ODS 1
Lula na ONU critica negacionismo e cobra ação contra crise climática
Combate à fome, democracia, as guerras na Ucrânia e no Oriente Média e a reforma da entidade também foram abordados na abertura da Assembleia-Geral
No seu discurso na abertura do debate de chefes de Estado e de governo da 79ª edição da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva cobrou o cumprimento dos acordos climáticos e a ajuda aos países mais pobres para enfrentar a crise. “O planeta não está mais esperando a demanda da próxima geração e está farto de acordos climáticos não cumpridos. Está cansado das metas negligenciadas de redução de emissões de carbono e da ajuda financeira aos países pobres que não chega. O negacionismo sucumbe às evidências do aquecimento global”, afirmou Lula.
Leu essa? Alguns países do G20 estão reduzindo emissões de CO2. Outros, não
O presidente do Brasil destacou ainda que “em tempos de crescente polarização, expressões como “desglobalização” se tornaram corriqueiras. Mas é impossível “desplanetizar” nossa vida em comum. Estamos condenados à interdependência da mudança climática”. Lula também lembrou que 2024 deve ser o ano mais quente da história. “Furacões no Caribe, tufões na Ásia, secas e enchentes na África e chuvas torrenciais na Europa deixam um rastro de morte e destruição. No sul do Brasil, tivemos a maior enchente desde 1941. A Amazônia está passando por sua pior seca em 45 anos. Incêndios florestais se espalharam pelo país, consumindo 5 milhões de hectares apenas no mês de agosto”, apontou.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosSem minimizar os problemas do país, o presidente também destacou suas. “Meu governo não terceiriza responsabilidades nem abdica de sua soberania. Já fizemos muito, mas sabemos que precisamos fazer mais. Além de enfrentar o desafio da crise climática, lutamos contra aqueles que lucram com a degradação ambiental. Não toleraremos crimes ambientais, mineração ilegal ou crime organizado”, disse. “Reduzimos o desmatamento na Amazônia em 50% no último ano e pretendemos erradicá-lo até 2030. Não é mais aceitável pensar em soluções para as florestas tropicais sem ouvir os povos indígenas, as comunidades tradicionais e todos aqueles que vivem nelas. Nossa visão de desenvolvimento sustentável está enraizada no potencial da bioeconomia”, adicionou.
Lula na ONU afirmou ainda, ao lembrar que o Brasil sediará a COP30 em 2025, estar convencido de que o multilateralismo é a única maneira de superar a urgência climática. “Nossa Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) será apresentada ainda este ano, em linha com a meta de limitar o aumento da temperatura do planeta a um grau e meio”, anunciou.
O presidente brasileiro, tradicionalmente o primeiro a discursar na Assembleia Geral da ONU, também abordou a transição energética. “O Brasil se destaca como um polo de oportunidades neste mundo transformado pela transição energética. Somos hoje um dos países com a matriz energética mais limpa. 90% de nossa eletricidade provém de fontes renováveis, como biomassa, energia hidrelétrica, solar e eólica. Optamos pelos biocombustíveis há 50 anos, muito antes de a discussão sobre energias alternativas ganhar força. Estamos na vanguarda em outros nichos importantes, como a produção de hidrogênio verde. É hora de enfrentar o ritmo lento da descarbonização do planeta e trabalhar para uma economia menos dependente de combustíveis fósseis”, discursou Lula na ONU.
Críticas e reações
Ambientalistas comentaram o discurso do presidente Lula na ONU, destacando compromissos importantes mas também apontando contradições do presidente e seu governo. “Lula enfatizou a eliminação do desmatamento, ao contrário do que pregam alguns de seus ministros, prometeu apresentar a NDC do país este ano e sugeriu que o conselho econômico e social da ONU seja um instrumento que dê dentes aos acordos na agenda climática. Porém, o tema de clima não teve tanto destaque no discurso do presidente quanto em momentos anteriores, reflexo do cenário global de escalada de guerras e tensões entre países, algo que certamente também afeta negativamente a expectativa para os acordos em clima, incluindo a própria conferência no Brasil no próximo ano”, afirmou Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima.
Houve cobranças sobre as posições do governo brasileiro na exploração de petróleo. “Lula criticou o negacionismo climático em seu discurso na assembleia geral da ONU, mas parece não entender que impulsionar a exploração de petróleo como seu governo vem fazendo talvez seja o pior do negacionismo. A ciência é clara, não podemos abrir nenhuma nova frente de exploração de petróleo e outros combustíveis fósseis”, criticou Delcio Rodrigues, diretor-executivo do ClimaInfo.
