Aquilombamento político: enfrentamento ao racismo é base para a democracia

84,1% das vítimas da letalidade policial no Brasil são negras, segundo dados de 2022 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Foto: Silvia Izquierdo/AP

Ativistas do movimento negro analisam os compromissos inadiáveis que o governo Lula precisa assumir para o combate à intolerância racial

Por Ana Carolina Aguiar | ODS 10ODS 16 • Publicada em 30 de novembro de 2022 - 09:41 • Atualizada em 28 de janeiro de 2023 - 13:04

84,1% das vítimas da letalidade policial no Brasil são negras, segundo dados de 2022 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Foto: Silvia Izquierdo/AP

“Sempre tive o mesmo rosto – a moda que mudou de gosto. E agora querem que eu entenda seu afeto repentino”, questiona o cantor baiano Baco Exu dos Blues em “Autoestima”, música do seu último álbum. As palavras compõem o relato de um jovem negro ao se perceber visto de outra forma pela sociedade, após 25 anos de sua vida. Os estereótipos que perseguem os negros limitam as posições sociais que eles podem ocupar. Desde sempre, a população afrodescendente não é vista nem tratada da mesma forma do que as pessoas brancas.

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A ausência da população negra – maioria entre os brasileiros – em diversos espaços da sociedade se repete na política. Na equipe de transição do governo eleito, a nomeação de pessoas negras está concentrada no grupo temático de Igualdade Racial. Apesar da presença delas também em pastas como Mulheres, Direitos Humanos e Educação, há apenas integrantes brancos nas equipes de Economia e de Planejamento, Orçamento e Gestão. Mais uma vez, reproduzem-se os estereótipos de onde os negros devem estar e como podem contribuir. Mesmo que haja representantes, eles acabam confinados a determinados espaços.

A escola no Brasil é definitivamente uma instituição que expulsa crianças negras. Uma escola racista provoca essa baixa performance. Não é só uma questão de investimento, mas de percepção do que devemos fazer para a transformação dessa escola

Wânia Sant'Anna
Historiadora

A historiadora, líder negra e feminista Wânia Sant’Anna nos convida a refletir sobre esse aspecto. “Somos 56% da população brasileira. Com esse perfil demográfico de participação pareceria óbvio, se não vivêssemos num país racista e discriminatório, que pessoas negras deveriam estar em todos os grupos de trabalho devidamente representados”. O perfil embranquecido e masculino que as equipes de transição apresentam até agora reforça a desigualdade da sociedade brasileira. Para a historiadora, esse perfil reflete muito a concentração das decisões políticas e a forma como se pensa o destino da nação. 

Sant’Anna ressalta a urgência de políticas que busquem a equidade de gênero, de defesa dos direitos das mulheres e meninas, inclusive considerando que as mulheres negras são parte significativa da população feminina. A gente louva que tem Anielle Franco, Roberta Eugênio e Roseli Faria na equipe de Mulheres. Não há dúvidas de que a área de Direitos Humanos também é de grande preocupação, porque afinal de contas é onde podemos garantir a efetividade de direitos. Mas isso não é tudo”, pontua. 

A população negra é o grupo mais afetado com o desmonte da educação pública do país – os jovens afrodescendentes correspondem a 71,1% das estatísticas de evasão escolar, segundo o IBGE. Isso é reflexo de uma educação com perfil eugenista no Brasil. As crianças negras não desistem só pela pobreza, mas também porque a escola não é acolhedora. “A escola no Brasil é definitivamente uma instituição que expulsa crianças negras. Uma escola racista provoca essa baixa performance. Não é só uma questão de investimento, mas de percepção do que devemos fazer para a transformação dessa escola”, acrescenta a historiadora. 

Quando o debate é sobre meio ambiente e clima, as pessoas negras também devem ter centralidade. A Região Norte, de acordo com o IBGE, em 2021 tinha 81% da sua população autodeclarada negra. É uma questão política e também relevante para o futuro do planeta. Agora, o enfrentamento ao racismo também é absolutamente importante para as pessoas negras. Muito provavelmente se acontecer o melhor para a Amazônia, a população negra que vive naquela região se beneficiará”. Em qualquer nível de debate sobre a sociedade brasileira, é indissociável o recorte racial. 

