Caso Champinha: programa em Goiás recupera ‘loucos infratores’

Iniciativa para tratar presos com transtornos mentais será estendida a menores de idade; CNJ determinou fim dos hospitais psiquiátricos de custódia

Por Luiza Souto | ODS 16 • Publicada em 16 de outubro de 2023 - 23:39 • Atualizada em 14 de março de 2024 - 11:58

Equipe do Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator: apenas 5% de reincidência (Foto: Secretaria de Saúde de Goiás)

Equipe do Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator: apenas 5% de reincidência (Foto: Secretaria de Saúde de Goiás)

Iniciativa para tratar presos com transtornos mentais será estendida a menores de idade; CNJ determinou fim dos hospitais psiquiátricos de custódia

Por Luiza Souto | ODS 16 • Publicada em 16 de outubro de 2023 - 23:39 • Atualizada em 14 de março de 2024 - 11:58

Foi durante uma rebelião no Cepaigo (Centro Penitenciário de Atividades Industriais do Estado de Goiás), em 1996, que o promotor de Justiça Haroldo Caetano constatou que presos com doença mental não poderiam estar ali, misturados aos outros, independentemente do crime que cometeram.  Depois de sete dias como refém, sem saber se sairia vivo, ele começou sua peregrinação pelos órgãos públicos do estado para implantar o PAILI (Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator), hoje programa de referência nacional para atendimento a presos com doenças mentais, vencedor do VI Prêmio Innovare, criado para enaltecer boas práticas na esfera do Judiciário.

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Haroldo Caetano agora está participando da adaptação do projeto para também atender jovens em conflito com a lei e diagnosticados com problemas mentais – como foi o caso de Roberto Aparecido Alves Cardoso, 36, conhecido como Champinha. Aos 16 anos, ele comandou o sequestro, tortura e morte de um casal de jovens namorados em São Paulo. E ainda estuprou a adolescente Liana Friedenbach, por cinco dias antes de lhe desferir 15 golpes de facão. Como era menor, foi internado na antiga Fedem para cumprir medida socioeducativa. Perto de completar 21 anos, prazo máximo para internação para cumprimento medidas socioeducativas, Champinha foi interditado após diagnóstico de TPAS (Transtorno de Personalidade Antissocial) e internado numa unidade experimental de saúde onde permanece às vésperas dos 37 anos.

O problema da sociedade é não querer olhar para os seus próprios problemas, se ver no espelho, como se a loucura e a violência não fossem produto dessa mesma sociedade

Haroldo Caetano
Promotor

Pelo Código Penal brasileiro, a pessoa adulta incapaz de entender que cometeu um crime, seja por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto, é inimputável, isenta de pena. Ou pode ter a sentença reduzida. A decisão judicial é tomada após consulta a psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros. Esses criminosos devem ser tratadas em ambientes terapêuticos – como nos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) ou em hospital geral  com leito psiquiátrico.

Entretanto, a Justiça pode determinar que eles fiquem internados, por medida de segurança: para isso, existem, em todos os estados, os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs). Relatório de dezembro de 2022 da Secretaria Nacional de Políticas Penais apontou que, em todo o país, havia quase dois mil condenados internados nesses hospitais, antes chamados de manicômios judiciários.

Após Goiás criar o Paili, em 2006, presos diagnosticados com problemas mentais começaram efetivamente a ser encaminhados para a rede de atenção psicossocial, onde é decidido se eles serão atendidos em unidades terapêuticas ou mesmo em casa. Os pacientes são sempre avaliados quanto ao grau de periculosidade. “Há alteração psicológica que não justifica o crime, e identificamos que houve uma intencionalidade do delito. Nesses casos eles ficam presos, mas acompanhados no próprio sistema prisional”, explica a gerente de Saúde Mental da Secretaria de Saúde de Goiás, Nathália dos Santos Silva.

A coordenadora do programa, Celma Martins, contabiliza que o Paili tratou, até hoje, 998 pacientes, a maioria envolvida em assassinato. E em todos esses anos, 5% reincidiram. Hoje são 360 acompanhamentos.. “Tivemos casos bem exitosos, de pessoas envolvidas em crimes hediondos como estupro de vulnerável e que hoje estão recuperadas”, garante Celma. 

No geral, a média de reincidência no país, logo no primeiro ano após a pessoa deixar o sistema prisional, é em torno de 21%, progredindo para 38,9% após 5 anos em liberdade. Os dados são do relatório “Reincidência Criminal no Brasil”, que levou em consideração um período de 2008 até 2021, com informações de 13 estados disponibilizadas pelo Departamento Penitenciário Nacional, em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). 

