Vidas secas dos desertos brasileiros

Gilbués, no Piauí, lidera a lista dos núcleos de desertificação no Brasil; fenômeno provocado pela ação humana já atinge 1.488 municípios, mas o problema, talvez irreversível, é ignorado no governo de Jair Bolsonaro

Por Marcio Pimenta | ODS 13ODS 15 • Publicada em 8 de junho de 2020 - 08:24 • Atualizada em 29 de outubro de 2021 - 13:35

Zé Capenga é um dos moradores mais antigos da desértica Gilbués (Foto: Márcio Pimenta)

Zé Capenga é um dos moradores mais antigos da desértica Gilbués (Foto: Márcio Pimenta)

Gilbués, no Piauí, lidera a lista dos núcleos de desertificação no Brasil; fenômeno provocado pela ação humana já atinge 1.488 municípios, mas o problema, talvez irreversível, é ignorado no governo de Jair Bolsonaro

Por Marcio Pimenta | ODS 13ODS 15 • Publicada em 8 de junho de 2020 - 08:24 • Atualizada em 29 de outubro de 2021 - 13:35

(Texto e reportagem de Liana Melo) Zé Capenga, como José Rodrigues dos Santos é mais conhecido pelos vizinhos, é um dos moradores mais antigos do sertão de Gilbués, no sudoeste do Piauí. A cidade, com pouco mais de 10 mil habitantes e distante 850 quilômetros de Teresina, é uma das áreas mais severas dos seis núcleos de desertificação no Brasil, que incluí ainda Irauçuba (Ceará), Seridó (Rio Grande do Norte), Cabrobó (Pernambuco), Cariris Velho (Paraíba) e Sertão do São Francisco (Bahia). Seu casebre fica em meio a uma terra devastada e que está, praticamente, imprestável para a agricultura — o que já era seco, ficou ainda mais esturricado depois da estiagem implacável que se estendeu pelos últimos cinco anos no Nordeste brasileiro. “O arroz, que era comum na região, deixou de ser produzido”, lamenta, contando que o inverno tem ficado cada vez mais curto. Sem chuva, os moradores da vizinhança só colhem milho e mandioca, culturas mais resistentes à seca. Aos 72 anos, dos quais os últimos 50 anos morando na região, Zé Capenga é testemunha ocular do processo de degradação ambiental sem precedentes que transformou o sertão de Gilbués num deserto em pleno Cerrado piauiense.

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Gilbués é um dos núcleos de desertificação no país. Foto de Márcio Pimenta
Além de um lugar inóspito, viver na área rural de Gilbués é conviver cotidianamente com a solidão e o silêncio (Foto: Márcio Pimenta)

Sem contar com a ajuda dos filhos e dos netos, que partiram em retirada fugindo do inevitável ciclo da pobreza, que se retroalimenta da seca na região, Zé Capenga é um dos 32 milhões de brasileiros que resistem. Ele sobrevive num lugar inóspito, onde as áreas com grandes manchas desnudas e presença ou não de cobertura vegetal rasteira são a regra e não a exceção. Ele mora com a mulher e uma sobrinha – os  vizinhos ajudam, porque no deserto é impossível viver isolado ou sozinho.

Os sinais claros de erosão do solo em Gilbués e nos outros núcleos de desertificação levaram o pesquisador Aldrin Pérez-Marin, do Instituto Nacional do Semiárido (Insa), a afirmar que 85% do semiárido brasileiro está ficando desertificado e 9% já está totalmente desertificado, num processo praticamente irreversível. A desertificação atinge 1.488 municípios brasileiros e está espalhada por nove estados do semiárido nordestino, além do norte de Minas Gerais e Espírito Santo. Pouco menos de dois anos depois da última delimitação do semiárido brasileiro — ocorrida em novembro de 2017, a pressão continua para o mapa do semiárido ser novamente reconfigurado, com o acréscimo de mais municípios do norte capixaba.

Zé Capenga e seu inseparável instrumento de trabalho, o facão. Ele vive da pequena roça, que só dá milho e mandioca, e de 30 cabeças de gado. Foto de Márcio Pimenta
Zé Capenga e seu inseparável instrumento de trabalho, o facão. Ele vive da pequena roça, que só dá milho e mandioca, e de 30 cabeças de gado (Foto: Márcio Pimenta)

Ainda que o Brasil seja um dos 192 países signatários da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação (UNCCD, na sigla em inglês), o tema perdeu força no Brasil de Jair Bolsonaro. Ninguém do governo fala sobre o assunto, como se problema tivesse sido resolvido. Estamos chegando ao fim da Década para os Desertos e a Luta contra a Desertificação (2010-2020), decretada pelas Organizações das Nações Unidas (ONU), e o que era seco ficou ainda mais seco. A desertificação de Gilbués, por exemplo, é parte de um problema cuja dimensão é mundial. As áreas mais secas do mundo vêm aumentando, levando a uma perda de 24 bilhões de toneladas de terra fértil no planeta todos os anos, o que provoca, pelos cálculos  da ONU, uma redução do Produto Interno Bruto (PIB) global de até 8% ao ano. Segundo dados do Novo Atlas Mundial da Desertificação, cerca de 75% da área terrestre do planeta já estão degradados e mais de 90% podem ser afetados até 2050. Globalmente, uma área total de metade do tamanho da União Europeia, ou seja, 4,18 milhões de km2, é degradada anualmente, ficando imprestável para a agricultura. A África, onde dois terços das terras estão secos, e a Ásia são as regiões mais afetadas no mundo, mas o Brasil também figura no mapa abaixo.

