O Xingu não está mais para peixe

O drama das famílias que perderam o sustento tirado do rio após a construção de Belo Monte

Por Marceu Vieira | ODS 14ODS 7 • Publicada em 31 de março de 2016 - 08:00 • Atualizada em 31 de outubro de 2023 - 16:06

Antônia Nascimento Neves, 34 anos, vive com os 3 filhos e a nora, na localidade conhecida como Aparecida, no bairro Brasília, em Altamira

Antônia Nascimento Neves, 34 anos, vive com os 3 filhos e a nora, na localidade conhecida como Aparecida, no bairro Brasília, em Altamira

O drama das famílias que perderam o sustento tirado do rio após a construção de Belo Monte

Por Marceu Vieira | ODS 14ODS 7 • Publicada em 31 de março de 2016 - 08:00 • Atualizada em 31 de outubro de 2023 - 16:06

(Fotos de Marizilda Cruppe) – Terra de uma gente cristã, sobretudo católica e ligada às alas mais progressistas da Igreja, herança da atuação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) nos anos 1970 e 1980, Altamira anda assustada por viver, ultimamente, na contramão da passagem bíblica que relata o milagre da multiplicação dos peixes por Jesus no Mar da Galileia. Os peixes do Rio Xingu, desde o enchimento do reservatório da Hidrelétrica de Belo Monte, vêm escasseando, escasseando, escasseando.

Se fizerem uma CPI dentro de Altamira, vai ser pior que a da Petrobras! É impossível numa cidade dessas entrar tanto dinheiro, e a gente estar assim! A gente não tem hospital! O que deram para o pescador? Porrada na cara! Mais nada!

João Pereira da Silva
Pescador

A pescadora Raimunda Gomes da Silva, 57 anos, rendeu-se. Vendeu um de seus dois pequenos barcos por R$ 1.200 e pendurou na varanda, como troféus de um tempo mais feliz, as suas redes de ofício. Mãe de sete filhas criadas com o sustento que retirava do Xingu, Raimunda e a família foram remanejadas de onde moravam pela usina. Hoje, estão no bairro Ayrton Senna I, a 5km do rio, em casa mais modesta, comprada com o dinheiro da indenização paga pela concessionária Norte Energia.

Leu essas? Todas as reportagens da série especial sobre Belo Monte, vencedora do IV Prêmio Petrobras de Jornalismo na categoria Sustentabilidade

Nos tempos de fartura no Xingu, ela vivia com o marido, João Pereira da Silva, 64 anos, seu parceiro de pesca, na Ilha Barriguda, uma das mais de 100 inundadas pela barragem. Segundo Raimunda, funcionários da usina puseram fogo em sua propriedade antes mesmo que ela conseguisse retirar todos os pertences da vida inteira.

O bairro da Amizade, às margens do rio Xingu, era uma área de pescadores com casas de palafita. As cerca de 500 famílias que lá viviam foram removidas e toda a região alagada
O bairro da Amizade, às margens do rio Xingu, era uma área de pescadores com casas de palafita. As cerca de 500 famílias que lá viviam foram removidas e toda a região alagada

Apesar de convencida de que dificilmente terá sucesso numa ação judicial, ela deu queixa contra Belo Monte na Polícia Federal. O marido está doente desde então, com tremores nas mãos e as pernas inseguras, condição que ele e a mulher atribuem a uma sequela do trauma da remoção:

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– Quando o representante da Norte Energia começou a falar, João deu a tremer e suas pernas bambearam. Ele ficou três meses sem andar, e eu o levando da cama para o banheiro, do banheiro para a cama – recorda Raimunda. – Hoje, não temos mais condição de pescar. Aqui é muito longe do rio. E meu parceiro de pesca (o marido) não pode mais. E o rio mudou. Os peixes, além de sumidos, estão doentes. Antes, um peixe fisgado às 4h da manhã continuava fresco às 9h. Agora, uma hora depois, já está fofo.

