ODS 1
Fogo e calor batem recorde no Pantanal
Com temperaturas acima dos 40 graus e incêndios se espalhando rapidamente, especialistas alertam para o risco de uma nova tragédia ambiental
O poeta pantaneiro Manoel de Barros escreveu: “Quando os meus olhos estão sujos da civilização, cresce por dentro deles um desejo de árvores e aves”. A beleza do Pantanal sul-mato-grossense, o menor bioma brasileiro e a maior planície de inundação do mundo, quintal onde Barros mantinha forte inspiração para suas escritas, sofre com a alta onda de calor e os incêndios que já registram um milhão de hectares queimados em 2023, triplicando a área queimada em relação a 2022. Até agora, foram registrados mais de 3 mil focos, número cinco vezes maior que a média histórica para o mês.
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Território ainda de Cerrado e Mata Atlântica, o estado do agronegócio enfrentou três ondas intensas de calor nunca vividas antes e, atualmente, é um dos pontos mais quentes do país. Pelo menos 10 municípios ultrapassaram a marca dos 40 graus nos últimos quinze dias e, de acordo com os dados do Centro de Monitoramento do Tempo e do Clima (CEMTEC/MS), o recorde aconteceu em Porto Murtinho, atingindo 43,4°C no dia 17 de outubro de 2023.
Hábito comum entre os moradores, o tereré gelado – bebida à base de erva-mate vinda do país vizinho, Paraguai – não tem dado conta de refrescar o físico nem as ideias de quem só pensa em se esconder do ardor, de preferência junto ao ar-condicionado. A carioca Adelina Brissac, que há 17 anos faz da capital Campo Grande sua morada, diz ser inédita a situação. Imprevista nas cartas abertas diariamente pela taróloga, a alteração climática fez as temperaturas subirem abruptamente em níveis até 5°C acima da média. Aliado a isso, a baixa umidade do ar ajudou a formar um entorno complicado para a saúde humana.
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Veja o que já enviamos“O que estamos vivendo é muito preocupante. Quando preciso resolver algo fora de casa, modifico os meus horários para sair apenas quando o calor não está tão gritante. Por ora, me hidrato intensamente, mantenho uma boa alimentação e uso roupas com tecidos mais leves”, comenta Brissac, que prefere manter a calma e o foco no bem-estar, pois até agora estamos na primavera, imagina quando vingar o verão. E seguindo o pensamento oriental que define o karma como a consequência direta de determinadas ações tomadas por indivíduos ou coletivamente, qual será o tamanho da nossa conta depois de tanto tempo destruindo a natureza? Em relatório produzido pelo grupo ambientalista WWF, cientistas alertam que tal ritmo está empurrando o planeta para um declínio catastrófico.
Se uma parcela da humanidade permanece adormecida quando o assunto é proteger o globo da degradação ambiental, influenciada pela exploração capitalista, despertar para mais um dia e notar a névoa de fumaça cobrindo a cidade deveria acionar o alarme interno de todos nós. Foi o que ocorreu na manhã da quinta-feira (16/11) em Campo Grande; a fumaça provocada por incêndios no Pantanal, soprada pelo vento, chegou ao grande centro urbano. Em 2020, a fuligem de queimadas na Floresta Amazônica e no Pantanal fizeram o dia virar noite em São Paulo, afetando a qualidade do ar a quilômetros de distância.
Valesca Fernandes, meteorologista e coordenadora do CEMTEC/MS, relatou que tais ondas de calor, aliadas aos baixos valores de umidade relativa do ar (entre 10-30% em grande parte do estado), ocorrem devido à atuação de bloqueios atmosféricos. Ou seja, as atividades de sistemas de alta pressão atmosférica favorecem o tempo quente e seco. Em conjunto, a atuação do El Niño amplificou as altas temperaturas.
A especialista afirma que, no passado, a situação já foi pior. O ano de 2020 foi bastante quente, registrando uma temperatura superior, atingindo o valor de 44°C. As previsões para o final do ano e início de 2024 indicam que é possível identificar outros sistemas de alta pressão atmosférica em formação durante a primavera/verão. Nesse sentido, altas temperaturas e, até mesmo, novas ondas de calor irão ocorrer em Mato Grosso do Sul.
Pantanal no olho do furacão
Neste mesmo escaldante período de 2020, outro fato calamitoso ganhou o noticiário internacional: o Pantanal sofreu o maior incêndio da história, quando 30% de seu território foi consumido pelas chamas, afetando a fauna e as comunidades – quilombolas, ribeirinhas e indígenas – ali presentes.