Nós, negros e negras, temos capacidade de estar na economia, ciência, tecnologia e contribuir em vários segmentos do governo. Nosso povo tem expertise nessas áreas porque quem mais sofre com os cortes de recursos é a gente. Precisamos estar em todas as pastas

Biko Rodrigues
Coordenador da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas

O enfrentamento ao racismo é o compromisso que o governo Lula deve assumir durante todo o seu mandato. “O racismo é uma ideologia, ele dispensa adjetivos. Eu não uso nem racismo estrutural nem institucional. O país precisa encontrar uma forma de se conciliar e não ser racista. E isso significa pensar de maneira absolutamente abrangente sobre redistribuição de recursos e políticas no país”, afirma. A privação de pessoas negras no direito ao trabalho, à educação, à segurança pública, à uma política social que aponte seguridades é consequência de uma república que não conciliou com o passado desde a escravidão. Enquanto a população negra for confinada como público “beneficiário” e não tiver representantes políticos ou pela sua intelectualidade, vai existir um desequilíbrio da vida política no Brasil. 

Essa participação política não se reduz à representatividade. Sant’Anna afirma que é necessário ter concepção e um modelo de desenvolvimento alterado. “Você tem uma maioria da população que foi marginalizada e que, na atualidade, está confinada aos piores indicadores sociais do país. Esse confinamento não é casual, ele foi operado pelo Estado e pelas elites. Ele é resultado. É consequência”. Diante disso, se realmente o objetivo de um governo é enfrentar o racismo, a intencionalidade com foco é essencial para encontrar saídas inovadoras para o enfrentamento à discriminação racial e desigualdade étnico-racial.

Para a historiadora, é necessário refletir com mais profundidade e radicalidade qual é o significado de você criar, implementar e monitorar políticas que enfrentem o racismo e a discriminação racial. “Estamos em 2022, esse país foi fundado na escravidão. Foi o maior país escravista das Américas. E não foi feito nada. Teve uma Lei Áurea com dois artigos e dezessete palavras, estava marcado para dar errado”, ressalta. Ela ainda afirma que a sociedade brasileira precisa ser sinalizada que essa mácula, que é a escravidão e o racismo, pode ser operada. 

Como ativista do movimento negro e das mulheres negras, sua função é apontar exatamente o que é inadmissível e inegociável num sistema em que não se tem a capacidade de resolver esse problema mesmo com a alternância de poder. Contudo, ela acredita no diálogo. “A gente vai acreditar que conversando nos entendemos. Entendemos sobre o enfrentamento ao racismo religioso, ao genocídio da população negra, à ampliação da escolaridade de pessoas negras, ao desemprego na informalidade. É possível, mas também precisa existir uma sinalização de compromisso político”.

Não é possível o governo ter um único setor preocupado com uma demanda e situação que diz respeito a toda vida brasileira. O racismo estrutura as relações e é pano de fundo de todos os conflitos, diferenças e problemas sociais do país

Douglas Belchior
Historiador, integrante da Coalizão Negra por Direitos e fundador da Uneafro

Para o quilombola e coordenador da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), Denildo Rodrigues, uma das prioridades desse governo eleito deve ser o avanço na regularização de territórios quilombolas. Durante o governo Bolsonaro, houve um desmonte no setor. De acordo com relatório do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em 2021, foram autorizados apenas R$ 340 mil para a ação de reconhecimento e indenização de territórios quilombolas. Desse total, somente R$ 164 mil foram pagos, além de restos a pagar de anos anteriores. “O governo federal tem uma dívida com a gente, incluindo o governo Lula em seus 13 anos de mandato. Ele fortaleceu a política quilombola mas não avançou na regularização fundiária desses territórios”. Ele ressalta a importância da pauta quilombola ser transversal e também fazer parte do Ministério de Desenvolvimento Agrário.

