Mar já engoliu casas de 15 quarteirões e vai obrigando antigos moradores de balneário a mudarem de casa, de cidade e de profissão
Por
Carolina Gomes
| ODS 11, ODS 13
• Publicada em 2 de janeiro de 2020 - 08:28
• Atualizada em 23 de junho de 2023 - 14:43
Imóvel destruído pelo mar em Atafona: mais de 300 casas engolidas em 15 quarteirões criaram centenas de refugiados ambientais em balneário no litoral norte do Estado do Rio (Foto: Carolina Gomes)
Imóvel destruído pelo mar em Atafona: mais de 300 casas engolidas em 15 quarteirões criaram centenas de refugiados ambientais em balneário no litoral norte do Estado do Rio (Foto: Carolina Gomes)
Mar já engoliu casas de 15 quarteirões e vai obrigando antigos moradores de balneário a mudarem de casa, de cidade e de profissão
Por
Carolina Gomes
| ODS 11, ODS 13
• Publicada em 2 de janeiro de 2020 - 08:28
• Atualizada em 23 de junho de 2023 - 14:43
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Ronaldo Cravo era conhecido no Balneário de Atafona, em São João da Barra, a cerca de 350 quilômetros ao norte da cidade do Rio de Janeiro, pelo seu famoso pirão de peixe e pelas frases otimistas nas paredes de seu bar, o Não Me Viu, tomado três vezes pelo avanço do mar. Em meados dos anos 1990, o comerciante e cozinheiro, nascido e criado da Praia de Atafona, já havia perdido também duas casas no balneário: foi dormir nas ruas e virou alcoólatra.
“Vi essa praia crescer e estou vendo o mar comer de volta. Eu tinha uma palafita dentro do manguezal, e, na frente dele, havia cinco ruas de casas com cooperativas, frigoríficos, postos… Tinha vida. De uns anos para cá, tudo foi levado pelo mar e ninguém toma providência”, disse Ronaldo ao dar entrevista, em outubro, sobre sua vida de refugiado ambiental. Havia se recuperado com a ajuda dos filhos e estava há 18 anos sem consumir bebida alcoólica. Morava numa parte do imóvel onde mantinha o bar na mesma Avenida Atlântica que margeia a praia, mas via o mar se aproximando de novo.
[g1_quote author_name=”Ronaldo Cravo” author_description=”Comerciante e cozinheiro, um mês antes de morrer” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]
Vi essa praia crescer e estou vendo o mar comer de volta. Eu tinha uma palafita dentro do manguezal, e, na frente dele, havia cinco ruas de casas com cooperativas, frigoríficos, postos… Tinha vida. De uns anos para cá, tudo foi levado pelo mar e ninguém toma providência
[/g1_quote]
Cravo morreu de infarto, aos 63 anos, sem ver a solução para o avanço do mar, cada vez mais feroz, mudando a geografia do Pontal de Atafona e bloqueando a foz do Rio Paraíba do Sul. “A água do poço, de tão salgada, não serve nem para dar banho nos cachorros, porque a veia do mar já está aqui por baixo”, lamentava o cozinheiro, enquanto recordava vizinhos e amigos, que trocaram de cidade.
Ronaldo Cravo, em entrevista pouco antes de sua morte: duas casas e o bar perdidos para o mar em Atafona (Foto: Carolina Gomes)
A vida de Ronaldo foi uma das centenas afetadas pelo avanço do mar. Moradores da região ainda são obrigados a deixar suas casas, e pescadores estão com dificuldades para se manter em atividade em função da erosão costeira, que ocorre desde a década de 1970 e vem se agravando, nos últimos anos, com as mudanças climáticas. São os refugiados ambientais do Balneário de Atafona, onde mais de 300 casas, distribuídas por 15 quarteirões, já foram levadas pelo mar.
[g1_quote author_name=”Eduardo Bulhões” author_description=”Doutor em Geologia e Geofísica Marinha pela UFF” author_description_format=”%link%” align=”right” size=”s” style=”simple” template=”01″]
Todas as praias se equilibram com areias que chegam e que saem. Em Atafona, esse equilíbrio foi quebrado, então entra menos areia do que sai e, por isso, a praia entra em um processo de erosão extrema
[/g1_quote]
De acordo com a ONG Oxfam, os desastres climáticos tornaram-se a principal causa da deslocação de pessoas em todo o mundo na última década e forçaram mais de 20 milhões por ano a deixarem as suas casas. Em estudo apresentado no dia da abertura da Cúpula do Clima da ONU em Madri, a organização aponta que atualmente é “três vezes mais provável que alguém seja forçado a deixar a sua casa por ciclones, inundações ou incêndios florestais do que por conflitos”.
