Detalhada nota técnica, com mais de 100 páginas, do Observatório do Clima, alerta para as graves ameaças ambientais, climáticas e sociais embutidas no Projeto de Lei 2.159, sobre a Lei Geral de Licenciamento Ambiental, em tramitação no Senado. Está marcada para quarta-feira, 21/05, uma sessão conjunta das comissões de Meio Ambiente (CMA) e de Agricultura (CRA) para discutir os pareceres elaborados pelos relatores, primeiro passo para o texto ser aprovado na Casa. “Essa proposta significará o maior retrocesso na legislação ambiental dos últimos 40 anos, desde a Constituição de 1988. O PL realmente implode com o licenciamento ambiental no Brasil”, afirmou a coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo, na apresentação da nota técnica.
Leu essa? Ambientalistas repudiam aprovação de projeto que destroça licenciamento
A nota analisa parágrafo por parágrafo o texto aprovado na Câmara em 2021 e o que está para ser aprovado no Senado a partir da semana que vem. As principais críticas são a isenção de licenciamento para uma série de empreendimentos com impactos ambientais evidentes e a possibilidade de uma auto licença – Licença por Adesão e Compromisso (LAC) –, sem a análise de órgãos ambientais. “Ao priorizar de forma irresponsável a isenção de licenças e o autolicenciamento, a proposta tem potencial de agravar a degradação ambiental, representando grave ameaça a direitos humanos fundamentais. A flexibilização dos estudos, das condicionantes ambientais e do monitoramento pode resultar em desastres e riscos à saúde e à vida da população, com a contaminação do ar, dos solos e dos recursos hídricos, além do deslocamento de comunidades e da desestruturação de meios de vida e relações culturais. Ela também omite a crise climática: não há sequer uma menção em seu conteúdo ao clima. O licenciamento simplesmente irá ignorar esse tema”, aponta o documento.
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Veja o que já enviamosÉ um ataque que afronta dispositivos adicionais, de precaução e prevenção com o meio ambiente, e também os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, como as metas da nossa NDC e o desmatamento zero. A proposta no Senado simplesmente ignora a questão climática: não é possível nos dias de hoje falar de meio ambiente sem falar de clima
A nota técnica de 114 páginas também compara o texto aprovado na Câmara com as alterações propostas no Senado e traz comentários de especialistas do Observatório do Clima, iniciativa reunindo as principais organizações que atuam nas agendas de meio ambiente e clima no país. “Na verdade, o responsável só faz um documento descrevendo o empreendimento. E não apresenta alternativas técnicas e locacionais, que estão na essência da avaliação de impactos ambientais, apenas descreve o que quer fazer”, explicou a urbanista e cientista Suely Araújo, que, antes de atuar no Observatório do Clima, foi presidente do Ibama entre 2016 e 2018.
De acordo com a avaliação do OC, o projeto “não apenas ameaça intensificar a poluição, o desmatamento, as emissões de gases de efeito estufa e a perda de biodiversidade, mas também as desigualdades sociais”. Na apresentação da nota técnica, Suely Araújo também acrescentou que os processos de licenciamento, na sua grande maioria, são atualmente licenciados por estados e municípios e estariam, pela nova proposta, enquadrado de médio e pequeno impacto ambiental. “Praticamente 90% dos processos de licenciamento no Brasil vão passar a ser um apertar de botão e a licença está impressa. É isso que significa essa Licença por Adesão e Compromisso. Os empreendimentos que têm EIA [Estudo de Impacto Ambiental], licenciados pelo Ibama, aqueles empreendimentos gigantes, esses são os únicos que eles estão excluindo da LAC”, explicou.
Isso, certamente, vai acelerar e muito o desmatamento da Mata Atlântica, que já é impactada por várias estruturas urbanas. Teremos, sem qualquer controle ambiental, avanços sobre as áreas de florestas, de mangue, de matas ciliares”
Diretor adjunto do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), o cientista social Marcos Woortmann, que também participou da apresentação da nota técnica, enfatizou que as barragens de Mariana e Brumadinho, que romperam em Minas Gerais (MG), como exemplos de empreendimentos de médio porte. “Onde é o limiar entre um projeto de impacto e de grande impacto? Devemos lembrar o que aconteceu Maceió, onde há bairros inteiros interditados por uma das maiores tragédias ambientais urbanas do mundo, causadas pelo rompimento das minas da Braskem. E foi um projeto licenciado em âmbito estadual, sem a mesma análise de um grande empreendimento”, destacou Woortman.
O diretor do IDS também ressaltou que essa ameaça ao licenciamento ambiental está sendo feito no ano da COP30 no Brasil, no momento em que o aquecimento global está rompendo os limites estabelecidos pelo Acordo de Paris. “É um ataque que afronta dispositivos adicionais, de precaução e prevenção com o meio ambiente, e também os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, como as metas da nossa NDC e o desmatamento zero. A proposta no Senado simplesmente ignora a questão climática: não é possível nos dias de hoje falar de meio ambiente sem falar de clima”, afirmou.
Woortmann também enfatizou que a aprovação da nova lei terá efeito contrário ao imaginado pelos seus incentivadores de acelerar processos de licenciamento. “O projeto está tão está repleto de inconstitucionalidades, que vai criar um cenário de insegurança jurídica e gerar uma enxurrada de judicializações”, frisou. Essa probabilidade da multiplicação de ações judiciais também está citada na nota técnica que aponta “a fragmentação normativa” entre estados e municípios que seria estabelecida pela proposta em tramitação. “Em vez de estabelecer regras claras, juridicamente coesas e efetivas, como se espera de uma Lei Geral, o projeto abre caminho para o caos regulatório e o aumento da degradação ambiental”, diz a nota técnica.
