ODS 1
Ataque ao ambiente em Rondônia na lei e na marra
Projetos do governo estadual abrem caminho para legalizar o ilegal e regularizar áreas invadidas de unidades de conservação e terras indígenas
Depois de quase seis meses de investigação, a Polícia Federal prendeu o chefe de grupo criminoso que desmatou 1,6 milhão de hectares e incendiou a Reserva Ambiental Margarida Alves, em Rondônia. Segundo a investigação, o líder da organização criminosa instigava os invasores a ocupar a reserva Margarida Alves, sob o pretexto de que a área seria regularizada. Essa estratégia de ocupação de terra na marra repete-se no estado: interessados em avançar sobre as áreas de conservação incentivam invasões – seguidas por desmatamento e queimadas – para depois ocupar com pecuária e agricultura.
Para pesquisadores e ambientalistas, esse ataque ao meio ambiente é organizado e conta com apoio oficial. “Há uma ofensiva do estado para legalizar o ilegal. Grandes produtores da agropecuária promovem as invasões nas áreas de conservação e nas terras indígenas, estimulando pessoas em dificuldades a ocupar esses locais, para depois buscar legalizar as áreas invadidos sob pretexto de atender os invasores”, afirma o sociólogo Luis Fernando Novoa Garzon, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia.
Em setembro, pouco depois do incêndio na reserva Margarida Alves, o governador Marcos Rocha – coronel da reserva da PM, eleito pelo PSL e atualmente sem partido, enviou à Assembleia Legislativa um projeto de lei complementar que reduz em cerca de 152 mil hectares a Reserva Extrativista Jaci-Paraná e em outros 10 mil hectares o Parque Estadual Guajará-Mirim. “Rondônia virou um laboratório da política antiambiental do governo brasileiro”, protesta a advogada Neiva Araújo, professora do Departamento de Direito da Universidade Federal de Rondônia, Doutora em Desenvolvimento Regional & Meio Ambiente.
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Veja o que já enviamosHá um estímulo à política do fato consumado: invade, explora, ocupa e, quando a Justiça suspende porque é flagrantemente ilegal, o estrago está feito: a destruição está consumada, os legítimos ocupantes da terra, indígenas ou comunidades tradicionais, já foram expulsos ou afastados
[/g1_quote]Na justificativa para o PLC 80/2000, o governador deixa claro sua intenção de legalizar o ilegal. “Com a desafetação parcial da Reserva Extrativista de Jaci-Paraná e do Parque Estadual de Guajará-Mirim, será possível promover a regularização de ocupações existentes, atendendo uma demanda social existente, sendo que tais medidas visam ao controle territorial da ocupação na região e assegurar a conservação da biodiversidade, minimizando os conflitos sociais e ambientais, atualmente existentes”, afirma Marcos Rocha na sua mensagem à assembleia.
Menos de um mês depois, o governador enviou outro projeto de lei complementar (85/2020), este com o objetivo de mudar o Zoneamento Socioeconômico-Ecológico de Rondônia o que permite a redução da área de reserva legal e exploração e execução de obras em qualquer área do estado, inclusive terras indígenas e unidades de conservação. Na justificativa do governador, o “PLC constitui um importante instrumento para o alcance da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Estado de Rondônia na medida em que estabelece um equilíbrio entre a proteção do meio ambiente e o uso e a ocupação do solo”.
Para o professor Nóvoa Garzon, o governo de Rondônia segue a lógica do governo Bolsonaro e do seu Ministério do Meio Ambiente com o domínio completo da agenda empresarial sobre a agenda ambiental. “Há um estímulo à política do fato consumado: invade, explora, ocupa e, quando a Justiça suspende porque é flagrantemente ilegal, o estrago está feito: a destruição está consumada, os legítimos ocupantes da terra, indígenas ou comunidades tradicionais, já foram expulsos ou afastados”, aponta o sociólogo.
Rondonização acelerada com Bolsonaro
Essa ocupação ilegal de terras indígenas e áreas de preservação tem tanta tradição na Amazônia que foi batizada de rondonização – o atropelo das regras ambientais pelos interesses econômicos. “Invasões e ameaças aos territórios indígenas em Rondônia só vem aumentando ao longo do tempo. Mas as coisas pioraram muito com esse governo porque os invasores – madeireiros, garimpeiros, fazendeiros – sentem que tem apoio federal e estadual para ações criminosas”, afirma Maria Leonice Tupari, dirigente da Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia (AGIR).
Leonice explica que a pandemia dificultou a articulação de indígenas, comunidades ribeirinhas, ambientalistas e outros interessados na preservação do meio ambiente. “A situação em Rondônia é muito grave. E não são apenas os indígenas ameaçados pelos invasores, mas também outros povos tradicionais, quilombolas, moradores de áreas ribeirinhas”, afirma a dirigente da AGIR.
