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#Colabora #8 anos – A tragédia dos refugiados nas bordas da Europa
Seres humanos que fogem da fome ou de guerras esbarram em intolerância e burocracia, enquanto precisam encarar o frio, a falta de estrutura e a pandemia pelo sonho de uma vida mais digna
Seres humanos que fogem da fome ou de guerras esbarram em intolerância e burocracia, enquanto precisam encarar o frio, a falta de estrutura e a pandemia pelo sonho de uma vida mais digna
(Enviada especial a Sarajevo). A pequena Sakine, uma menina afegã de 8 anos, abriu a boca e sorriu. Tímida, ficava vermelha em cada tentativa de comunicação. Mas queria falar e usou todo o vocabulário das poucas palavras que conhecia em inglês: “oi, tudo bem?” Em pé, enquanto falava, se escondia nas pernas da mãe. Vestia calça de moletom rosa, com casaco daqueles bem pesados, apropriados ao rigoroso inverno europeu. O termômetro marcava menos 8 graus Celsius. Era possível sentir o vento frio que cortava a pele como a lâmina afiada de uma faca. Mas Sakine não estava coberta dos pés à cabeça como se costuma dizer. Seus pequenos pés estavam quase nus, cobertos somente pela grossa tira de plástico dos chinelos que vestia naquela cinza tarde de um sábado de fevereiro, no campo de refugiados de Hadžići, cidade a poucos quilômetros de Sarajevo, capital da Bósnia e Herzegovina, na Europa.
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Sakine tinha 6 anos quando sua família se viu obrigada a deixar o Afeganistão para não morrer nas mãos dos talibãs. Nesse périplo, a pequena teve a companhia dos pais e de dois irmãos mais velhos. Dois anos de viagem, mais de 5 mil quilômetros percorridos quase todos a pé, seis fronteiras atravessadas, até chegarem à Bósnia. Eles conheceram as estradas de cimento e lama, as armadilhas e a violência da rota balcânica, via que corta as entranhas dos países nos quais ocorreu uma das piores guerras da humanidade, aquela dos Bálcãs.
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Por esses países pobres, onde ainda se veem as marcas da destruição e algumas bombas ainda explodem, passam milhares de refugiados invisíveis em busca de asilo na Europa. Provenientes do Oriente Médio e de países da Ásia Central, vivem à mercê de traficantes de seres humanos. Convencionalmente, a rota começa na Grécia e termina na Itália, em Trieste. Os que encaram o caminho da guerra são tão corajosos quanto os que arriscam a vida atravessando o Mar Mediterrâneo em pequenos barcos lotados de carne humana.
“Estamos há oito meses aqui no campo”, diz Jawad, pai da pequena Sakine. Quando partiram do Afeganistão não podiam imaginar que haveria uma pandemia a impedi-los de olhar para outros céus, outras estrelas. Todos os dias acordam esperando um sinal divino para continuar a viagem de refugiados em direção à Europa. Com as fronteiras fechadas para controlar a emergência do coronavírus, estima-se (não há números oficiais) que cerca de oito mil imigrantes permanecem encurralados no país.
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Veja o que já enviamosEnquanto os ponteiros do relógio marcam os minutos vividos nesta terra do meio, Sakine vê outras crianças saírem dos contêineres onde vivem e se junta a elas para brincar. Em cada um residem entre duas e três famílias, ou seja, de sete a dez pessoas. Um espaço mínimo que armazena muitos sonhos e esperança. O vento não dá trégua, continua soprando forte e queimando a pele. A mãe da pequena a chama para trocar os chinelos velhos por um par de botas. Agora, com os pés protegidos do frio, está pronta para correr e pular.
No campo de Hadžići vivem mais de 200 crianças, que representam 20% do total das pessoas ali abrigadas. Destes mil refugiados nas bordas da Europa, cerca de 600 são afegãos. O restante provém do Paquistão, da Síria, do Iraque e do norte da África. São professores, jornalistas, policiais, operários, vendedores, estudantes e donas de casa.
A família de Sakine divide os poucos metros quadrados daquela estrutura de aço que os abriga do frio com outra família afegã formada por pai, mãe e duas crianças pequenas. Akane, a mãe, carrega uma sacola de plástico amarelo onde guarda documentos médicos que atestam as quatro vezes em que foi internada no hospital local por causa das crises de epilepsia. “Não posso estar aqui, estou doente”, alerta. Sua mãe mora na Suécia e é para lá que espera ir.