Maurício Voivodic, diretor-geral do WWF-Brasil, fez ressalvas semelhantes. “Embora tenha criticado o negacionismo climático na tribuna nas Nações Unidas, em reuniões bilaterais o presidente Lula fez movimentos em favor dos dois principais emissores dos gases de efeito estufa que estão aquecendo o planeta. Primeiro, ao tentar postergar a lei europeia que tenta contribuir com o combate ao desmatamento da Amazônia. Depois, ao manter um encontro fora da agenda com uma das principais empresas do big oil, destacou Voivodic. “Embora seja oportuno e necessário expor a falta de ambição dos países desenvolvidos, é importante alinhar as ações ao discurso e rever posicionamentos internos que estão levando o Brasil a subir no ranking dos maiores emissores globais dos gases que estão sufocando a vida no planeta”, acrescentou.
As contradições também foram destacadas por Camila Jardim, especialista em política internacional do Greenpeace Brasil. “O presidente Lula apresentou um discurso potente em relação à agenda climática e de reforma da ONU, mas não consegue esconder a grande contradição na sua empreitada de liderança nesse tópico quando temos, no mesmo dia, o leilão do fim do mundo no Rio de Janeiro. Se, por um lado, a posição
conciliadora da diplomacia brasileira é muito importante para apoiar o fortalecimento do multilateralismo e a responsabilização dos grandes poluidores históricos, por outro, reforça a lógica de ‘compromissos possíveis e resultados insuficientes’ que o próprio Lula criticou em seu discurso”, afirmou a ambientalista.
Professor da universidade de São Paulo e membro do IPCC, o astrofísico Paulo Artaxo, um dos maiores especialistas brasileiros na crise do clima elogiou o discurso de Lula na ONU. “O discurso do presidente Lula na Assembleia Geral das Nações Unidas foi realmente irretocável e basicamente tocou nos pontos principais das metas brasileiras de reforçar que devemos ter desmatamento zero em 2030, que é uma meta extremamente importante para o Brasil, e que nós vamos continuar na trajetória de reestruturar nossa economia para uma economia verde, livre de combustíveis fósseis o máximo possível”, afirmou.
Artaxo, entretanto, alertou para a questão dos crimes ambientais. “Nós observamos a quantidade de garimpos ilegais e a quantidade de desmatamentos ilegais que, na verdade, estão sendo tolerados hoje pelo atual governo. Ou o governo inicia uma campanha forte de repressão ao crime organizado na Amazônia ou realmente esse compromisso do Lula vai cair no vazio”, apontou, destacando também o final do discurso sobre o ritmo lento da descarbonização do planeta e a necessidade de trabalharmos por uma economia menos dependente de combustíveis fósseis. “Essa é a trajetória que o Brasil deve seguir e a trajetória que o Brasil deve recomendar na COP29, na COP30 e na liderança do G20 a todos os países do nosso planeta”, afirmou o cientista.
Outros destaques do discurso
Lula na ONU fez um discurso de quase 20 minutos na abertura da Assembleia-Geral em Nova York e falou sobre muitos temas como guerras,
fome e insegurança alimentar; América Latina; recurso para países pobres; reforma da ONU; democracia; e inteligência artificial. Seguem pontos destacados do discurso de Lula.
Guerra na Europa: “Na Ucrânia, é com pesar que vemos a guerra se estender sem perspectiva de paz. O Brasil condenou de maneira firme a invasão do território ucraniano. Já está claro que nenhuma das partes conseguirá atingir todos os seus objetivos pela via militar. O recurso a armamentos cada vez mais destrutivos traz à memória os tempos mais sombrios do confronto estéril da Guerra Fria. Criar condições para a retomada do diálogo direto entre as partes é crucial neste momento. Essa é a mensagem do entendimento de seis pontos que China e Brasil oferecem para que se instale um processo de diálogo e o fim das hostilidades”.
Guerra no Oriente Médio: “Em Gaza e na Cisjordânia, assistimos a uma das maiores crises humanitárias da história recente, e que agora se expande perigosamente para o Líbano. O que começou como ação terrorista de fanáticos contra civis israelenses inocentes, tornou-se punição coletiva de todo o povo palestino. São mais de 40 mil vítimas fatais, em sua maioria mulheres e crianças. O direito de defesa transformou-se no direito de vingança, que impede um acordo para a liberação de reféns e adia o cessar-fogo”.
Outras guerras: “Conflitos esquecidos no Sudão e no Iêmen impõem sofrimento atroz a quase trinta milhões de pessoas. Este ano, o número dos que necessitam de ajuda humanitária no mundo chegará a 300 milhões”.
América Latina: “Na América Latina vive-se desde 2014 uma segunda década perdida. O crescimento médio da região nesse período foi de apenas 0,9%, metade do verificado na década perdida de 1980. Essa combinação de baixo crescimento e altos níveis de desigualdade resulta em efeitos nefastos sobre a paisagem política. Tragada por disputas, muitas vezes alheias à região, nossa vocação de cooperação e entendimento se fragiliza. É injustificado manter Cuba em uma lista unilateral de Estados que supostamente promovem o terrorismo e impor medidas coercitivas unilaterais, que penalizam indevidamente as populações mais vulneráveis. No Haiti, é inadiável conjugar ações para restaurar a ordem pública e promover o desenvolvimento.”
