esses temas de direitos humanos”, explica.

Um segundo aspecto para Gustavo Rodrigues é o desempenho da agência no próprio setor das telecomunicações. “As atribuições legais da Anatel envolvem zelar pelo cumprimento das normas que são aplicáveis às telecomunicações, ao provimento de conexão à internet e cuidar para que esse serviço tenha uma qualidade melhor. E a qualidade desses serviços no Brasil é bastante precária”, ressalta o diretor do IRIS, centro de pesquisa independente e interdisciplinar dedicado a temas relativos à internet, sociedade e direitos humanos. Rodrigues lembra ainda que o país está muito longe da universalização da inclusão digital e que a falta de investimento na infraestrutura pública de telecomunicações, por parte das grandes empresas do setor, também ocorre pela Anatel não fiscalizar de forma completamente adequada.

Um terceiro ponto é o histórico da Anatel em relação ao multissetorialismo. O pesquisador considera a agência inadequada pelos mecanismos de participação social serem esvaziados. “Eles têm um conselho consultivo, que seria um espaço para isso, e ele historicamente não é muito vocal e nem tem muita influência sobre as decisões da agência”, afirma.  Rodrigues acredita que um caráter multissetorial e colaborativo seja um caminho para o órgão regulador do PL 2630/2020: a presença de um conselho consultivo, como o Comitê Gestor da Internet (CGI), que tenha um papel legal de estabelecer atribuições e diretrizes junto a uma autoridade, com estrutura nova, que seja responsável pela fiscalização e aplicação das sanções.

O pesquisador João Victor Archegas, do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio), também critica a proposta da Anatel assumir a função de regular as plataformas, destacando a falta de expertise da agência sobre o ecossistema digital. Para Archegas, é fundamental que haja um histórico de defesa e de compreensão da importância do artigo 19 do Marco Civil da Internet para uma agência que quer regular internet e processos complexos como a moderação de conteúdo em plataformas digitais. “A Anatel não tem, por exemplo, histórico de defesa do artigo 19, que é uma das peças fundamentais da governança e regulação da internet no Brasil. Por mais que o PL 2630 pense em responsabilização de plataformas, ele trabalha muito com essa responsabilização vinculada ao risco sistêmico, então é uma responsabilização que é compatível com o artigo 19”.

O pesquisador também afirma ser fundamental que a independência seja garantida e não haja uma captura política tendenciosa pelo governo que esteja no poder ou pelo setor que é regulado, destacando ainda a falta de comprometimento da Anatel com a pauta de neutralidade de rede e citando a questão das empresas de telecomunicação, principalmente operadoras de telefonia móvel, que acabam tendo contratos com empresas de tecnologia para oferecer acesso a aplicativos, por exemplo. “Me parece completamente incompatível uma agência com esses problemas de regular o próprio setor também assumir e concentrar essa prerrogativa de regular o arcabouço regulatório do PL 2630. A gente precisa pensar em uma divisão de competências para a Anatel focar no que ela sabe fazer que é a telecomunicações, e uma outra agência que possa pensar especificamente em internet e plataformas digitais”, analisa Archegas.

Questionada sobre a polêmica, a Anatel afirmou, em nota, que “vem se colocando à disposição para colaborar no recente debate em torno do Projeto de Lei PL 2630/2020, tendo em vista sua expertise e experiência no contexto regulatório do ecossistema digital. A agência acrescentou que trabalha na atualização de seus processos, na capacitação de seu pessoal e no fomento à pesquisa nacional visando ao desenvolvimento de ideias e ferramentas regulatórias inovadoras, abertas para uso por toda a administração pública e sociedade. “Diante de tais esforços e resultados, a Anatel mostra-se apta a atuar na fronteira da regulação das plataformas digitais, caso o Legislativo assim o entenda e determine”, conclui a nota da agência.

Anatel afirma estar pronta para assumir papel de órgão regulador das plataformas digitais mas especialistas criticam (Foto: Divulgação / Anatel)
Anatel afirma estar pronta para assumir papel de órgão regulador das plataformas digitais mas especialistas criticam (Foto: Divulgação / Anatel)

Propostas para nova regulação

A coordenadora da área de Liberdade de Expressão do Internet Lab, Iná Jost, defende que o novo órgão regulador das plataformas digitais seja multissetorial e independente. Apesar das limitações orçamentárias e de recursos serem uma questão para a criação de um órgão novo, o Internet Lab avalia ser inevitável uma nova entidade. Iná destaca ser importante que esse órgão congregue “o máximo de pessoas possíveis para se ter uma abordagem mais ampla possível”.

