Investida evangélica sobre Conselhos Tutelares

Cartaz de divulgação da eleição para o Conselho Tutelar no Rio: 468 candidatos para a disputa das 190 vagas na capital (Reprodução)

Ação de neopentecostais esquenta campanha e eleição para órgãos que cuidam dos direitos de crianças e adolescentes já teve até ameaça de morte

Por Daniela Schubnel | ODS 16 • Publicada em 5 de outubro de 2019 - 09:04 • Atualizada em 5 de outubro de 2019 - 14:39

Cartaz de divulgação da eleição para o Conselho Tutelar no Rio: 468 candidatos para a disputa das 190 vagas na capital (Reprodução)
Cartaz de divulgação da eleição para o Conselho Tutelar no Rio: 468 candidatos para a disputa das 190 vagas na capital (Reprodução)
Cartaz de divulgação da eleição para o Conselho Tutelar no Rio: 468 candidatos para a disputa das 190 vagas na capital (Reprodução)

Em pleito que promete aprofundar ainda mais a polarização política evidenciada pelas eleições de 2018, o Brasil volta às urnas neste domingo (6/10), para escolher seus representantes nos Conselhos Tutelares. Ainda que boa parte da população não saiba, trata-se da segunda eleição nacional unificada para a escolha dos conselheiros que, no quadriênio 2020-2023, terão por missão garantir os direitos das crianças e adolescentes nos municípios brasileiros.

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Marcada, segundo especialistas, pelo avanço sem precedentes de candidaturas evangélicas neopentecostais, a disputa vem mobilizando setores da sociedade civil organizada na convocação da população para não apenas comparecer à votação, como também escolher candidatos laicos. “O conselheiro tutelar faz mais do que simplesmente garantir o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ele tem o papel de articulador dos interesses desse público junto à sociedade; de promover saúde e educação, de não permitir a judicialização das questões familiares e notificar os casos de violência doméstica. É muito grave quando alguém está ali em nome de uma doutrina moral”, afirma a psicanalista Mariana Mollica, supervisora da Rede de Atenção Psicossocial e pesquisadora sobre segregação e violência da UFRJ.

Investigamos todas as candidaturas e, por causa disso, já fui ameaçado de morte quatro vezes

Diante da avalanche de propagandas circulando pelas redes sociais, entidades como Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (Sepe-RJ) e Ministério Público decidiram arregaçar as mangas. O Sepe divulgou uma Carta-Compromisso com a assinatura de 53 candidatos que concordaram com seus termos. A 1a Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva da Infância e da Juventude da Capital enviou ofício de alerta sobre campanhas religiosas ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA-Rio), organizador da eleição. Coletivos se uniram para pesquisar e divulgar os perfis dos candidatos. Além de listas com nomes que apontam como confiáveis, uma cartilha com orientações para o voto laico também está circulando nas redes.

A propaganda do deputado federal Sóstenes Cavalcante para o Conselho Tutelar: evangélico vota em evangélico (Reprodução)
A propaganda do deputado federal Sóstenes Cavalcante para o Conselho Tutelar: evangélico vota em evangélico (Reprodução)

Uma das propagandas que mais chamaram a atenção de entidades e ativistas do Rio é do deputado federal Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ). Ele pede ao eleitor que “procure um candidato evangélico que realmente lute pelas crianças e adolescentes”, o que, de acordo com seus críticos, contrariaria o direito à liberdade de crença e culto religioso assegurada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

É meu direito orientar meus eleitores evangélicos. Que democracia é essa que não respeita a minha fé?

Integrante da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, o deputado afirma não ver problemas em sua peça publicitária. “É meu direito orientar meus eleitores evangélicos. Que democracia é essa que não respeita a minha fé?”, questionou. O deputado disse não ter recebido notificação e que, se isso acontecer, “será um papelão ridículo do MP”.

Disputa política

Para especialistas, além da doutrinação religiosa, os interesses político-partidários também são o principal motor do avanço evangélico sobre os Conselhos Tutelares. “É evidente a tentativa de consolidar o projeto de poder dos setores neopentecostais, que querem ocupar todos os níveis da política. Até 2015, a escolha era local, não tinha visibilidade. Agora as igrejas estão aproveitando a forte influência que têm sobre corações e mentes para eleger candidatos que vão fazer essa doutrinação e explorar o controle da sexualidade”, afirma Mariana.

O mandato de quatro anos para os conselheiros tutelares trouxe mais visibilidade para os conselhos, atraindo a atenção de igrejas e outros organismos, como grupos paramilitares

Presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, a especialista em Políticas Públicas Márcia Gatto concorda e avalia que o principal problema é o formato do processo eleitoral, sem divulgação e participação popular. “Temos que rediscutir esse processo com a sociedade, pois o modelo não está dando certo. Há grupos que defendem a realização de concursos públicos para preencher essas vagas”, diz. Segundo Márcia, além dos neopentecostais, há também políticos que fazem dos conselhos verdadeiros currais eleitorais.

