
Em pleito que promete aprofundar ainda mais a polarização política evidenciada pelas eleições de 2018, o Brasil volta às urnas neste domingo (6/10), para escolher seus representantes nos Conselhos Tutelares. Ainda que boa parte da população não saiba, trata-se da segunda eleição nacional unificada para a escolha dos conselheiros que, no quadriênio 2020-2023, terão por missão garantir os direitos das crianças e adolescentes nos municípios brasileiros.
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Veja o que já enviamosMarcada, segundo especialistas, pelo avanço sem precedentes de candidaturas evangélicas neopentecostais, a disputa vem mobilizando setores da sociedade civil organizada na convocação da população para não apenas comparecer à votação, como também escolher candidatos laicos. “O conselheiro tutelar faz mais do que simplesmente garantir o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ele tem o papel de articulador dos interesses desse público junto à sociedade; de promover saúde e educação, de não permitir a judicialização das questões familiares e notificar os casos de violência doméstica. É muito grave quando alguém está ali em nome de uma doutrina moral”, afirma a psicanalista Mariana Mollica, supervisora da Rede de Atenção Psicossocial e pesquisadora sobre segregação e violência da UFRJ.
[g1_quote author_name=”Carlos Laudelino” author_description=”Presidente da Comissão Eleitoral do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Investigamos todas as candidaturas e, por causa disso, já fui ameaçado de morte quatro vezes
[/g1_quote]Diante da avalanche de propagandas circulando pelas redes sociais, entidades como Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (Sepe-RJ) e Ministério Público decidiram arregaçar as mangas. O Sepe divulgou uma Carta-Compromisso com a assinatura de 53 candidatos que concordaram com seus termos. A 1a Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva da Infância e da Juventude da Capital enviou ofício de alerta sobre campanhas religiosas ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA-Rio), organizador da eleição. Coletivos se uniram para pesquisar e divulgar os perfis dos candidatos. Além de listas com nomes que apontam como confiáveis, uma cartilha com orientações para o voto laico também está circulando nas redes.
Uma das propagandas que mais chamaram a atenção de entidades e ativistas do Rio é do deputado federal Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ). Ele pede ao eleitor que “procure um candidato evangélico que realmente lute pelas crianças e adolescentes”, o que, de acordo com seus críticos, contrariaria o direito à liberdade de crença e culto religioso assegurada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
[g1_quote author_name=”Sóstenes Cavalcante” author_description=”Deputado federal” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]É meu direito orientar meus eleitores evangélicos. Que democracia é essa que não respeita a minha fé?
[/g1_quote]Integrante da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, o deputado afirma não ver problemas em sua peça publicitária. “É meu direito orientar meus eleitores evangélicos. Que democracia é essa que não respeita a minha fé?”, questionou. O deputado disse não ter recebido notificação e que, se isso acontecer, “será um papelão ridículo do MP”.
Disputa política
Para especialistas, além da doutrinação religiosa, os interesses político-partidários também são o principal motor do avanço evangélico sobre os Conselhos Tutelares. “É evidente a tentativa de consolidar o projeto de poder dos setores neopentecostais, que querem ocupar todos os níveis da política. Até 2015, a escolha era local, não tinha visibilidade. Agora as igrejas estão aproveitando a forte influência que têm sobre corações e mentes para eleger candidatos que vão fazer essa doutrinação e explorar o controle da sexualidade”, afirma Mariana.
[g1_quote author_name=”Rodrigoo Ramalho” author_description=”Presidente da Associação dos Conselheiros Tutelares do Estado do Rio” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O mandato de quatro anos para os conselheiros tutelares trouxe mais visibilidade para os conselhos, atraindo a atenção de igrejas e outros organismos, como grupos paramilitares
[/g1_quote]Presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, a especialista em Políticas Públicas Márcia Gatto concorda e avalia que o principal problema é o formato do processo eleitoral, sem divulgação e participação popular. “Temos que rediscutir esse processo com a sociedade, pois o modelo não está dando certo. Há grupos que defendem a realização de concursos públicos para preencher essas vagas”, diz. Segundo Márcia, além dos neopentecostais, há também políticos que fazem dos conselhos verdadeiros currais eleitorais.
O processo teve início com a mudança trazida pela lei federal 12.696/2012, que unificou as eleições nacionalmente e instituiu o mandato de quatro anos para os conselhos tutelares. “Isso trouxe mais visibilidade para os conselhos, atraindo a atenção de igrejas e outros organismos, como grupos paramilitares”, explicou Rodrigo Ramalho, presidente da Associação dos Conselheiros Tutelares do Estado do Rio.