João sequer concede pronunciar as palavras “Belo Monte”. Refere-se à usina como “aquilo”. No máximo, permite-se dizer “Norte Energia”. Seu desabafo revela o linguajar de quem teve pouco estudo, mas acumulou muita sabedoria. Como Raimunda, ele é atento ao que vai na cidade, na Amazônia, no país, no mundo a seu redor. Em seu desabafo, chega a se exaltar:

– Quem vivia em 2 hectares, que era o que eu tinha lá na ilha, pode ficar feliz numa casa de 25m²? Se fizerem uma CPI dentro de Altamira, vai ser pior que a da Petrobras! É impossível numa cidade dessas entrar tanto dinheiro, e a gente estar assim! A gente não tem hospital! O que deram para o pescador? Porrada na cara! Mais nada! Cadê os governantes, gente?! Aqui no bairro é tanto ladrão que um bate no chifre do outro!

Casa onde Antônia Nascimento Neves, na localidade conhecida como Aparecida. A água que aparece na foto é uma mistura do igarapé que subiu de nível com o esgoto vazado
Casa de Antônia Nascimento Neves, na localidade conhecida como Aparecida. A água que aparece na foto é uma mistura do igarapé que subiu de nível com o esgoto vazado

João enxuga o suor e prossegue em seu desabafo:

– O peixe procura o raso. O peixe vai ficar aí nesse lago (da barragem) fazendo o quê, se não tem comida para ele comer? Todo dia, eu trazia 20 kg de peixes. Hoje, você pega o da “boia”, e se dê por satisfeito. Hoje, o pescador sai, fica o dia todo e, se volta com 1 kg, 2 kg, se dê por satisfeito. Eu não podia derrubar um pau da floresta para fazer um barco que o Ibama me multava! Mas eles (Belo Monte) puderam derrubar tudo e queimar tudo. Isso é certo?!

José Carlos Alves Ribeiro, 43 anos, acha que não, não é certo. Pescador que concorria pacificamente com João, Raimunda e tantos outros nas águas fartas do Xingu, ele também teve sua casa e seu trabalho dizimados pelas obras de Belo Monte. A casa na ilha em que vivia está agora coberta pelo rio. Recebeu, por ela, R$ 26 mil de indenização. Foi morar no bairro São Domingos, a uns 8 km do Xingu, numa pequena via de terra, com vala de esgoto correndo, chamada, por zombaria do destino, Travessa Paraíso.

Quando eu ia para a ilha, com cinco dias, já vinha embora com nove, dez caixas de isopor cheias de peixes. Ultimamente, íamos para o rio com três caixas e voltávamos com uma só de pescado. Sem barco e sem peixe, estou vivendo de bicos

José Carlos Alves Ribeiro
Pescador

Divide a casa modesta com a mulher, Elizângela Viana da Silva, de 38 anos, três filhas biológicas, de 20, 18 e 17, uma outra adotada, de 5, e três netos – uma menina de 2, um garoto de 3 e uma bebê de sete meses. Se na nova ordem imposta à natureza pelas obras da usina José Carlos já não tinha muito peixe para pescar, agora nem barco ele tem. Foi furtado. Como passou a morar longe, teve de deixá-lo amarrado numa margem do rio. Quando voltou para resgatá-lo, havia sumido.

José Carlos também tinha uma casinha no continente, às margens do Xingu, como a maioria dos pescadores, que revezavam de endereço conforme as estações do ano – no inverno, período de cheia, iam para as ilhas; no verão, com águas rasas, voltavam para sua casa da cidade. Mas só foi indenizado por uma delas.

– Quando eu ia para a ilha, com cinco dias, já vinha embora com nove, dez caixas de isopor cheias de peixes. Ultimamente, íamos para o rio com três caixas e voltávamos com uma só de pescado. Sem barco e sem peixe, estou vivendo de bicos – lamenta José Carlos. – Preciso da indenização da casinha que tínhamos na beira do rio.

