ODS 1
Lei de drogas: Polícia e Justiça miram em negros e favelados


Estudo 'Engrenagem Seletiva' revela como raça, classe e território definem a trajetória de acusados de tráfico e porte de entorpecentes no Rio de Janeiro


Estudo – realizado Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) e lançado nesta segunda (24/11) – analisa características do tratamento penal nos crimes da Lei de Drogas no estado do Rio de Janeiro e revela o viés preconceituoso do Sistema de Justiça Criminal contra pretos e favelados: quase 80% das sentenças que mencionam a ocorrência como sendo em favela ou comunidade acabam em condenação; e quanto mais o processo avança, mais negro ele fica: 69% dos acusados e 77% dos condenados são negros.
O relatório analisou 3.392 casos – sendo 911 casos de porte para consumo pessoal considerados, 2.169 de tráfico e 1.212 por associação para o tráfico, com os dois últimos estando, muitas vezes, juntos no mesmo processo – enquadrados nos artigos da Lei de Drogas. “Os resultados dessa pesquisa vêm reforçar o que já se viu em outros levantamentos: o Sistema de Justiça Criminal no Brasil é racista. A partir de nossas análises, no entanto, fica exposta uma realidade ainda mais chocante, relacionada diretamente à implementação da Lei de Drogas: ao longo das diferentes etapas de funcionamento do Sistema de Justiça Criminal, no Rio de Janeiro, o acusado se torna cada vez mais negro – 69% dos réus e quase 80% dos condenados”, aponta a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do CESeC.
a pesquisa nos mostrou que o Sistema de Justiça Criminal não apenas reflete o racismo estrutural brasileiro como também o organiza e perpetua. Ser negro, jovem, pobre e morar em favela leva a uma quase certeza de condenação pela Lei de Drogas. Essa engrenagem não é uma distorção do sistema: é o modo como ele funciona
O estudo ‘Engrenagem seletiva: o tratamento penal dos crimes de drogas no Rio de Janeiro’ evidencia que a probabilidade de punição é moldada por marcadores raciais e socioeconômicos, e não apenas por provas ou quantidade de droga. “Quando se trata da aplicação da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006), essa seletividade ganha contornos ainda mais evidentes: homens, jovens, negros, moradores das favelas e das periferias formam o maior contingente de réus”, destaca o texto. “Eles são os alvos de um sistema penal que vai sempre enxergá-los como suspeitos, num país marcado pelo racismo e pela desigualdade”, acrescentam os autores – além de Julita Lemgruber, assinam o estudo Giovanna Monteiro-Macedo, Ignácio Cano, Natália Amorim e Salo de Carvalho.
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Veja o que já enviamosA coordenadora do CESeC ressalta ainda outro ponto do estudo revelador do tratamento penal seletivo e seu viés racista. “A discussão sobre as chances de se ter acesso à transação penal é outra contribuição importante da pesquisa do CESeC: brancos têm muito mais chance de, mesmo considerados culpados, receberem uma alternativa à pena de prisão”, afirma Julita, que já foi diretora do Departamento do Sistema Penitenciário do Rio (1991/1994) e ouvidora de polícia fluminense (1999/2000).
O estudo ‘Engrenagem seletiva: o tratamento penal dos crimes de drogas – o caso do Rio de Janeiro’ foi feito a partir da análise de todos os casos de pessoas processadas por crimes de uso de drogas nos anos de 2022 e 2023; para os casos de tráfico foi obtida uma amostra representativa do universo de processos julgados pelo TJ-RJ. Os dados foram solicitados com base na Lei de Acesso à Informação.
A pesquisa – realizada pelo CESeC, fundado em 2000 para estudos e outros projetos nas áreas de segurança pública, justiça e política de drogas – teve apoio do Instituto Betty e Jacob Lafer, e foi desenvolvida em parceria com o Grupo de Pesquisa em Ciências Criminais (GCRIM), do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e também contou com a participação do Laboratório de Análise de Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


O comportamento suspeito da Polícia
O relatório aponta que a engrenagem começa sua seleção nas abordagens. Os pesquisadores constataram que a alegação de “comportamento suspeito” foi utilizada pelos policiais em 42% dos casos de uso de droga; em 41% não há qualquer justificativa registrada. Nos casos de tráfico e associação, as justificativas mais frequentes nos processos criminais são denúncias anônimas à Polícia, além do tal “comportamento suspeito”.
O estudo revela que o local da abordagem é um marcador de seletividade tanto quanto a raça: as abordagens por tráfico e associação (artigos 33 e 35 do Código Penal) ocorrem predominantemente em favelas e outras comunidades pobres ou periféricas. No caso do uso de drogas (artigo 28), apesar de elas ocorrerem majoritariamente nas áreas mais ricas da cidade, os “suspeitos” abordados vêm de lugares de baixa renda. “A pesquisa mostra que, independentemente da abordagem ou do crime imputado, a maioria dos enquadrados tem origem pobre, enquanto moradores de bairros de maior renda estão praticamente ausentes dos registros policiais”, ressaltam os autores.
Há um procedimento, feito do momento da abordagem até a sentença, que pune mais severamente as pessoas negras. Quando vemos que ser negro diminui em 43% a possibilidade de oferta de transação penal em comparação com pessoas brancas, é inequívoco afirmar que existe um viés racial contra essa população
De acordo com o relatório, apenas em 20% dos casos de tráfico e de associação, há informação de que houve entrada no domicílio do acusado ou de terceiros. Mais: somente em 7% dos casos, há registro de ordem judicial que amparasse a entrada. O fator territorial também é determinante: em 19,4% dos casos há menção explícita de o local da ocorrência ter sido em favela ou comunidade.
Esta menção aumenta consideravelmente de acordo com o tipo de crime: o relatório mostra que em casos de uso (artigo 28), a menção à favela é rara (3%), mas, no caso de tráfico (artigo 33), o número de menções aumenta para 15%. Não é só: no caso de associação (artigo 35), o volume de menções a favelas sobe exponencialmente, para quase a metade: 47,6%. Nos casos imputados nos artigos 33 e 35 juntos, as ocorrências que relacionam as favelas são 24,9% do total.
O tipo de substância apreendida também é um fator que influencia a imputação inicial: a partir dos dados coletados, constatou-se que maconha foi a droga mais comum em casos de uso (59,6%) enquanto cocaína foi a mais recorrente em casos de tráfico (79,5%).


Lacunas e seletividade nas denúncias do Ministério Público
O relatório mostra que a imputação inicial é fator determinante para o andamento do processo, ou seja, quem é acusado por tráfico ou associação tem altas probabilidades de ser denunciado, ao contrário de quem é enquadrado por porte para consumo pessoal. Nos casos de pessoas imputadas pela polícia por tráfico (artigo 33) ou associação para o tráfico (artigo 35), 94% delas são denunciados pelo Ministério Público por um dos artigos ou os dois juntos: nos casos de imputação original por associação, 73% recebem denúncia por associação, tráfico ou ambos; quando os dois crimes são imputados conjuntamente, 85% acabam denunciados por essas mesmas tipificações.
Esse paradoxo tem uma explicação: quando a polícia aborda as pessoas em áreas de maior status socioeconômico o desfecho final não é uma oferta de transação, mas o encerramento do processo de forma ainda mais favorável para o imputado, com arquivamento ou absolvição”
A identificação de um perfil de acusação também se dá por marcadores etários e de gênero, sendo os homens a maioria dos indiciados (94%). Em relação à idade, os casos de consumo correspondem a uma população de mais idade do que os de tráfico: 21% dos réus imputados por uso tinham 35 anos ou mais, comparados com apenas 11% a 13% nos casos de tráfico, o que, segundo o estudo, pode revelar condutas diferenciadas para distintos grupos etários ou tendência de o sistema enquadrar como traficantes indivíduos mais jovens e considerar como usuários os mais velhos.
Os autores apontam que não encontraram indícios de que o Ministério Público, diante de imputações iguais, denuncie mais negros do que brancos. “A desigualdade aparece em outro ponto: negros e pobres estão sobrerrepresentados nos crimes de maior risco processual, como tráfico e associação. Como esses crimes quase sempre resultam em denúncia, o efeito agregado é que negros acabam denunciados com mais frequência”, destaca o estudo.


Transação penal e sentença: as inconsistências no Judiciário
O relatório evidencia o punitivismo e a seletividade penal também em etapas sucessivas do processo penal: a transação penal, acordo celebrado entre Ministério Público e o autor de uma infração penal de menor potencial ofensivo para a aplicação de uma pena alternativa (multa ou restrição de direitos), é ofertada principalmente aos acusados brancos (60,8%).
Para Ignacio Cano, sociólogo e professor da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), “há um procedimento, feito do momento da abordagem até a sentença, que pune mais severamente as pessoas negras”, o que o estudo deixa mais do que claro. “Quando vemos que ser negro diminui em 43% a possibilidade de oferta de transação penal em comparação com pessoas brancas, é inequívoco afirmar que existe um viés racial contra essa população”, aponta Cano, fundador do Laboratório de Análise de Violência da Uerj e estudioso de Segurança Pública há mais de 30 anos.
A pesquisa identificou também que o fator socioeconômico se mostra determinante. Pessoas residentes em favelas e comunidades pobres recebem menos ofertas de acordo; indivíduos abordados em setores de classe média concentram as maiores taxas de transação penal. O resultado mais surpreendente, entretanto, é que os mais ricos são os que menos recebem propostas de transação. “Esse paradoxo tem uma explicação: quando a polícia aborda as pessoas em áreas de maior status socioeconômico o desfecho final não é uma oferta de transação, mas o encerramento do processo de forma ainda mais favorável para o imputado, com arquivamento ou absolvição”, afirmam os autores.
A seletividade do Sistema de Justiça Criminal fica mais uma vez cristalina – escandalosa. Os mais ricoss são ainda mais beneficiados, pois nesses casos passíveis de transação penal, há quase 90% de pedidos de arquivamento ou absolvição pelo Ministério Público. “Isso indica que, em áreas de alta renda, a persecução penal é tão rara que a possibilidade de transação penal perde relevância”, e acaba substituída por desfechos ainda mais favoráveis ao acusado.
O estudo ressalta ainda que, enquanto pessoas brancas são mais enquadradas nos artigos de porte para consumo pessoal e têm maior chance de acesso à transação penal, cerca de 75% dos condenados por tráfico e associação são negros. Os casos de condenação por associação (artigo 35) também revelam uma disparidade racial significativa, com 64% de condenados negros e 36% brancos. Para ilustrar “a seletividade racial do Sistema de Justiça Criminal”, o relatório lembra que a composição racial do estado do Rio de Janeiro registra 58% da população de pessoas negras e 42% de brancas: “o que confirma haver uma sobrerrepresentação da população negra em relação à Lei de Drogas”.
O fator territorial também é determinante em grande número de sentenças, aponta a pesquisa do CeSEC: 76,5% das sentenças que mencionam explicitamente o local da ocorrência ter sido em favela ou comunidade acabam em condenação do réu; o número aumenta quando se fala de territórios sob domínio de facções criminosas, com 79,3% condenados. Ou seja, quando há menção a territórios controlados por grupos armados, a probabilidade de condenação aumenta significativamente, o que, para os pesquisadores, significa haver no Judiciário “uma estrutura subjetiva, já fixada e baseada em racismo, de quem são e onde estão as pessoas que devem ser punidas por tráfico e associação”
O relatório destaca ainda que a menção que leva a uma condenação quase automática é a da Súmula 70, mecanismo jurídico estabelecido em decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que permite que o depoimento policial seja a única prova do processo. Durante os anos pesquisados (2022–2023), a Súmula 70 estipulava que a palavra dos policiais era suficiente para condenar um réu. Em dezembro de 2024, após ação da Defensoria Pública, o texto foi levemente alterado para exigir que os depoimentos estivessem “coerentes com as provas dos autos e fundamentados na sentença”. Apesar da mudança, a essência foi preservada: o testemunho do policial ainda pode ser a principal variável para uma condenação.
O relatório também identificou diferenças entre juízes na aplicação de penas para réus com perfis e condutas praticamente idênticas. Em relação à média de tempo de pena por crimes de drogas, brancos recebem 810 dias enquanto negros são submetidos a 1.172, um ano a mais. “A pesquisa nos mostrou que o Sistema de Justiça Criminal não apenas reflete o racismo estrutural brasileiro como também o organiza e perpetua”, afirma a socióloga Giovanna Monteiro-Macedo, coordenadora de projetos do CESeC. “Ser negro, jovem, pobre e morar em favela leva a uma quase certeza de condenação pela Lei de Drogas. Essa engrenagem não é uma distorção do sistema: é o modo como ele funciona”, enfatiza.
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Oscar Valporto
Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade











