Segundo Ângelo Rabelo, presidente do Instituto Homem Pantaneiro (IHP), estudos mostraram que mais de 17 milhões de vertebrados foram vitimados pelo fogo de 2020. De lá para cá, o Pantanal vivenciou um momento de recuperação, mas agora em novembro, um cenário catastrófico se desenhou. Ele reforça que a prevenção e o uso da tecnologia, aliados à presença do ser humano, devem ser priorizados imediatamente.
“Estamos vivenciando um período crítico, com temperaturas altíssimas. As mudanças climáticas estão causando essa alteração, e nós estamos sofrendo as repercussões desse extremo. Neste ano, temos temperaturas acima dos 40°C, e isso está contribuindo para os incêndios. Mas precisamos entender também que temos a tecnologia e o conhecimento de pantaneiros e pantaneiras para atuar contra esses incêndios; porém, essa combinação não está sendo aplicada em todo o território. É urgente que os governos promovam o diálogo, reúnam esforços para vencer os desafios das distâncias, e haja um trabalho de prevenção muito rigoroso”, enfatiza Rabelo.
Os maiores prejuízos notados pelo IHP até o dia 14 de novembro estavam no Pantanal Norte, no Parque Nacional do Pantanal Matogrossense e no Parque Estadual Encontro das Águas, que ficam em Mato Grosso. Esses incêndios descontrolados, que ardem há mais de três semanas, já pularam para Mato Grosso do Sul e atingem de forma intensa áreas do Pantanal do Paiaguás. Na Serra do Amolar, auxiliados pelo sistema Pantera para monitoramento da fumaça, foi notificado que o fogo cada vez chega mais próximo, por conta do calor e do vento, num tempo de resposta muito curto para agir.
O fogo também passou a ser registrado com maior vigor no Parque Estadual do Rio Negro, entre Miranda e Corumbá, em Mato Grosso do Sul. Rabelo observa semelhanças com o desastre enfrentado em 2020; agora é aguardar a previsão de chuva indicada pelos meteorologistas para os próximos dias.
“Desde 2021, o IHP passou a atuar fortemente para prevenir o fogo. A Brigada Alto Pantanal foi criada para agir ao longo do ano inteiro. Em 2022, somamos esforços com parcerias para instalar o sistema Pantera, que monitora mais de 1 milhão de hectares na região do Alto Pantanal. Esse lugar é um corredor de biodiversidade, lar de mais de uma centena de espécies de animais, incluindo a onça-pintada. Com o sistema Pantera, detectamos um sinal de fumaça 3 minutos após ele ser registrado, o que nos dá mais tempo para organizar o combate e tentar acionar a logística enquanto ainda é possível apagar o fogo. Isso pode acontecer com a nossa Brigada Alto Pantanal, com apoio do Prevfogo/Ibama, ou diretamente com proprietários que estão preocupados e querem proteger o Pantanal”, explica Rabelo. Os esforços conjuntos conseguiram reduzir consideravelmente o fogo em 2021 e 2022. Porém, infelizmente, com o incêndio que ocorre desta vez no Pantanal Norte, caso ele chegue nas áreas da Serra do Amolar, será difícil agir por conta da potência que ele está ganhando.
Mantida pelo IHP com o apoio de alguns parceiros e doações de pessoas físicas, a Brigada Alto Pantanal é formada por pantaneiros. São pessoas apaixonadas pelo Pantanal, que têm um conhecimento amplo e dialogam constantemente com as comunidades locais.
“Em 2020, tivemos um tremendo choque. Não estávamos preparados para agir diante do que o fogo causou. Depois que a situação foi controlada, no IHP, criamos um trabalho de brigada permanente. Temos um plano operativo de manejo, prevenção e combate a incêndios florestais na Rede Amolar bem estruturado. Passamos a usar tecnologia e inteligência artificial para detectar fumaça em 3 minutos, enquanto o satélite demora ao menos seis horas para criar uma notificação. Também atuamos na recuperação de áreas degradadas na Serra do Amolar e, com o apoio do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio), plantamos 25 mil mudas e estamos fazendo o acompanhamento para que elas cresçam”, celebra o presidente.
Através do monitoramento das armadilhas fotográficas, foi possível identificar que várias espécies voltaram a circular na área que está sendo recuperada. Houve uma estabilização, mesmo após os danos de três anos atrás. Rabelo ressalta que a prevenção e o uso da tecnologia, aliados com a presença do ser humano, devem ser priorizados imediatamente.
Para Leonardo Copetti de Moura, guia do Pantanal do Salobra, desde que o bioma tem suas medições de cheias e secas, nota-se que um ano nunca é igual ao outro. Entretanto, numa escala crescente, é comprovado que o Pantanal está mais quente, com sensação térmica de 46°C. “As maiores modificações negativas na planície ainda são oriundas das ações humanas. Com os desmatamentos, as queimadas e os grandes projetos de impacto que sempre tentam fazer, como da hidrovia do rio Paraguai e das miniusinas hidrelétricas”, denuncia Copetti.
Nos últimos anos, o Delta do Salobra está protegido e longe dos grandes incêndios, mesmo assim, os cuidados permanecem. O guia recorda que em 2007 o fogo fez um estrago significativo na região e que a experiência foi pedagógica para aprender como é lenta a recuperação da natureza e muitas vezes irreversível ao extinguir espécies de animais e árvores centenárias. Atualmente, os protetores utilizam drones para verificar a incidência de fumaça e verificam diariamente o site do FIRMS, da NASA, para acompanhar os focos atualizados de incêndio. E, também, utilizam uma moto bomba portátil, que pode ser carregada dentro de um barco para apagar incêndios na mata ciliar do Salobra, através da água do rio.
O biólogo da ONG SOS Pantanal, Gustavo Figueiroa, está em campo, juntamente com uma equipe de brigadistas e voluntários, apagando o fogo fora de controle que se espalha com rapidez pela rodovia Transpantaneira, a principal via de acesso ao bioma em Mato Grosso. “Os animais estão sofrendo demais e eles não padecem apenas com o fogo. Depois que tudo passa, quem sobrevive não encontra recursos para se alimentar; é o período que chamamos de fome cinza”, adverte Gustavo.
Os danos econômicos e ambientais na região apresentam um quadro nunca vivido. As estimativas da ONG Ecoa, baseada no Mato Grosso do Sul, apontam que o calor associado a chuvas irregulares traz problemas para o plantio de grãos em vários lugares. “Precisamos de políticas apropriadas para fazer frente a eventos extremos que, a cada dia, estarão mais presentes no cotidiano. Uma proposta que temos defendido é a criação de Centros de Operações Climáticas que congreguem todas as instituições que possam contribuir para um efetivo trabalho de prevenção e mitigação. Deve ser constituído com a soma de instituições federais e dos dois estados (MS e MT)”, argumenta Alcides Faria, diretor institucional da Ecoa.
Em relação às comunidades e famílias que vivem ao longo dos rios, Alcides menciona que é preciso estruturar o suporte assistencial, pois os ecossistemas que permitem sua sobrevivência são muitas vezes destruídos, sendo que alguns casos sequer são naturalmente recuperados. Outra questão é ter uma política permanente de comunicação e informação frente à possibilidade de determinados fatos climáticos.
Rios de águas quentes
Com a alta onda de calor, a temperatura do ar, por tabela, influencia a temperatura das águas. O biólogo e professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), José Sabino, esclarece que se entra uma frente quente, a temperatura do ar aumenta subitamente e, na sequência, a temperatura da água também sobe. Contudo, há uma inércia temporal: a água leva mais tempo para mudar de temperatura do que o ar, devido ao calor específico da água ser mais elevado. Na prática, isso interfere na qualidade da água e pode impactar nos organismos aquáticos.
“Os monitoramentos de aproximadamente três décadas feitos pelo órgão ambiental estadual (Imasul) apontam que diferentes rios e lagoas pantaneiras (estas são regionalmente chamadas de baías) têm temperaturas que oscilam entre 17-18°C até 33-34°C. Em situações de extrema seca e calor, algumas baías podem aumentar ainda mais a temperatura da água que está retida em pequenas porções, atingindo extremos térmicos próximos de 40°C”, revela Sabino, que visualiza nas mudanças climáticas, junto da crise da biodiversidade, as duas maiores tragédias anunciadas de nosso tempo.
A situação do aquecimento das águas da Amazônia tem semelhanças e diferenças em relação ao Pantanal. O professor informa que os processos de alteração da temperatura se assemelham nos dois biomas por serem regidos por princípios físicos universais (troca de temperatura entre moléculas). O aumento excessivo da água seguramente afeta a vida aquática, que depende dessa condição para a manutenção de seus processos fisiológicos e ecológicos. No caso dos botos (tucuxi e rosa) encontrados mortos, há um processo conhecido como “intermação”, que é o aumento da temperatura corporal acima da capacidade de regulação fisiológica. O animal praticamente “cozinha” na água.
“No Pantanal, a vida é regida há milhões de anos pelo pulso de inundação (como uma onda cíclica que recobre a planície de água e depois reflui). Essa característica ambiental, com oscilações na forma de pulos anuais, regula os ciclos vitais e o tamanho das populações na planície. É um processo que ocorre ao longo de milhões de anos, e as espécies da região se adaptaram a essas variações. Quem não se adaptou foi excluído pela seleção natural. Ainda que adaptados a essas variações, quando essas são extremas, não há quem resista”.
Nas ocasiões de extrema seca e calor, algumas baías podem ter a temperatura da água próxima de 40°C, o que torna esses ambientes impróprios para a vida aquática. Nessa conjuntura, os organismos aquáticos morrem e fazem parte dos processos vitais das cadeias alimentares, notadamente para aves aquáticas piscívoras que predam peixes e crustáceos presos nessas águas.
Reflorestamento e ansiedade climática
Em 2020, buscando respirar ares puros, o publicitário Neo Avila mudou de São Paulo para Bonito, no Mato Grosso do Sul. Só que ao chegar no espaço com as águas mais cristalinas do país, ele se deparou com os incêndios no Pantanal e a fumaça dentro do povoado. Plantar árvores foi a saída mais objetiva encontrada por Neo, que uniu um grupo de amigos numa ação pontual no plantio de mil mudas. A iniciativa expandiu, e o movimento de voluntários ganhou o nome de Mil pelo Planeta, abrindo um leque de opções possibilitando a realização do plantio sob encomenda para empresas e proprietários de terra que visam a regularização de sua área.
“Nos nossos times sempre envolvem pessoas da própria comunidade onde estamos plantando, seja como fornecedores de sementes e insumos, ou na preparação do solo e no plantio, junto com a gente. No Mato Grosso do Sul plantamos muito em Bonito, Campo Grande, Ponta Porã, Nova Andradina, Bodoquena e Jaraguari. Em outros estados já contribuímos em Brumadinho (MG) e agora estamos indo para a nossa primeira ação de plantio de mangue com limpeza na praia no Rio de Janeiro”, festeja Avila, coordenador da missão.
O projeto cruzou as fronteiras geográficas com as plantações na Bolívia e Argentina, e a intenção, como o próprio nome entrega, é plantar por todo o planeta. Em algumas áreas reflorestadas pelo Mil, é possível ver hoje árvores com até 3 metros de altura, além de acompanhar a recomposição de solos antes inférteis e que, através do sistema agroflorestal, agora fornecem alimentos frescos – como abóbora, feijão, banana, milho etc – diretamente para o prato de muitos brasileiros. “Isso garante que o solo está ficando mais saudável, e que as abelhas e passarinhos polinizam, permitindo a reprodução das plantas, produção de frutos com melhor qualidade e maior número de sementes”, evidencia Neo.
E na turbulenta fase que enfrentamos a nível mundial, as emoções humanas relacionadas às mudanças climáticas estão sendo descritas como ecoansiedade. Tassiana Cruz, especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental, analisa que o desconforto causado pelas altas temperaturas é capaz de afetar o nosso organismo, gerando principalmente picos de irritação e estresse. “O cortisol, por exemplo, interage diretamente no nosso estado emocional. Em dias muito quentes, onde não existe uma climatização adequada, seja ela artificial ou natural, o aumento da temperatura faz com que o nosso corpo trabalhe muito mais. Na tentativa de dissipar esse calor, é comum sentirmos irritabilidade, desânimo e desmotivação frente à falta de energia”, repara a psicóloga. Ela considera imprescindível momentos de pausa na rotina para se autorregular emocionalmente e perceber as emoções antes que elas se transformem em algo mais sério, como uma crise de ansiedade. Lembrando que, nesses episódios, o melhor é buscar ajuda profissional.
“É valioso adquirir hábitos sustentáveis pautados na educação ambiental. Assim, as pessoas podem transformar atitudes e comportamentos atuais pensando no futuro salubre para todas as gerações”.
As recomendações do CEMTEC para a alta onda de calor em todo o país são, em especial, beber bastante água e evitar exposição ao sol nos horários mais quentes e secos do dia.
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Júlia Moa é jornalista multimídia; vencedora do prêmio Respeito e Diversidade do MPF.