Ter a casa inundada não é novidade para Mary Lúcia Tavares, que mora à beira da praia em Atafona. Nas últimas semanas, o mar avançou mais e invadiu novamente sua residência. Ela precisou esperar a água escoar e as escavadeiras retirarem areia dos portões; a Defesa Civil vistoriou o lugar e liberou a permanência dos moradores, por ora. A dona de casa já viu muitos vizinhos serem levados para residências sociais pela prefeitura, após o mar abalar a estrutura das casas.
Como todos os moradores mais antigos, a dona de casa lembra dos imóveis que foram sendo levados pelo mar: o farol da Marinha, o prédio da Colônia de Pesca, bares, pequenas lojas, a Capela de Nossa Senhora dos Navegantes, o posto policial, um posto de combustível para os barcos. Em 2008, a erosão costeira provocou a queda do único prédio de Atafona, com 48 apartamentos.
O mar já visitou a casa de Mary Lúcia onde os móveis estão sobre caixas plásticas: “Nesses dias, ninguém dorme, fica todo mundo andando pela rua. O mar é engraçado, tem hora que ele tá lá longe, daqui a pouco ele tá jogando aqui pertinho” (Foto: Carolina Gomes)
Mary Lúcia sabe que sua casa, em que os móveis estão sobre caixas plásticas, é uma das próximas. Ela sofre de ansiedade e dorme com a ajuda de remédios, já que a preocupação não lhe permite descansar, atenta para acordar os vizinhos quando a água invadir as casas novamente. “Nesses dias, ninguém dorme, fica todo mundo andando pela rua. O mar é engraçado, tem hora que ele tá lá longe, daqui a pouco ele tá jogando aqui pertinho”, conta.
Doutor em Geologia e Geofísica Marinha pela UFF, o professor Eduardo Bulhões explica que o problema de Atafona acontece por causa do déficit de areia na praia. “Todas as praias se equilibram com areias que chegam e que saem. Em Atafona, esse equilíbrio foi quebrado, então entra menos areia do que sai e, por isso, a praia entra em um processo de erosão extrema”, explica. Esse desequilíbrio foi quebrado pelo processo de urbanização e de ocupação do litoral e das margens do Rio Paraíba do Sul, que deságua no mar em Atafona.
O geólogo e geofísico acrescenta que Atafona sofre déficit de sedimento, pois o Paraíba do Sul não consegue repor a quantidade de areia necessária para manter o equilíbrio. “O rio não consegue fazer isso desde a década de 1980, sobretudo após construções de barragens ao longo do seu leito. Isso fez com que ele não consiga empurrar a areia para praia, ao passo que o mar continua removendo essa areia”, esclarece Eduardo Bulhões.
A renda caiu porque não consigo mais sair com tanta frequência por causa do fundo do rio. Não temos mais acesso ao cais para carregar e descarregar a mercadoria. Às vezes fico até devendo; as contas do mês não fecham
[/g1_quote]
Foz fechada
O desequilíbrio ambiental teve novo ápice no final de outubro quando a foz do Rio Paraíba do Sul, em Atafona, foi fechada pela areia. A água do rio só está desaguando no Oceano Atlântico no vizinho município de São Francisco de Itabapoana, através de um braço menor do curso d’água. O desequilíbrio não é apenas ambiental, mas também econômico, já que hoje os pescadores – a maioria da população de Atafona vive da pesca – precisam seguir até São Francisco do Itabapoana para ir para alto-mar. Muitos voltam da pesca sem esperança.
À beira do rio, no Pontal de Atafona, ficam frigoríficos de peixes onde as embarcações atracam, descarregam, enchem o tanque de gasolina e o depósito de gelo, antes de os pescadores saírem de novo para o alto-mar e voltarem até uma semana depois. Nos últimos anos, apenas barcos com menos de 10 toneladas conseguiam atravessar a foz do rio, já que a areia estava assoreada, o que já fazia com que alguns barcos atolassem na barra.
O pescador Nilson Ferreira e o drama de quem está sofrendo com a mudança climática: fechamento da foz do Rio Paraíba do Sul dificulta ainda mais a vida de quem vive da pesca (Foto: Carolina Gomes)
Nilson Ferreira, de 44 anos, pesca desde os 8 anos de idade. Seu pai o incentivou a ser pescador, mas ele pede para que seus filhos não sigam na profissão. “A renda caiu porque não consigo mais sair com tanta frequência por causa do fundo do rio. Tem dia que saio às quatro da manhã e volto sem nada. Não temos mais acesso ao cais para carregar e descarregar a mercadoria. Às vezes fico até devendo, as contas do mês não fecham”, lamenta Nilson, que pensa em mudar de ramo ou se mudar de Atafona, como fizeram muitos outros pescadores do pontal.