Não é nada fácil a vida no confinamento forçado dos refugiados nas franjas da Europa: tudo é racionado, contado, limitado. Inclusive a água quente. Mesmo diante do gelo invernal, ela custa a chegar e logo acaba, sem dar tempo para o uso de todos. Inaugurado em outubro de 2018, o campo está sob a tutela da Organização Internacional para as Migrações (OIM), agência ligada à Organização das Nações Unidas (ONU). A OIM atende atualmente cinco campos de refugiados no país: eles estão no cantão de Sarajevo como este de Hadžići e no cantão de Una Sana, próximo à fronteira com a Croácia.
“Venha aqui, veja isso”, chama um dos rapazes. Estamos em pé, na parte de trás do campo, diante de um pequeno armazém usado para guardar doações recebidas das organizações não governamentais. A alguns metros, uma fila com dez banheiros químicos é usada tanto para as necessidades fisiológicas quanto para tomar banho, exalando odor fétido e nauseante quando qualquer porta se abre. “Como podemos usar (o banheiro) nessa condição?”, pergunta o rapaz. Em seguida chega um jovem de 34 anos, que a reportagem vai chamar de Tarik. Ele também vem do Afeganistão. Sua épica viagem começou há três anos, com a esposa e o filho que hoje tem 5 anos. “Deixei minha terra porque a família de minha esposa não concordava com nosso casamento. Seus irmãos nos ameaçaram de morte”, narra o jovem que percorreu a pé com a família as fronteiras balcânicas. O destino final dessa viagem distópica é a Alemanha.
‘The game’: vidas humanas em jogo na fronteira com a Croácia
“Na Europa pensam que somos terroristas porque somos mulçumanos, mas não é assim”, lamenta, num suspiro. Vestindo calças jeans e jaqueta de nylon vermelha impotentes diante do frio penoso, Tarik faz notar a sola dos calçados praticamente inexistente que abrigam seus pés. Seu único par de sapatos é um “não sapato”. “Estou há cinco meses com essa roupa, não tenho outra jaqueta, não tenho outro sapato, morro de frio”, descreve o jovem que está há cinco meses no campo.
Ele conta que, antes de chegarem ali, encararam the game, como é chamada a tentativa de atravessar a fronteira da Bósnia com a Croácia para pedir asilo humanitário na Europa. Mas, enquanto caminhavam em uma das trilhas da floresta que separa os dois países, se depararam com um muro em forma de gente de roupas pretas e coturnos altos, a polícia croata, os cães de guarda da Europa. São eles que organizam as expedições na floresta à caça de imigrantes provenientes da Bósnia. “Fui espancado, destruíram meu celular, roubaram nosso dinheiro e nos mandaram de volta para cá”, conta Tarik.
Na desgraça, eles até tiveram sorte. Amir Labbaf, iraniano defensor de uma minoria religiosa que deixou seu país para evitar a morte, está confinado a uma cadeira de rodas e a passar a vida no campo de Sedra, que fica na cidade de Ostrozac, na Bósnia.
A história de Amir é a tragédia na tragédia, tanto que foi criada petição online para o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos permitir a abertura de um corredor humanitário a fim de levá-lo ao destino sonhado no Velho Continente. Segundo a petição, em 28 de junho de 2020, Amir, que já estava na Croácia, caminhava quando se desvencilhou de um carro para não ser atropelado e sofreu lesão na coluna ao cair em uma vala. No dia seguinte, a polícia croata o retirou do leito do hospital em Rijeka, onde havia chegado em estado grave, e tirou-lhe comida, água e o respirador. Foi espancado, deixado apenas de cueca e, no fim da tarde, levado para a floresta perto da fronteira com a Bósnia. Amir foi encontrado dia 30 de junho, rastejando em uma estrada do país.
No dia 28 de março, ele, por meio de seu perfil no Facebook, avisou que estava entrando em greve de fome até as autoridades europeias escutarem seu pedido de ajuda. “Não me sinto bem, mas devo ir em frente para alcançar meu objetivo. Viver com dignidade ou morrer. Estou procurando amor no corpo morto do mundo”, escreveu. Após 12 dias de greve de fome e interrupção de seus medicamentos, Amir recebeu a notícia que sairá do campo e será transferido em um lugar seguro, onde poderá permanecer enquanto seu pedido de asilo não é atendido.
Tarik, Amir e outras centenas de invisíveis que a Europa finge não ver, podem ter perdido uma partida do game. Mas o jogo se refaz e, mais cedo ou mais tarde, eles vão sair vencedores. Assim que o inverno acabar e a neve derreter muitos vão tentar the game de novo.
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Formada pela Universidade São Judas Tadeu (SP), trabalha há 17 anos como jornalista e vive há 15 na Itália, onde fez mestrado em imigração, na Universidade de Veneza. Escreve para Estadão, Opera Mundi, IstoÉ e alguns veículos italianos como GQ, Linkiesta e Il Giornale di Vicenza. Foi gerente de projetos da associação Il Quarto Ponte, uma ONG que trabalha com imigração.