A visibilidade ficou ainda maior a partir de maio de 2019, com a incorporação ao ECA da lei 13.824, resultado de projeto exatamente do deputado Sóstenes Cavalcante, que permite a reeleição dos conselheiros “por vários mandatos consecutivos”, e não apenas um, como antes. “Precisamos fortalecer o órgão que zela por esses direitos. A gente tem que lutar, o maior violador dos direitos das crianças e adolescentes hoje é o poder público”, completa Ramalho.
[g1_quote author_name=”Izabel Costa” author_description=”Coordenadora-geral do Sindicato Estadual dos Profissionais em Educação” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O crescimento da propaganda evangélica em torno dessa pauta nunca foi tão ostensivo quanto agora. Nosso temor maior é o prejuízo das crianças, pela tendência em se tratar no campo religioso questões que são de ordem social e psicológica
[/g1_quote]O CMDCA-Rio já encaminhou aproximadamente 70 denúncias ao Ministério Público e estima que “questões religiosas” foram a razão da impugnação de aproximadamente 35% das candidaturas ao pleito. Dos 534 candidatos que se habilitaram depois da triagem de documentos e prova de competências, sobraram 468 candidatos para a disputa das 190 vagas.
“Investigamos todas as candidaturas e, por causa disso, já fui ameaçado de morte quatro vezes”, contou o coordenador da Comissão Eleitoral do CMDCA, Carlos Laudelino, que quase foi preso por não homologar a candidatura de um evangélico em Bonsucesso.
Pauta de compromissos
Entre os compromissos assinalados pelo Sepe estão a defesa do ensino público de qualidade, ser a favor do fim das ações policiais em horário de entrada e saída de estudantes e contra o “Escola sem partido”, a diminuição da maioridade penal, o machismo, o racismo e a homofobia e a qualquer forma de discriminação. “O crescimento da propaganda evangélica em torno dessa pauta nunca foi tão ostensivo quanto agora. Nosso temor maior é o prejuízo das crianças, pela tendência em se tratar no campo religioso questões que são de ordem social e psicológica”, disse Izabel Costa, coordenadora-geral da entidade.
Com o mote “Vote em candidato laico”, a Cartilha Eleição Conselho Tutelar 2019, elaborada pelo Coletivo Conteúdo Cidadão, foi lançada no último dia 29 com a relação de 35 nomes. Já os coletivos Psicanalistas Unidos pela Democracia, Trivium, Parem de nos Matar e Pais do Colégio São Vicente, com a ajuda do jornalista Orlando Guillon, elaboraram listas com nomes de candidatos prioritários.
Urnas eletrônicas
Os Conselhos Tutelares passaram a atuar em âmbito nacional com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990. Cada município, a partir de então, passou a contratar e a gerir o trabalho dos conselheiros, de acordo com suas próprias normas. Inicialmente os mandatos eram de três anos, mas em 2012, com a mudança do artigo 312 do ECA (Lei Federal 8069 de 13 de julho de 1990), as eleições passaram a acontecer na mesma data, nacionalmente, e os mandatos passaram a ser de quatro anos. As primeiras eleições nacionais para os CTs foram em 2015; a deste ano é a segunda.
Cada município tem que ter pelo menos um Conselho Tutelar. Eles são compostos por cinco membros titulares e cinco suplentes. Apenas os titulares recebem salário. No caso do Rio, de R$ 3.995,17, o correspondente à função “DAS-9 de Direção”, do servidor municipal. Nas eleições, votamos em apenas um (1) candidato, mas cinco são escolhidos como titulares e cinco suplentes. O município do Rio tem 19 conselhos tutelares, divididos por regiões, portanto 190 postos – 95 titulares e 95 suplentes. Este ano 468 candidatos estão disputando as eleições.
Os eleitores votam de acordo com sua zona e seção eleitoral estabelecida pelo TRE. No Rio, a votação vai acontecer pela primeira vez em urnas eletrônicas, na capital e em outros 16 municípios – todos com mais de de um milhão de habitantes -, graças a acordo entre o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente e o TRE. Para tanto, os eleitores têm que consultar o endereço de seu local de votação no site do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. No caso do Rio: https://cmdcario.com.br/
Excelente matéria. Muito esclarecedora e fundamental nesse momento de tanto ódio e preconceito. Parabéns!