Conhecido como Biko, Rodrigues reforça a necessidade da presença de pessoas negras em todo o processo, do debate às ações políticas, para que as demandas sejam atendidas. Ele também sente falta de quilombolas no grupo temático de Meio Ambiente e Povos Originários da transição. “O sinal está dado, não tem mais como o país ignorar a participação da população negra no processo democrático. Seria um tiro no pé. É como se a gente não tivesse aprendido nada ao longo desse tempo em que fomos perseguidos e trabalhamos para o crescimento do país”. 

O compromisso político, para Biko, se firma com o entendimento do enfrentamento ao racismo como manutenção da democracia. Não haverá democracia, enquanto houver racismo. “O movimento negro sempre foi uma peça importante na transformação social do país. Levantamos todas as bandeiras democráticas, sempre estivemos na linha de frente. A gente precisa, de fato, abolir essa prática do racismo na sociedade e nas estruturas coletivas dos organismos públicos, que é o racismo institucional”, afirma. Biko também reflete sobre como a elite branca dentro da própria esquerda em muitos momentos aparenta esquecer da contribuição do movimento negro durante o processo até a vitória. “Nós, negros e negras, temos capacidade de estar na economia, ciência, tecnologia e contribuir em vários segmentos do governo. Nosso povo tem expertise nessas áreas porque quem mais sofre com os cortes de recursos é a gente. Precisamos estar em todas as pastas”, enfatiza.

O historiador, integrante da Coalizão Negra por Direitos e fundador da Uneafro, Douglas Belchior, integra o Grupo Temático (GT) de Igualdade Racial do governo eleito. Ele considera esse processo de transição o mais amplo e democrático da história da república no país e enxerga como uma forma de alimentar a esperança de que é possível ter um governo contribuindo para a reconstrução do Brasil. “É a transição com a maior presença negra, feminina e de atores do movimento social e de direitos humanos que a gente já experimentou. Isso conversa com o grande desafio de enfrentar o fascismo e reconstruir um caminho rumo à democracia”. Belchior ressalta que um governo para lidar com os problemas sociais do país, necessariamente precisa lidar com o racismo como um elemento estruturante das desigualdades e da violência brasileira. “Não será possível para esse governo dar conta da tarefa a que se dispôs se não enfrentar o racismo”.

Belchior pontua três compromissos inadiáveis nesses próximos quatro anos. O primeiro é a transversalidade da agenda do combate ao racismo. “Não é possível o governo ter um único setor preocupado com uma demanda e situação que diz respeito a toda vida brasileira. O racismo estrutura as relações e é pano de fundo de todos os conflitos, diferenças e problemas sociais do país”. A mudança da política de segurança pública e enfrentamento ao genocídio negro fazem parte do segundo ponto trazido pelo historiador. Ele ressalta a importância do governo construir políticas de fomento à defesa da vida e de direitos que deem fim ao genocídio e à matança de pessoas negras. E, em terceiro, a centralidade de pessoas negras na agenda econômica com geração de emprego e renda, além de investimentos em políticas sociais.

Também integrante do GT de Igualdade Racial, o baiano Yuri Silva é jornalista, pesquisador de direitos humanos e ativista do movimento negro. Ele afirma que a reconstrução do país se dá com a garantia de comida na mesa, o retorno do Bolsa Família e acesso à educação, saúde, justiça, segurança, sempre observando as especificidades da população negra. Ele cita os compromissos, por parte do novo governo, que considera essenciais para enfrentar o racismo. “A recriação do Ministério da Igualdade Racial, com estrutura e orçamento, a garantia de orçamento de igualdade racial com criação de órgãos como secretarias, diretorias e superintendências em outros ministérios para viabilizar a transversalidade da pauta e, também, a nomeação de negros para o máximo de espaços visando a garantir um equilíbrio racial”. Quanto maior for a presença de negros em todos os espaços políticos, mais o caminho para o enfrentamento ao racismo vai se consolidar.

Ana Carolina Aguiar

Jornalista, comunicadora antirracista, da Baixada Fluminense e apaixonada por ouvir e contar histórias. Seja por meio da fotografia, audiovisual ou escrita. Foi estagiária da assessoria de comunicação do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro e colaboradora do portal Notícia Preta.

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