Arte de Fernando Alvarus

A desertificação é um fenômeno antrópico, causado pelo ser humano e pelo seu modelo de desenvolvimento. Portanto, a desertificação é um fenômeno provocado pelo homem

Pérez-Marin explica que “a desertificação é um fenômeno antrópico, causado pelo ser humano e pelo seu modelo de desenvolvimento. Portanto, a desertificação é um fenômeno provocado pelo homem”. Pela definição clássica da ONU, o fenômeno só ocorre em regiões áridas, semiáridas e subúmidas secas. Suas causas são variadas, mas em Gilbués a mineração indiscriminada acelerou o processo de erosão, associada ao desmatamento, às queimadas — 30% da matriz energética do Nordeste é alimentada por lenha — e ao pastoreio de caprinos e ovinos acima da capacidade de suporte do ambiente.

Figurando entre os municípios de baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado, Gilbués carrega até hoje a fama de guardar uma reserva de diamantes no seu subsolo. A extração desordenada teve início por volta dos anos 1940, e, desde então, o processo de degradação do solo vem acelerando, tendo chegado a um quadro devastador, com erosão em sulco.

Gilbués é um dos núcleos de desertificação no país. Foto de Márcio Pimenta
Aos 72 anos, Agripino Borges ainda garimpa o Rio Sossego diariamente (Foto: Márcio Pimenta)

Agripino Borges, por exemplo, criou os filhos, comprou um terreno e construiu sua casa com o dinheiro da venda das pedras de diamante que garimpou no Rio Sossego. Aos 72 anos, ele ainda minera, mas conta com a ajuda de três garimpeiros no dia a dia do trabalho, e recebe 25% do que o trio garimpa. Sem infraestrutura, os quatro procuram diamantes com técnicas artesanais, usando panelas de metal para “batear” o minério. Em casa, Borges guarda, numa bolsa de couro, o equivalente a R$ 30 mil em pedras de diamante.

A riqueza extraída do subsolo de Gilbués não mudou o perfil socioeconômico do município: 64,1% da população vivem com até um salário mínimo e 1,6% dos moradores não têm nenhuma renda, segundo o Censo Demográfico do IBGE, de 2000. A elite local, aqueles que ganham mais de 20 salários mínimos, representa 0,7%. Chega a 22,5% o percentual da população sem instrução nenhuma ou com menos de um ano de estudo

Gilbués é um dos núcleos de desertificação no país. Foto de Márcio Pimenta
Fazenda solar em São Gonçalo do Gurgueia: capacidade instaladas de 475 megawatts no deserto do Cerrado (Foto: Márcio Pimenta)

As áreas degradas no Piauí atingem 21,64% do estado. Além de Gilbués, um total de 15 municípios estão nesta situação, o que soma 7,8 mil quilômetros quadrados, ou seja, uma área cinco vezes maior que a cidade de São Paulo. Na lista está a cidade de São Gonçalo do Gurgueia, distante cerca de 25 quilômetros de Gilbués. Lá, está em fase final de instalação um parque solar de proporções gigantescas. Considerado o maior parque solar da América do Sul, o projeto da Enel Group consumiu investimentos de R$ 1,4 bilhão e terá uma capacidade instalada de 475 megawatts (MW). Assim com o diamante, que atingiu seu apogeu nas décadas de 1950 e 1960, a geração de energia solar na região vai aumentar ainda mais o fosso entre o topo e a base da pirâmide social em Gilbués. E Zé Capenga vai continuar vivendo, de sol a sol, sonhando com gotas de chuva para irrigar sua horta caseira e alimentar suas 30 cabeças de gado.

A série de reportagens “Desertos brasileiros” foi uma das vencedoras da 1ª Bolsa #Colabora de Reportagem.

Marcio Pimenta

Fotógrafo especialista em documentários, viagens e culturas. Abandonou o doutorado em Relações Internacionais pela Universidad de Santiago do Chile para se dedicar a contar histórias. Atualmente reside em Curitiba (PR). Publica reportagens independentes sobre desastres ambientais, crise hídrica, imigração, trabalho escravo etc. no Guardian (Inglaterra), na National Geographic (Brasil), no El País (Brasil), no Roads and Kingdoms (EUA), no GlobalPost (EUA), na Gazeta do Povo (Paraná) e no #Colabora.

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Um comentário em “Vidas secas dos desertos brasileiros

  1. Ananias Pinto Maia disse:

    Tema triste, porém, importante ser divulgado.
    A irracionalidade dos “racionais” seres humanos,
    tem se fortalecido neste governo insano, o qual tem provocado enorme retrocesso na luta em favor do meio ambiente.
    Contudo, é preciso lutar.

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