O Rio Paraíba do Sul sofre com a redução de sua vazão, o assoreamento, o desmatamento nas margens e um processo de salinização na foz, que causa prejuízo às produções pesqueiras, além de extinguir manguezais. Os ambientalistas alertam que, se, de um lado, o Paraíba do Sul perde vazão pela ação humana, do outro, o aumento do nível dos oceanos, provocado pelo aquecimento global e as mudanças climáticas, faz o mar subir de forma mais intensa e violenta em Atafona.
O rio secou, está todo mundo revoltado e com medo que seque tudo, e os barcos não consigam sair mais
[/g1_quote]
Pesquisadores observam a região há décadas, mas não há consenso sobre a melhor forma de resolver o problema. Em 2015, estudo realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Hidroviárias apontava para necessidade de construção de nove espigões costeiros – estruturas para conter o mar – com comprimento de 240 metros cada e espaçados entre si para compartimentar a praia e evitar a perda de areia, além de um aterro de 100 metros de largura, a transferência de um volume de areia de 2.650.000 metros cúbicos e de um volume de pedra de 262.650 metros cúbicos. Esse projeto estava orçado, na ocasião em cerca de R$ 100 milhões.
Em 2018, o próprio professor Eduardo Bulhões apresentou, a pedido da Defensoria Pública de Barra de São João, estudo e proposta para enfrentar a erosão costeira em Atafona, que parte da dragagem e do bombeamento hidráulico de areias compatíveis de dentro da calha fluvial do Paraíba do Sul para o pontal de Atafona. Esta “transposição artificial de areias” – como é chamada no estudo – seria complementada pelo espalhamento deste material por uma faixa de 1,5 km com a formação de dunas artificiais. O custo deste projeto ficaria entre R$ 20 milhões e R$ 30 milhões.
Restos de casas destruídas pelo mar em Atafona: combinação de erosão costeira e mudanças climáticas (Foto: Oscar Valporto)
Nenhum dos projetos avançou. Em março de 2019, a maré subiu quase dois metros e foram necessários mobilizar caminhões de areia para formar uma barragem e evitar a chegada da água em pontos mais vulneráveis da praia. Em julho, uma nova subida brusca da maré alagou mais de uma dezena de casas. No fim de outubro, parte do asfalto desmoronou na esquina da Avenida Atlântica com a Rua Elias Beirute por conta da erosão costeira.
Os moradores temem que Atafona se transforme numa nova Ilha da Convivência. O lugar fica a 850 metros do pontal e era residência de pescadores. Já chegou a reunir 400 famílias, mesmo com a água potável chegando em barcos e sem luz elétrica. Hoje, o panorama é diferente. Quem visita o local não vê nada além de uma faixa de areia. Até o mês passado, chegar até a Ilha só era possível de barco, entretanto, agora que foz do Rio Paraíba do Sul secou, o trajeto pode ser feito a pé. “O rio secou, está todo mundo revoltado e com medo que seque tudo, e os barcos não consigam sair mais”, conta Mary Lúcia
Campista, está no Rio desde 2016. Apaixonada por música, cinema e literatura. É estudante de jornalismo na PUC-Rio e acredita que o jornalismo pode fazer a diferença no mundo
Newsletter do #Colabora
A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.
2 comentários “Os refugiados ambientais de Atafona”
carlos marcos disse:
Bela matéria, sou morador desse paraíso e sinto por tudo que está acontecendo com nossa bela atafona, parabéns.
Política de cookiesUtilizamos cookies para garantir uma melhor experiência no nosso site e coletamos alguns dados de navegação enquanto você lê nossas páginas. Ao aceitar, você confirma que está ciente. Para saber mais, acesse a nossa Política de Privacidade.
Este site utiliza cookies para melhorar sua experiência enquanto você navega pelo site. Destes, os cookies categorizados como necessários são armazenados no seu navegador, pois são essenciais para o funcionamento das funcionalidades básicas do site. Também utilizamos cookies de terceiros que nos ajudam a analisar e compreender como você utiliza este site. Estes cookies serão armazenados no seu navegador apenas com o seu consentimento. Você também tem a opção de desativar esses cookies. Mas a desativação de alguns desses cookies pode afetar sua experiência de navegação.
Necessary cookies are absolutely essential for the website to function properly. These cookies ensure basic functionalities and security features of the website, anonymously.