Democracia: “No Brasil, a defesa da democracia implica ação permanente ante investidas extremistas, messiânicas e totalitárias, que espalham o ódio, a intolerância e o ressentimento. A democracia precisa responder às legítimas aspirações dos que não aceitam mais a fome, a desigualdade, o desemprego e a violência. No mundo globalizado não faz sentido recorrer a falsos patriotas e isolacionistas, tampouco há esperança no recurso a experiências ultraliberais que apenas agravam as dificuldades de um continente depauperado”.
Fome e insegurança alimentar: “O número de pessoas passando fome ao redor do planeta aumentou em mais de 152 milhões desde 2019. Isso significa que 9% da população mundial (733 milhões de pessoas) estão subnutridas. O problema é especialmente grave na África e na Ásia, mas ele também persiste em partes da América Latina. Mulheres e meninas são a maioria das pessoas em situação de fome no mundo. Pandemias, conflitos armados, eventos climáticos e subsídios agrícolas dos países ricos ampliam o alcance desse flagelo. A Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, que lançaremos no Rio de Janeiro em novembro, nasce dessa vontade política e desse espírito de solidariedade. Ela será um dos principais resultados da presidência brasileira do G20 e está aberta a todos os países do mundo. Todos os que queiram se somar a esse esforço coletivo são bem-vindos”.
Reforma da ONU: “Prestes a completar 80 anos, a Carta das Nações Unidas nunca passou por uma reforma abrangente. A versão atual da Carta não trata de alguns dos desafios mais prementes da humanidade. Na fundação da ONU, éramos 51 países. Hoje somos 193. Várias nações, principalmente no continente africano, estavam sob domínio colonial e não tiveram voz sobre seus objetivos e funcionamento. Inexiste equilíbrio de gênero no exercício das mais altas funções. O cargo de Secretário-Geral jamais foi ocupado por uma mulher. Estamos chegando ao final do primeiro quarto do século XXI com as Nações Unidas cada vez mais esvaziada e paralisada. É hora de reagir com vigor a essa situação, restituindo à Organização as prerrogativas que decorrem da sua condição de foro universal. Não bastam ajustes pontuais. Precisamos contemplar uma ampla revisão da Carta. Sua reforma deve compreender os seguintes objetivos: a transformação do Conselho Econômico e Social no principal foro para o tratamento do desenvolvimento sustentável e do combate à mudança climática, com capacidade real de inspirar as instituições financeiras; a revitalização do papel da Assembleia Geral, inclusive em temas de paz e segurança internacionais; o fortalecimento da Comissão de Consolidação da Paz; a reforma do Conselho de Segurança, com foco em sua composição, métodos de trabalho e direito de veto, de modo a torná-lo mais eficaz e representativo das realidades contemporâneas”.
Crise da dívida: “As condições para acesso a recursos financeiros seguem proibitivas para a maioria dos países de renda média e baixa. O fardo da dívida limita o espaço fiscal para investir em saúde e educação, reduzir desigualdades e enfrentar a mudança do clima. Países da África tomam empréstimos a taxas até 8 vezes maiores do que a Alemanha e 4 vezes maior que os Estados Unidos. É um Plano Marshall às avessas, em que os mais pobres financiam os mais ricos. Sem maior participação dos países em desenvolvimento na direção do FMI e do Banco Mundial não haverá mudança efetiva.”
Bilionários: “Enquanto os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ficam para trás, as 150 maiores empresas do mundo obtiveram, juntas, lucro de 1,8 trilhão de dólares nos últimos dois anos. A fortuna dos 5 principais bilionários mais que dobrou desde o início desta década, ao passo que 60% da humanidade ficou mais pobre. Os super-ricos pagam proporcionalmente muito menos impostos do que a classe trabalhadora. Para corrigir essa anomalia, o Brasil tem insistido na cooperação internacional para desenvolver padrões mínimos de tributação global.”
Inteligência Artificial: “Na área de Inteligência Artificial, vivenciamos a consolidação de assimetrias que levam a um verdadeiro oligopólio do saber. Avança a concentração sem precedentes nas mãos de um pequeno número de pessoas e de empresas, sediadas em um número ainda menor de países. Interessa-nos uma Inteligência Artificial emancipadora, que também tenha a cara do Sul Global e que fortaleça a diversidade cultural. Que respeite os direitos humanos, proteja dados pessoais e promova a integridade da informação. E, sobretudo, que seja ferramenta para a paz, não para a guerra. Necessitamos de uma governança intergovernamental da inteligência artificial, em que todos os Estados tenham assento”.
Relacionadas
#Colabora
Texto produzido pelos jornalistas da redação do #Colabora, um portal de notícias independente que aposta numa visão de sustentabilidade muito além do meio ambiente.