A advogada considera que o desenho regulatório proposto pela Comissão Especial de Direito Digital do Conselho Federal, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) é um caminho que soluciona as questões futuras que esse órgão regulador potencialmente teria. O documento, já enviado ao deputado Orlando Silva, sugere a criação do Sistema Brasileiro de Regulação de Plataformas Digitais. Este sistema seria tripartite. Teria o Conselho de Políticas Digitais como órgão responsável pela fiscalização e aplicação das diretrizes estabelecidas às plataformas –  o novo órgão seria composto por integrantes indicados pelos Três Poderes, pela Anatel, pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), pela Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e pela OAB federal. O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI) seria responsável pela promoção do debate sobre o tema no país por meio de estudos, recomendações e diretrizes. Ainda haveria uma entidade de autorregulação sendo uma pessoa jurídica com a responsabilidade de decidir quanto aos casos concretos de moderação de conteúdo das plataformas digitais.

Em relação a essa proposta da OAB, o pesquisador João Victor Archegas, do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio), avalia que pode funcionar se for bem feita, mas considera importante que haja uma discussão melhor sobre a composição do conselho. “Na verdade, eles não criam necessariamente uma entidade nova, eles criam um conselho que vai ser composto por entidades já existentes. Será que realmente a gente precisa da representação da Anatel, do Cade, da ANPD? A gente tem que discutir isso um pouco melhor e entender como ele funcionaria na prática”.

Para Archegas, o órgão poderia ser mais multissetorial, mas acredita ser uma proposta válida que pode render alguns frutos. Já Gustavo Rodrigues, diretor do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS), considera como o mais positivo um modelo que  “articule uma autoridade nova com independência funcional e essa autoridade seja amparada por um comitê ou conselho, uma entidade de caráter multissetorial participativa que possa oferecer subsídios para a atuação dessa autoridade reguladora”, pontua.

A autoridade regulatória na União Europeia e Reino Unido

Atualmente, há dois grandes marcos internacionais no debate sobre a regulação das plataformas e que estão também influenciando a discussão sobre o PL das Fake News no Brasil. Na União Europeia (UE), a discussão ganhou força após a aprovação do regulamento de proteção de dados pessoais e privacidade. Na UE, o próximo passo de regulação de espaço digital foi o DSA (Digital Services Act). O ato de serviços digitais aborda as plataformas e os serviços oferecidos por buscadores, redes sociais e aplicativos de mensageria privada. Foi criado um órgão único regulador no nível da UE e cada país também tem que indicar um regulador específico para cada jurisdição que vai coordenar esforços com esse regulador criado pela UE. João Victor Archegas explica o papel desse sistema que envolve diferentes reguladores. “Eles têm um sistema complexo para atuar na implementação do novo ato e, principalmente, fiscalizar o cumprimento do que eles chamam de ‘dever de cuidado’, que é essa ideia de que as plataformas devem avaliar riscos sistêmicos na moderação de conteúdo”.

No Reino Unido, o debate sobre a regulação das plataformas digitais também está avançando. Por ter saído da UE, ele precisou fazer a própria regulação. “Eles estão discutindo o chamado Online Safety Bill que, basicamente, é um projeto de lei da segurança online. E lá teve uma discussão um pouco diferente em relação a criação desse regulador. Eles acreditam que não é necessário criar uma nova entidade, isso geraria um aumento de despesas e é um custo desnecessário”, explica o pesquisador. Com esse contexto, eles resolveram aproveitar os reguladores que já existem para assumir essa competência. Assim, quem está atualmente na frente de desempenhar o papel é a Ofcom, a agência reguladora de comunicações do país.

Ana Carolina Aguiar

Jornalista, comunicadora antirracista, da Baixada Fluminense e apaixonada por ouvir e contar histórias. Seja por meio da fotografia, audiovisual ou escrita. Foi estagiária da assessoria de comunicação do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro e colaboradora do portal Notícia Preta.

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