Isenção de licenciamento para obras e agro
Diretora de políticas públicas da SOS Mata Atlântica, Malu Ribeiro destacou a isenção de licenciamento e controle ambiental para empreendimentos com alto potencial de causar poluição como obras e serviços para melhorar ou aperfeiçoar infraestruturas já existentes. “Isso, certamente, vai acelerar e muito o desmatamento da Mata Atlântica, que já é impactada por várias estruturas urbanas. Teremos, sem qualquer controle ambiental, avanços sobre as áreas de florestas, de mangue, de matas ciliares”, apontou na apresentação aos jornalistas da nota técnica do Observatório do Clima. “Essa isenção do licenciamento ambiental também chega a projetos de saneamento básico como a construção de estações de tratamento de esgoto, o que é uma ameaça à saúde pública”.
Malu Ribeiro também criticou a desvinculação do licenciamento da outorga de uso da água e do uso do solo. “É justamente a outorga que integra o licenciamento ambiental à gestão de recursos hídricos. A fragmentação do licenciamento, de forma isolada das outorgas e do uso do solo, potencializará conflitos e tende a agravar impactos relacionados a eventos climáticos no que se refere à água”, destacou a diretora do SOS Mata Atlântica. “O Brasil precisa de uma avaliação ambiental estratégica, ligada a análise do uso do solo, o que já existe em todos os país do G7, que reúne as principais e mais avançadas economias do mundo”, acrescentou.
É uma medida que favorece o agronegócio mais predatório, enfraquece o papel do Estado e abre caminho para conflitos, danos ambientais e insegurança jurídica para os próprios produtores
Marcos Woortmann acrescentou ainda que a isenção para infraestruturas existentes permitiria, por exemplo, o asfaltamento total da BR-319 que corta trecho da Floresta Amazônica. “Está cientificamente provado o impacto ambiental indireto que ocorreria numa obra como essa que provocaria o desmatamento de uma imensidão de florestas nas áreas em torno. A Amazônia está perto do seu ponto de não retorno como já alertados por cientistas da magnitude de Carlos Nobre e Paulo Artaxo. Este é o tamanho da ameaça da proposta: liberar sem licenciamento ambiental uma obra que pode impactar no savanização de parte da Amazônia”, alertou o diretor do IDS. “Estamos falando de um projeto que terá impactos ambientais nocivos para além do Brasil, para toda a América do Sul”.
Suely Araújo, do Observatório do Clima, criticou ainda o projeto de lei por reduzir a competência e as atribuições de autoridades e instituições públicas no processo de licenciamento, a exemplo do ICMBio, da Funai e do Ipham, o que deve afetar comunidades quilombolas e indígenas. A nota técnica também destaca que “o PL põe em risco direitos de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outras comunidades tradicionais ao restringir a participação das autoridades que respondem pela proteção dos direitos dessas populações apenas aos casos em que os seus territórios estiverem formalmente homologados ou titulados”.
A nota destaca a dispensa de licenciamento ambiental para várias atividades agropecuárias. Passa a ser regra para a grande maioria dos casos o simples preenchimento de um formulário autodeclaratório. O Senado fez ajustes no texto da Câmara, incluindo a referência à fiscalização e a punições em caso de irregularidades, o que é apontado como insuficiente. “É uma medida que favorece o agronegócio mais predatório, enfraquece o papel do Estado e abre caminho para conflitos, danos ambientais e insegurança jurídica para os próprios produtores”, destaca o documento.
O primeiro texto com o objetivo de estabelecer normas nacionais para o licenciamento ambiental foi apresentado na Câmara dos Deputados em 1988, tramitou por anos e acabou arquivado. Em 2004, foi iniciado o processo da Lei Geral (PL 3.729), então apoiado por ambientalistas. Ao longo dos anos, contudo, a Câmara consolidou um texto que prioriza as isenções de licença e o autolicenciamento, que ignora direitos socioambientais consagrados na Constituição e que levará à insegurança jurídica e a muitos conflitos em sua aplicação. Os pareceres do Senado, elaborados de forma conjunta pelos dois relatores, estão longe de resolver os graves problemas do texto aprovado pela Câmara. “Eles mantiveram os principais pontos negativos da Câmara e até, em alguns pontos, conseguiram piorar o projeto, acrescentando dispositivos inócuos e vagos”, alertou Suely Araújo.
Em função da abrangência e da gravidade de suas consequências, o PL 2.159 é considerado, pelos ambientalistas, o mais nocivo do chamado “Pacote da Destruição”, conjunto de propostas que tramitam no Congresso Nacional e que, se aprovadas, causarão dano irreversível aos ecossistemas brasileiros, aos povos tradicionais, ao clima global e à segurança de cada cidadão. O projeto recebeu as alcunhas de “mãe de todas as boiadas” e “PL da Devastação”. Ao ser analisado na Câmara, foi alvo de críticas em nota contundente assinada por nove ex-ministros do Meio Ambiente. O atual texto do Senado, além dos ambientalistas, também foi reprovado pelo Ministério Público Federal por suas inconsistências e inconstitucionalidades e alertou, em nota pública, que a proposta “fragiliza o procedimento de licenciamento ambiental e torna ineficaz o controle do estado sobre empreendimentos que impactam o meio ambiente e os direitos de povos e comunidades tradicionais”.