Cookie
Duração
Descrição
cookielawinfo-checkbox-advertisement
1 year
Set by the GDPR Cookie Consent plugin, this cookie records the user consent for the cookies in the "Advertisement" category.
cookielawinfo-checkbox-analytics
11 months
This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Analytics".
cookielawinfo-checkbox-functional
11 months
The cookie is set by GDPR cookie consent to record the user consent for the cookies in the category "Functional".
cookielawinfo-checkbox-necessary
11 months
This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookies is used to store the user consent for the cookies in the category "Necessary".
cookielawinfo-checkbox-others
11 months
This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Other.
cookielawinfo-checkbox-performance
11 months
This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Performance".
CookieLawInfoConsent
1 year
CookieYes sets this cookie to record the default button state of the corresponding category and the status of CCPA. It works only in coordination with the primary cookie.
viewed_cookie_policy
11 months
The cookie is set by the GDPR Cookie Consent plugin and is used to store whether or not user has consented to the use of cookies. It does not store any personal data.
wpEmojiSettingsSupports
session
WordPress sets this cookie when a user interacts with emojis on a WordPress site. It helps determine if the user's browser can display emojis properly.
__cf_bm
1 hour
This cookie, set by Cloudflare, is used to support Cloudflare Bot Management.
Functional cookies help to perform certain functionalities like sharing the content of the website on social media platforms, collect feedbacks, and other third-party features.
Cookie
Duração
Descrição
S
1 hour
Used by Yahoo to provide ads, content or analytics.
Performance cookies are used to understand and analyze the key performance indexes of the website which helps in delivering a better user experience for the visitors.
Analytical cookies are used to understand how visitors interact with the website. These cookies help provide information on metrics the number of visitors, bounce rate, traffic source, etc.
Cookie
Duração
Descrição
_fbp
3 months
O Facebook define este cookie para exibir anúncios quando estiver no Facebook ou em uma plataforma digital alimentada por publicidade do Facebook após visitar o site.
_ga
1 year 1 month 4 days
O Google Analytics define este cookie para calcular dados de visitantes, sessões e campanhas e rastrear o uso do site para o relatório analítico do site. O cookie armazena informações anonimamente e atribui um número gerado aleatoriamente para reconhecer visitantes únicos.
_ga_*
1 year 1 month 4 days
O Google Analytics define este cookie para armazenar e contar visualizações de páginas.
Advertisement cookies are used to provide visitors with relevant ads and marketing campaigns. These cookies track visitors across websites and collect information to provide customized ads.
Cookie
Duração
Descrição
NID
6 months
Google sets the cookie for advertising purposes; to limit the number of times the user sees an ad, to unwanted mute ads, and to measure the effectiveness of ads.
test_cookie
15 minutes
doubleclick.net sets this cookie to determine if the user's browser supports cookies.
VISITOR_INFO1_LIVE
6 months
YouTube sets this cookie to measure bandwidth, determining whether the user gets the new or old player interface.
VISITOR_PRIVACY_METADATA
6 months
YouTube sets this cookie to store the user's cookie consent state for the current domain.
YSC
session
Youtube sets this cookie to track the views of embedded videos on Youtube pages.
yt-remote-connected-devices
never
YouTube sets this cookie to store the user's video preferences using embedded YouTube videos.
yt-remote-device-id
never
YouTube sets this cookie to store the user's video preferences using embedded YouTube videos.
yt.innertube::nextId
never
YouTube sets this cookie to register a unique ID to store data on what videos from YouTube the user has seen.
yt.innertube::requests
never
YouTube sets this cookie to register a unique ID to store data on what videos from YouTube the user has seen.
Other uncategorized cookies are those that are being analyzed and have not been classified into a category as yet.
Cookie
Duração
Descrição
4836_lv
1 month
Description is currently not available.
4836_s
session
Description is currently not available.
4836_u
6 months
Description is currently not available.
4836_ut
1 month
Description is currently not available.
COMPASS
1 hour
Description is currently not available.
compass_uid
6 months 1 day
Description is currently not available.
___nrbi
6 months 1 day
Description is currently not available.
___nrbic
session
Description is currently not available.
×
Ei, antes de fechar…
Pense na importância de manter-se informado(a). Quer ter acesso, por e-mail, ao resumo das nossas notícias, textos dos colunistas e reportagens especiais? Receba a nossa newsletter. É de graça :)
Bela matéria, sou morador desse paraíso e sinto por tudo que está acontecendo com nossa bela atafona, parabéns.
Pingback: Desastres fazem número de refugiados ambientais alcançar 7 milhões – https://bemblogado.com.br/site/