A criação do programa encontrou muita resistência: a principal, explica Haroldo Caetano, vem da visão de autoridades e especialistas para quem a pessoa com transtornos mentais precisa ser separada da sociedade por ser perigosa, e isso deve ser resolvido pelo sistema prisional, não de saúde. “O problema da sociedade é não querer olhar para os seus próprios problemas, se ver no espelho, como se a loucura e a violência não fossem produto dessa mesma sociedade”, argumenta o promotor, lembrando que o Paili acelerou o fechamento dos HCTPs (Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico) em Goiás.

Acho bastante temerário dar alta a pacientes sem dar um tratamento diferenciado para aqueles que eventualmente continuam com quadros psiquiátricos graves e que representam perigo para terceiros. Infelizmente temo que a gente, a partir dessa alta, ouça histórias trágicas

Sergio Rachmann
Psiquiatra e perito judicial

Agora o estado se prepara para lançar programa voltado ao jovem em conflito com a lei e que tem diagnóstico de problema mental. A ideia é ter uma equipe específica do tribunal de Justiça avaliando cada adolescente, e aqueles com sinais de adoecimento mental serão atendidos por equipe específica na rede de atenção psicossocial disponível no estado. “A própria institucionalização na socioeducativo é adoecedora, e já temos uma equipe de saúde dentro do sistema que faz atendimento a esses adolescentes”, observa Nathalia Silva.

Haroldo Caetano frisa que o programa nada tem a ver com a Unidade Experimental de Saúde, o espaço criado em São Paulo para receber Champinha e para onde foram encaminhados outros egressos da Fundação Casa diagnosticados com transtornos mentais e considerados perigosos. “Eu não chamo aquilo lá de centro de socioeducação, mas de presídio juvenil. Vejo que há uma banalização muito grande do aprisionamento dos adolescentes. O que a Constituição estabelece que deveria ser uma exceção, se transformou em regras. Na verdade, o que a gente tem é uma promoção em massa da loucura entre adolescentes”, critica o promotor.

Visita de inspeção do CNJ em hospital de custódia no Paraná: resolução determinou fim dos hospitais psiquiátricos de custódia (Foto: G. Dettmar / Agência CNJ)
Visita de inspeção do CNJ em hospital de custódia no Paraná: resolução determinou fim dos hospitais psiquiátricos de custódia (Foto: G. Dettmar / Agência CNJ)

Decisão de CNJ aponta para fim dos hospitais de custódia

O caminho de Goiás para tratar dos problemas dos “loucos infratores” – nome que o próprio promotor que idealizou o programa defende que seja mudado – vai precisar ser trilhado por outros estados. Resolução do Conselho Nacional de Justiça, vigente desde maio, estabelece que os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico não recebam mais pacientes e sejam desativados a partir de maio de 2024.

O texto da resolução reforça que a Lei Antimanicomial de 2001 deve ser cumprida, e ainda estabelece que os Tribunais de Justiça revisem todos os casos de medida de segurança, que mantenham presos internados nesses hospitais antes chamados manicômios judiciários. O objetivo é avaliar a possibilidade de extinção da medida em curso, progressão para tratamento ambulatorial em meio aberto ou transferência para estabelecimento de saúde adequado. 

O psiquiatra Sergio Rachman, perito da Justiça Estadual e Federal em São Paulo, ressaltou, ao #Colabora, que é preciso um olhar muito atento para cada caso, e peneirar bem quem vai voltar para a sociedade. Segundo ele, há ainda muita dúvida quanto a diagnósticos de doença mental e possíveis tratamentos. Ele aponta, por exemplo, que a psicopatia não é uma doença, mas um caso de pessoas sem capacidade de empatia pelo próximo, e que elas devem ser tratadas como indivíduos comuns: “Acho bastante temerário dar alta a pacientes sem dar um tratamento diferenciado para aqueles que eventualmente continuam com quadros psiquiátricos graves e que representam perigo para terceiros. Infelizmente temo que a gente, a partir dessa alta, ouça histórias trágicas”.

A resolução do CNJ estabelecendo o fim dos hospitais psiquiátricos de custódia é alvo de contestação no STF, questionando sua constitucionalidade, e também de protestos das associações médicas. Projetos de decretos legislativos apresentados na Câmara e no Senado também buscam suspender os efeitos da resolução do CNJ.

Para o promotor Haroldo Caetano, é histórica a resistência contra a política de afirmação dos direitos humanos, e que por isso a resolução do CNJ vem sendo contestada:  “O que tenho usado como argumento é que se funcionou em todo o Estado de Goiás, e com a rede de saúde disponível para toda a população, sem criar nenhuma outra específica para essa finalidade, pode acontecer em outros lugares”.

 

Luiza Souto

Jornalista e pesquisadora do Rio de Janeiro. Tem experiência na cobertura sobre Direitos Humanos, diversidade e gênero. Também produtora e roteirista de campanhas e minidocumentários com essas temáticas. Contribuiu com veículos como Folha de S. Paulo, Extra, O Globo, GloboNews e UOL.

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