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Veja o que já enviamosA peleja dos covardes no cartão-postal
Num emblema da sociedade estragada, fotos de crianças vítimas de bala perdida são sistematicamente vandalizadas à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas
O cenário “quase arromba a retina de quem vê”, ensina o poeta – mas a beleza se limita à vista. Muito ao contrário, serve de trágica moldura à violência mais infame, tradução perfeita da sociedade estragada que prospera no Rio de Janeiro. A metrópole brutalizada que ocupa o ensolarado enclave de mar, montanha e floresta se apresenta inteira na interdição da empatia mais elementar, a crianças martirizadas no tiroteio sem fim.
Leu essa? A guerra de cada um
Num pequenino trecho da ciclovia de 7,5 km, nas franjas da Lagoa Rodrigo de Freitas, a ONG Rio de Paz criou alerta sobre o incessante banho de sangue carioca, ao pendurar fotos de meninas e mortos vítimas de balas perdidas e nomes de policiais sacrificados nos conflitos inúteis. Comovente – e despolarizado – chamado à razão, sobre a inutilidade dos confrontos (muito) armados nas comunidades populares.


Ali, diante de algumas das moradas mais opulentas da elite municipal, os retratos das crianças que se foram na barbárie rotineira sofrem, desde sempre, todo tipo de vandalismo. Os rostinhos viram alvos de rabiscos debochados; as folhas plásticas são rasgadas ou simplesmente arrancadas do guarda-corpo.
A mensagem intolerante dos atos é definitiva: aquelas faces pretas não têm direito de estar ali nem depois de mortas. Sua memória não pode se fazer presente entre os endinheirados. O incômodo do seu martírio precisa ser removido da paisagem. Quem quiser chorá-las que o faça longe das vistas bem-nascidas. A condenação determina o esquecimento compulsório, inegociável.
Nas peças dos policiais, nomes e pequenos relatos impressos em letras brancas no fundo preto, ninguém toca. Eventuais danos são consequência da ação do tempo. Eles, vítimas como as crianças, não incomodam os covardes vândalos da Lagoa. O desequilíbrio nos pequenos cartazes desvenda as convicções dos intolerantes, que clamam por mais mortes, mais sangue, pelo desaparecimento dos diferentes, “esses estranhos, suburbanos tipo muçulmanos”, como canta o mesmo poeta lá de cima.
Passar pelas imagens penduradas na grade dura alguns segundos, na caminhada mais relaxada. Dá para nem notar, diante do azul faiscante da Lagoa, do desenho marrom e verde das montanhas, do Cristo imponente no alto do Corcovado. Não é por acaso. Cuidadosa em sua cruzada, a ONG Rio de Paz busca somente o que seu nome entrega. Não há maiores ideologias, além do óbvio clamor pelo fim dos tiroteios. Mas o vandalismo grita que algumas vidas merecem a lembrança; outras devem desaparecer.
A disputa pelo trechinho da ciclovia começou em 2015, quando o médico Jaime Gold foi vítima de latrocínio por causa de uma bicicleta. A tragédia motivou a criação, em frente ao local do assassinato, do pequeno memorial, devaneio de uma cidade minimamente pacífica, com a população unida em torno do objetivo de reduzir a produção de cadáveres.
Partiu-se de indignação básica: é inaceitável a morte de qualquer ser humano por bala perdida. A ONG concentra-se na faceta mais dramática da mazela, que atinge as crianças – e no Rio de Janeiro, desde 2007, são 122. No suplício do governo Claudio Castro, foram 60 até agora, descalabro que não dá sinais de estancar; muito ao contrário, especialmente pelo potencial eleitoral embutido no faroeste.


As fotos das crianças mortas – a maioria, imagens feitas pela própria família, de momentos felizes, tentativa de mitigar a dor lancinante da perda – amanheceram, seguidamente, vandalizadas. Olhos, narizes e bocas riscados, rostos tapados pelos rabiscos ou retratos simplesmente arrancados e deixados pelo chão. A mãe de uma das vítimas homenageadas chegou a passar mal, quando se deparou com a destruição. Viveu nova dor, agora do desprezo pela existência abreviada de seu filho.
A brutalidade ocorre, neste dezembro, diante de outro símbolo que deveria ser de harmonia, a majestosa árvore de Natal, de volta ao espelho d’água, após alguns anos de ausência. Nem a data-emblema consegue semear alguma fraternidade entre os moradores da Lagoa. Aliás, a imensa maioria dos nativos odeia o equipamento sazonal. Agarra-se à hipocrisia de reclamar do trânsito – engarrafado o ano inteiro –, quando, em verdade, quer o bairro só para seus habitantes, num plano espúrio de exclusividade.
Numa patologia prima do desprezo pelas imagens dos meninos e meninas, os endinheirados da região têm horror a tudo que não se parece com eles. Nutrem, sem pudor, repulsa pelos alienígenas – sejam os vivos ou a mera lembrança dos que se foram. Sempre carrancudos, de mal com a vida, clamam por um reino só deles, com o direito à circulação no cartão-postal vedado a pretos, pobres e afins.
A árvore de Natal iluminará a Lagoa até dia 6 próximo sem que as fotos das pequenas vítimas das balas perdidas retornem à ciclovia. Diante da falta de recursos para repor os pequenos cartazes sempre vandalizados, a ONG Rio de Paz pausou sua luta. Praticamente ninguém por ali se importa. No endêmico desprezo pela vida expresso na pequena grande história da manifestação na ciclovia, a sociedade carioca produz uma cidade estragada, feia, intolerante, brigada com si mesma – e, do pior jeito, cada vez mais inviável.
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