Não é um problema só dele. Muitos de seus pares estão na mesma situação. A Norte Energia fez um cadastro com a promessa de resolver o contencioso. Nem todos os pescadores conseguiram se inscrever. Na terça e na quarta, 15 e 16 de março, uma reunião no Centro de Convenções de Altamira com representantes da usina, do Ministério Público Federal, da Defensoria Pública da União, do Ibama, de ONGs e da Chefia da Casa de Governo (representação da Presidência da República em Altamira, criada para acompanhar as questões da Amazônia) tentou resolver a questão com os ribeirinhos. O clima era de incertezas.

O encontro foi mediado pelo chefe da Casa de Governo, Márcio Hirata, subordinado à Secretaria-Geral da Presidência. Ficou acertado que a Norte Energia deve compensar esses pescadores, e que será cobrada por isso pelo Ministério Público, pelo Ibama e pela Defensoria da União. Quando virá essa compensação, ainda não se sabe.

Casa do casal de pescadores Raimunda Gomes da Silva, 57 anos, e João Pereira da Silva, 64 anos. As redes, sem uso, agora ficam penduradas
Casa do casal de pescadores Raimunda Gomes da Silva, 57 anos, e João Pereira da Silva, 64 anos. As redes, sem uso, agora ficam penduradas

Belo Monte, com sua multidão de despejados, também fez vítimas que sequer têm direito legal a compensações. São histórias mais tristes. Antônia Nascimento Neves, 34 anos, mora num cômodo de cortiço insalubre de madeira, no bairro Brasília, com os filhos Alexandre, 19, Jaqueline, 17, Antônio Vítor, 10, e a nora, Franciane, também de 17. Seu casebre tem o chão alagado pelo chorume de um brejo fétido, resultado da mistura do esgoto a céu aberto da rua com as águas de um igarapé que subiu de nível por causa das mudanças do rio.

Ela não tem trabalho. Vive de doações e do socorro de ONGs como Xingu Vivo Para Sempre. Ou da ajuda da evangélica recém-convertida Larissa Lorrana dos Santos Amorim, adolescente de 15 anos, já mãe de uma menina de 1. Irmã da antiga dona do cortiço, Larissa, compadecida, volta e meia, leva para a amiga mais velha algum mantimento.

As paredes tortas do barraco de Antônia parecem querer desabar a qualquer momento. Antes de Belo Monte, ela administrava os aluguéis dos demais cômodos do cortiço para a irmã de Larissa, que, segundo as duas, depois de ser indenizada pela usina, sumiu no mundo, envolvida com drogas. Todos os demais inquilinos também partiram. Sobraram Antônia, os filhos e a nora, sem ter para onde ir. Semana sim, outra também, surge no terreno encharcado, onde havia outras casas, demolidas pela usina, um trator da Norte Energia para tentar derrubar a frágil construção.

– Botei na Defensoria Pública da União. Para onde eu vou? Antes, eu trabalhava como doméstica. Agora, não posso mais. Se eu sair de casa para trabalhar de manhã, o trator vem de tarde e põe tudo no chão – ela acredita.

Seus filhos mais velhos estão fora da escola. Também estão sem trabalho. Só o caçula e a nora estudam. Sua menina de 17 desenvolveu, nesse ambiente, uma doença reumática nas pernas que lhe causa dores lancinantes e a impede, às vezes, até de andar. Seu garoto de 19 adquiriu uma úlcera e, por isso, não tem conseguido procurar emprego. Na sexta-feira 18, Antônia só tinha em casa um saco de arroz já aberto para dar de comer aos filhos. Mas seu maior desassossego era com o trator da Norte Energia, que, ela sabia, em breve iria voltar.

Marceu Vieira

Marceu Vieira é jornalista, compositor e, quando pode, ficcionista e cronista do cotidiano. Iniciou-se no jornalismo na extinta "Tribuna da Imprensa" e seguiu na profissão, sempre repórter em tempo integral, nas redações de "O Nacional", "Veja", "Jornal do Brasil", "Época" e "O Globo".

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