O processo teve início com a mudança trazida pela lei federal 12.696/2012, que unificou as eleições nacionalmente e instituiu o mandato de quatro anos para os conselhos tutelares. “Isso trouxe mais visibilidade para os conselhos, atraindo a atenção de igrejas e outros organismos, como grupos paramilitares”, explicou Rodrigo Ramalho, presidente da Associação dos Conselheiros Tutelares do Estado do Rio.

A visibilidade ficou ainda maior a partir de maio de 2019, com a incorporação ao ECA da lei 13.824, resultado de projeto exatamente do deputado Sóstenes Cavalcante, que permite a reeleição dos conselheiros “por vários mandatos consecutivos”, e não apenas um, como antes. “Precisamos fortalecer o órgão que zela por esses direitos. A gente tem que lutar, o maior violador dos direitos das crianças e adolescentes hoje é o poder público”, completa Ramalho.

O crescimento da propaganda evangélica em torno dessa pauta nunca foi tão ostensivo quanto agora. Nosso temor maior é o prejuízo das crianças, pela tendência em se tratar no campo religioso questões que são de ordem social e psicológica

O CMDCA-Rio já encaminhou aproximadamente 70 denúncias ao Ministério Público e estima que “questões religiosas” foram a razão da impugnação de aproximadamente 35% das candidaturas ao pleito. Dos 534 candidatos que se habilitaram depois da triagem de documentos e prova de competências, sobraram 468 candidatos para a disputa das 190 vagas.

“Investigamos todas as candidaturas e, por causa disso, já fui ameaçado de morte quatro vezes”, contou o coordenador da Comissão Eleitoral do CMDCA, Carlos Laudelino, que quase foi preso por não homologar a candidatura de um evangélico em Bonsucesso.

Pauta de compromissos 

Entre os compromissos assinalados pelo Sepe estão a defesa do ensino público de qualidade, ser a favor do fim das ações policiais em horário de entrada e saída de estudantes e contra o “Escola sem partido”, a diminuição da maioridade penal, o machismo, o racismo e a homofobia e a qualquer forma de discriminação. “O crescimento da propaganda evangélica em torno dessa pauta nunca foi tão ostensivo quanto agora. Nosso temor maior é o prejuízo das crianças, pela tendência em se tratar no campo religioso questões que são de ordem social e psicológica”, disse Izabel Costa, coordenadora-geral da entidade.

Com o mote “Vote em candidato laico”, a Cartilha Eleição Conselho Tutelar 2019, elaborada pelo Coletivo Conteúdo Cidadão, foi lançada no último dia 29 com a relação de 35 nomes. Já os coletivos Psicanalistas Unidos pela Democracia, Trivium, Parem de nos Matar e Pais do Colégio São Vicente, com a ajuda do jornalista Orlando Guillon, elaboraram listas com nomes de candidatos prioritários.

Urnas eletrônicas

Os Conselhos Tutelares passaram a atuar em âmbito nacional com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990. Cada município, a partir de então, passou a contratar e a gerir o trabalho dos conselheiros, de acordo com suas próprias normas. Inicialmente os mandatos eram de três anos, mas em 2012, com a mudança do artigo 312 do ECA (Lei Federal 8069 de 13 de julho de 1990), as eleições passaram a acontecer na mesma data, nacionalmente, e os mandatos passaram a ser de quatro anos. As primeiras eleições nacionais para os CTs foram em 2015; a deste ano é a segunda.

Cada município tem que ter pelo menos um Conselho Tutelar. Eles são compostos por cinco membros titulares e cinco suplentes. Apenas os titulares recebem salário. No caso do Rio, de R$ 3.995,17, o correspondente à função “DAS-9 de Direção”, do servidor municipal. Nas eleições, votamos em apenas um (1) candidato, mas cinco são escolhidos como titulares e cinco suplentes. O município do Rio tem 19 conselhos tutelares, divididos por regiões, portanto 190 postos – 95 titulares e 95 suplentes. Este ano 468 candidatos estão disputando as eleições.

Os eleitores votam de acordo com sua zona e seção eleitoral estabelecida pelo TRE.  No Rio, a votação vai acontecer pela primeira vez em urnas eletrônicas, na capital e em outros 16 municípios – todos com mais de de um milhão de habitantes -, graças a acordo entre o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente e o TRE. Para tanto, os eleitores têm que consultar o endereço de seu local de votação no site do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. No caso do Rio: https://cmdcario.com.br/eleicoes.php. A votação acontece das 9h às 17h e os eleitores precisam levar documento de identidade, título de eleitor e comprovante da última votação.

Daniela Schubnel

Jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), cursou Relações Internacionais na Universidade de Birmingham, no Reino Unido. Em redações, se especializou na cobertura política com passagens em O Dia e Jornal do Brasil. Carioca do subúrbio com sede de mundo, fez estágio na ONU, em Nova Iorque, estudou Civilização Francesa na Sorbonne, em Paris, mas fincou pé em Brasília, onde morou 16 anos e foi assessora de imprensa de diversos órgãos de Executivo, Legislativo e Sistema S. Acha que para o mundo ter jeito, só mesmo com muita dança – além do bom e velho jornalismo, é claro.

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