[g1_quote author_name=”Maria Leonice Tupari” author_description=”Dirigente da Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]É uma ameaça crescente sempre incentivada pelas manifestações do governo federal e do governo estadual. Marcos Rocha se elegeu com discurso de Bolsonaro, segue cartilha do governo federal, trata ambiente e indígenas como inimigos
[/g1_quote]Mesmo com as dificuldades, protestos conseguiram barrar a votação dos dois projetos de leis complementares, previstos para o fim de dezembro. Mais de 200 pessoas estiveram na Assembleia Legislativa de Rondônia no dia 2 de dezembro quando os deputados promoveram audiência pública para discutir o protesto: representantes de entidades de indígenas, de seringueiros, de ribeirinhos, de ambientalistas criticaram o PLC 80/2020. Manifesto – assinado por mais de 50 entidades, entre elas, Greenpeace e WWF – foi divulgado em todo o país e até no exterior. Pesquisadores também criticaram a proposta de novo Zoneamento Socioeconômico-Ecológico, do PLC 85/2020.
A votação dos dois projetos foi adiada para fevereiro, na retomada dos trabalhos legislativos. Entretanto, o avanço desgovernado da pandemia deixou os PLCs fora da pauta. Mesmo assim, na primeira semana de março, com Rondônia ameaçada de ficar sem oxigênio para os doentes, pelo menos dois deputados defenderam a votação imediata dos projetos, sempre sob a argumentação da necessidade de regularização fundiária para incentivar o desenvolvimento econômico.
Maira Loenice explica que as terras indígenas mais visadas são Uru-Eu-Wau-Wau – invadida por madeireiros seguidamente – e Karipuna, perto de Porto Velho, onde invasores já foram alvo de operação da Polícia Federal. “É uma ameaça crescente sempre incentivada pelas manifestações do governo federal e do governo estadual. Marcos Rocha se elegeu com discurso de Bolsonaro, segue cartilha do governo federal, trata ambiente e indígenas como inimigos”, destaca a dirigente da entidade indígena.
Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro já tinha dado o tom para o estado durante uma entrevista. “Rondônia tem mais de 53 unidades de preservação e 25 terras indígenas. É um absurdo o que se faz no Brasil em nome ambiental. Isso daí tem inibido o progresso daqueles que querem investir”, atacou o futuro presidente. Desde então, houve seguidas invasões em Rondônia: da Floresta Nacional (Flona) Bom Futuro, da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, de unidades de conservação federais e de áreas estaduais como a Parque de Guajará-Mirim.
Bolsonaro inflou os números. Em Rondônia, o conjunto das Unidades de Conservação e Terras Indígenas totaliza 89.916 km² ou 38% do estado: são quatro reservas extrativistas (Resex), quatro florestas nacionais (Flonas), duas Áreas de Proteção Ambiental (APAs), 14 unidades de conservação de proteção integral, além de 24 Terras Indígenas (TIs) que ocupam um total 20,82% da área do Estado. No Zoneamento Ecológico em vigor, as áreas agricultáveis do Estado somam mais de 50% do território de Rondônia.
Na contramão da legislação ambiental
Para o sociólogo Nóvoa Garzon, as duas propostas do governo estadual são flagrantemente ilegais. “Esses PLCs estão à margem da lei porque afrontam à legislação federal e atropelam as regras jurídicas de preservação e zoneamento estabelecidas na Constituição. Eles atropelam jurisprudência de que não é possível retroceder em princípios constitucionais”, explica o professor da UNIR.
[g1_quote author_name=”Neiva Araújo” author_description=”Advogada e professora da Universidade Federal de Rondônia” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O ZSEE (Zoneamento Socioeconômico Ecológico) foi concebido como instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente para proteger bens de domínio público ou de uso comum e impedir que águas, solos e biomas sejam deteriorados e monopolizados por interesses privados. O projeto tem artigos que deturpam lógica e desvirtuam a essência do zoneamento ecológico
[/g1_quote]Com a desafetação proposta pelo PLC, a Reserva Extrativista Jaci-Paraná corre o risco de perder o equivalente a 77% do seu território, ficando com apenas 45 mil hectares. “Desafetação de área protegida significa desproteger. É um retrocesso jurídico, vai na contramão da legislação ambiental”, ensina a professora Neiva Araújo, do Departamento de Direito da Universidade Federal de Rondônia. O Parque Estadual Guajará-Mirim vai perder cerca de 10 mil hectares, com as mudanças de seus limites (de 216,5 mil hectares para 207 mil).
As duas áreas estão delimitadas por duas rodovias – a estadual RO-420 e a federal BR-364. A desafetação dessas unidades impactam diretamente as Terras Indigenas Uru-eu-wau-wau, Karipuna, Igarapé Lage, Igarapé Ribeirão, Karitiana e os povos que estão em isolamento voluntário na região que envolve as áreas protegidas. “Nós vamos nos articular para pedir auxílio do Ministério Público para barrar esses projetos na Justiça”, afirma Maria Leonice Tupari.
O PLC 85/2020, ao estabelecer um zoneamento que reduz a área protegida, também vai de encontro a legislação ambiental. “O ZSEE (Zoneamento Socioeconômico Ecológico) foi concebido como instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente para proteger bens de domínio público ou de uso comum e impedir que águas, solos e biomas sejam deteriorados e monopolizados por interesses privados”, explica Neiva Araújo. “O projeto tem artigos que deturpam lógica e desvirtuam a essência do zoneamento ecológico”, acrescenta.
Em análise publicada no site Amazônia Real, os pesquisadores da UNIR apontam “as incongruências e as ilegalidades” do PLC 85/2020. “No artigo 22 do PLC, é prevista a redução da reserva legal em até 50%, o que contraria o disposto no Decreto Federal 4.297/2002, que estipula a impossibilidade de redução do percentual de reserva legal, definido em dispositivo específico em no mínimo 80%. Da mesma forma, não se pode reduzir, discricionariamente, áreas protegidas (Áreas de Preservação Permanente, Reservas Florestais Legais e Áreas de Uso Restrito), ainda que estas não se enquadrem como Unidades de Conservação. Em síntese, as legislações estadual e municipal podem ampliar a proteção ambiental prevista na legislação federal, jamais encolhê-la. O artigo 24 do Projeto de Lei Complementar 85/2020 autoriza a exploração de recursos minerais e a construção de obras públicas lineares consideradas de relevante interesse público em qualquer zona do ZSEE, o que inclui a zona 3 que abrange Unidades de Conservação, Territórios Indígenas e Quilombolas”, destacam Nóvoa Garzon e Neiva Araújo.
A boiada do garimpo
Como o governador Marcos Rocha tem folgada maioria na Assembleia, o adiamento da votação dos projetos para o começo do ano legislativo foi apenas um breve alívio: os PLCs estão prontos para entrar na pauta do plenário, quem por ora, está tomada pela pandemia. Mas o governo de Rondônia não deixou indígenas, ambientalistas e seus aliados descansarem para a batalha legislativa. Em 29 de janeiro, decreto estadual – medida infralegal, como a boiada sugerida pelo ministro Ricardo Salles – foi publicado com o objetivo de permitir o “licenciamento ambiental da atividade de lavra de ouro em corpo hídrico no Estado de Rondônia”. Ou seja, liberar os garimpos nos rios.
Como Bolsonaro, Rocha é fã dos garimpeiros. “Dia histórico! Assino hoje o decreto que libera as atividades garimpeiras em Rondônia. Famílias sofreram por décadas. Perdemos milhões em extração não regularizada”, comemorou o governador nas redes sociais. “Não pode ter decreto para legalizar o garimpo. Garimpo é uma atividade ilegal, que contraria as leis trabalhistas, que não tem qualquer estrutura, que provoca danos terríveis à saúde, inclusive dos garimpeiros”, espanta-se a professora Neiva Araújo.
Dirigente da Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia, Maria Leonice Tupari. “É um absurdo este decreto que libera garimpo rios, legalizando uma ilegalidade e ameaçando a saúde de indígenas e toda a população que depende dos rios, que bebe água e consome peixes dos rios. Temos muito exemplos de impactos na saúde indígena pelas atividades garimpeiras em toda a Amazônia, como, por exemplo, a contaminação dos indígenas Yanomami”, critica a líder indígena.
O professor Nóvoa Garzon vê uma ação orquestrada para aproveitar a crise sanitária. “Temos um capitalismo pandêmico: querem aproveitar o desastre econômico causado pela covid-19 para instituir uma política de crescimento a qualquer preço, atropelando a legislação ambiental e os direitos dos indígenas e outros povos tradicionais da Amazônia”, critica. “Os projetos estaduais podem ser ilegais ou inconstitucionais mas são uma sinalização de que as ações ilegais e as invasões têm o apoio do governo. Os projetos fragilizam as leis de proteção estadual, estimulam o avanço da ilegalidade. Vale o mesmo para o decreto dos garimpos no rios: é um estímulo ao ilegal”, acrescenta.
A dirigente da AGIR afirma que as entidades vão continuar tentando barrar as ações que, na lei e na marra, ameaçam a preservação ambiental e a vida dos povos tradicionais. “Mesmo com a pandemia, nós vamos nos reunir virtualmente para ver o que fazer”, garante Leonice Tupari. A reação vai precisar partir da sociedade. Procurado pelo #Colabora para falar sobre possíveis ações contra os projetos e o decreto do governo, o Ministério Público Estadual passou a bola para o MP Federal, que, por sua vez, disse que os procuradores estavam assoberbados com a pandemia e não podiam falar de questões ambientais e indígenas.
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Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade