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Desastre climático no Sul reforça papel da agroecologia como alternativa à agroexportação
Para estudiosos e camponeses, degradação ambiental potencializada por monoculturas rompe equilíbrio natural
“Precisamos pensar em um novo modelo de sociedade e de produção”, afirma Márcia Riva. Em meio à destruição causada pelo desastre climático que atingiu o Rio Grande do Sul, a líder camponesa destaca que existem sim futuros possíveis para o estado afetado por chuvas e enchentes que destruíram lavouras, casas, indústrias e cidades. “Na solidariedade e resistência, a gente reconstrói nosso espaço”, acrescenta Márcia, moradora do Assentamento Integração Gaúcha, em Eldorado do Sul (RS) – um dos municípios mais afetados pela cheia do Guaíba na região metropolitana de Porto Alegre.
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No local, lar de 72 famílias assentadas, funcionava uma das agroindústrias de produção de arroz agroecológico vinculadas ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST-RS). Durante a entrevista ao #Colabora, ainda sem energia elétrica e com dificuldades de comunicação por conta de falhas no sinal de telefone, Márcia relata o drama enfrentado por ela e outras pessoas da comunidade. “Nós ficamos 13 dias com as nossas casas e as nossas produções debaixo d ‘água. Todo esse período, o que nós tínhamos de produção ficou submerso. Da mesma maneira, nossas casas, nossas unidades de produção, nossas residências e as agroindústrias ficaram debaixo d ‘água”, conta a agricultora.
No momento, ainda não existem dados que possam dimensionar tudo que foi perdido nas enchentes. Muitos dos assentamentos da região tiveram perda total, lavouras que antes eram referência na produção do arroz agroecológico e de hortifrutigranjeiros. Destaque no Brasil e América Latina, a estimativa do MST-RS era de produzir 280 mil sacas de arroz na safra 2023/2024. Tudo isso com um diferencial: o respeito ao equilíbrio ambiental. “Parece até uma contradição. Nós, desde que chegamos, cultivamos alimentos limpos, cuidamos da natureza e do território, construímos um espaço agroecológico – e essa enchente levou”, descreve Márcia com indignação.
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Veja o que já enviamosA tragédia, no entanto, não ocorreu por acaso; está inserida em um contexto de mudanças climáticas que intensifica extremos do clima. “Sabemos que estamos vivendo um momento de crise climática e os efeitos dela são as catástrofes ambientais; estamos sendo vítimas, assim como muitos povos do planeta”, ressalta Álvaro Delatorre, engenheiro agrônomo e membro da coordenação do setor de produção, cooperação e meio ambiente do MST-RS.
Além do fator global, o especialista aponta a intensificação do desastre causada pela degradação ambiental que, no contexto do Rio Grande do Sul, está ligada ao modelo de produção de agroexportação, em outras palavras, ao agronegócio que visa o lucro acima de tudo. “Esse modelo agroexportador centrado na monocultura da soja, principal atividade econômica do agronegócio no Rio Grande do Sul, rompe com um princípio básico de equilíbrio ambiental que é a biodiversidade”, explica o engenheiro agrônomo. O principal problema gerado, a nível local e que afeta os rios e bacias hidrográficas gaúchas, é o desmatamento das matas ciliares e a supressão da vegetação nativa dos biomas Pampa e Mata Atlântica.
Rompimento de ciclos naturais
Álvaro Delatorre contextualiza um processo de intensificação do cultivo de monoculturas, principalmente soja e milho, que ocorre em ritmo acelerado há pelo menos 70 anos no Rio Grande do Sul. “Toda vez que você acaba com a biodiversidade dos campos nativos do Pampa e Mata Atlântica – sobretudo as matas ciliares que têm uma capacidade de absorção da água da chuva, evitando a erosão – e coloca uma monocultura de soja, com infinitamente menos capacidade de absorção, esse solo fica extremamente suscetível à erosão laminar e isso deixa os rios assoreados”, explica o especialista, que também atua na coordenação da Cooperativa Central dos Assentamentos do Rio Grande do Sul.
Presidente da Associação dos Moradores do Assentamento Filhos de Sepé, em Viamão (RS), Huli Marcos Zang atua com produção agroecológica desde 2002, onde são produzidas cerca de 150 mil sacas de arroz orgânico por ano. A estimativa para este ano é de cerca de 30% da produção tenha sido perdida, apesar disso o agricultor ressalta que a produtividade não é o foco principal do trabalho desenvolvido na Cooperativa dos Produtores Orgânicos da Reforma Agrária de Viamão (Cooperav).
“A principal pergunta a ser feita sempre para o agricultor não é quanto que ele produz, mas sim quanto sobra para ele. O agronegócio criou esse fetiche, esse mito de: ‘eu produzo tanto por hectare, eu tenho tanto de coleta’. Mas no final das contas, a sociedade brasileira acaba bancando o agronegócio para que se tenha, tenham essas altas produtividades”, explica o morador do assentamento Filhos de Sepé – nome que faz referência ao líder indígena Sepé Tiaraju que lutou contra portugueses e espanhóis na Guerra Guaranítica.
O agronegócio brasileiro, lembra Álvaro Delatorre, vende a ideia de que sustenta e movimenta o PIB (Produto Interno Bruto), no entanto, esta “pujança” do agro depende de recursos do governo, como os do Plano Safra, entre outros programas de financiamento rural. “Por que o agronegócio, que se diz tão eficiente, precisa receber tanto estímulo para produzir?”, questiona o engenheiro agrônomo.
Ainda de acordo Huli Marcos, quando o foco da agricultura está na produtividade, o custo energético do aumento da produção fica com o meio ambiente e gera a quebra de ciclos naturais. Além disso, o diretor da Cooperav explica que o modelo de agroexportação leva os produtores a deixar de plantar alimentos para si em prol das monoculturas de soja, milho e eucalipto. “Quando você destrói os biomas e coloca uma monocultura, você está quebrando um ciclo natural”, enfatiza Huli Marcos.
Vegetação natural para amenizar extremos climáticos
Estudo publicado por pesquisadores brasileiros e estrangeiros na revista científica Bioscience, na quinta-feira (23/05), mostra que a preservação da biodiversidade nativa é essencial para mitigar os efeitos das mudanças climáticas, isso porque, essas áreas são responsáveis por estocar carbono.
A pesquisa menciona a introdução de espécies exóticas como um fator que pode levar a liberação do carbono no atmosfera, o que potencializa o aquecimento global e destrói a funcionalidade ecológica dos ambientes, “o que pode refletir na capacidade de fornecer nascentes de água, manter polinizadores para agricultura, controlar a umidade e o clima e influenciar o regime de chuvas”, afirmam os autores do estudo à Agência Bori.
Conforme explica o professor Paulo Niederle, dos programas de pós graduação de Desenvolvimento Rural e Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), desde os anos 70 e 80 (período da ditadura militar no Brasil) começaram a ser criadas as condições para o crescimento do agronegócio, intensificado com o “boom” das commodittes dos anos 2000. Segundo Niederle, nesse período as monoculturas avançaram para os campos nativos do Pampa e as áreas alagáveis da região metropolitana de Porto Alegre.
Seria o agronegócio gaúcho o principal responsável pelos recentes desastres naturais no estado? A resposta é não, explica Rafaelo Balbinot, professor da Universidade Federal de Santa Maria. As mudanças climáticas ocorrem pela intensificação do efeito estufa natural, que não têm no agronegócio gaúcho como seu principal fator. Embora contribuam com emissões, sua influência direta para a ocorrência dos extremos climáticos que afetaram o Rio Grande do Sul não é significativa. No entanto, isso não diminui o impacto das práticas do agronegócio na intensificação de eventos extremos.
Em relação a essa questão, o sociólogo Paulo Niederle, com pesquisas relacionadas à alimentação e agricultura, relaciona o avanço do modelo do agronegócio para outras regiões do Brasil com o desmatamento, principal causa das emissões de gases do efeito estufa pelo país. “Na verdade, colonizadores que saíram do sul do Brasil e foram para outras regiões, com forte apoio governamental, contribuíram muito fortemente para o desmatamento do Cerrado”, complementou o pesquisador da UFRGS
“Uma parcela do fenômeno tem a ver, sim, com o desmatamento feito não só no Rio Grande do Sul, mas de uma maneira mais ampla em todo o Brasil, para a introdução de commodities. No caso específico da produção de soja ou outras commodities no Rio Grande do Sul, a questão é que ela contribui também para reduzir a nossa capacidade de resiliência”, destaca Paulo Niederle.
Agroecologia para mitigar futuros desastres
O Rio Grande do Sul, tanto por fatores locais como globais, está na rota dos desastres e vulnerável aos extremos intensificados pelas mudanças climáticas e ação humana sobre o planeta. Documento enviado recentemente pela Rede Sul de Restauração Ecológica ao Ministério do Meio Ambiente e Mudanças do Clima, cobra o estabelecimento de políticas públicas de restauração ecológica e uma mudança de postura no uso dos solos, como aspectos essenciais para a reconstrução do Rio Grande do Sul.
Apesar de também terem sido fortemente afetados pelas enchentes, os assentamentos do MST-RS na região metropolitana de Porto Alegre já possuem os conhecimentos necessários para equilibrar a produção com o cuidado ambiental. “Nós provamos aqui, dentro do assentamento da reforma agrária, que uma alternativa a esse modelo de produção que destrói tudo é a agroecologia”, ressalta Márcia Riva.
A camponesa cita o destaque nacional e internacional que a produção dos assentamentos conquistou ao longo dos anos. “Precisamos olhar para essa forma de produzir que vem lá das nossas famílias de origem, de pequenos agricultores, de campesinos – essa forma de produção não destrói a natureza, mantém as matas ciliares na beira de rios e nos dá segurança, nos dá uma garantia de preservação não só da terra, mas a preservação da nossa vida”, acrescenta a agricultora de Eldorado do Sul.
Também professor do departamento de Engenharia florestal da Universidade Federal de Santa Maria, Oscar Agustín Torres Figueiredo acredita que o modelo agroecológico aparece com grande potencial para ser uma alternativa a desastres, secas, pragas, esgotamento do solo, e outros problemas que ameaçam a produção de alimentos no século XXI. “No contexto da crise climática, a prática de sistemas produtivos baseados em soluções da natureza não será mais apenas uma opção, mas uma necessidade”, complementa o especialista, que pesquisa sobre agricultura familiar, produção orgânica e desafios socioambientais.
Mobilização para produção de marmitas
Apesar dos assentamentos do MST-RS terem sido fortemente atingidos pelo desastre climático, antes mesmo de contar os prejuízos, o primeiro foco dos agricultores familiares foi organizar cozinhas solidárias para auxiliar as pessoas mais afetadas pelas enchentes. Apenas no Assentamento Filhos de Sepé, foram produzidas mais de 50 mil marmitas até o final da última semana.
“Todos os dias contamos com o apoio de alguém, dos colegas que vem lá da serra, amanhã mesmo, vem duas vans da serra, que são agricultores ecológicos, vem para cá para fazer o mutirão de limpeza e de organização do espaço. A agroecologia também nos traz isso: essa solidariedade e sentimento de irmandade”, afirma Márcia Riva sobre o auxílio e a mobilização coletiva para reconstruir o Assentamento Integração Gaúcha.
Para arrecadar doações para as cozinhas solidárias e para auxiliar as vítimas do desastre socioambiental no Rio Grande do Sul, o MST-RS criou uma campanha no Apoia.se. Também é possível fazer uma doação através de chave PIX e das informações bancárias:
Banco: 350
Agência: 3001
Conta: 30253-8
Chave PIX CNPJ: 09.352.141/0001-48
Nome: Instituto Brasileiro de Solidariedade
A Feira de Agricultores Ecologistas também criou uma campanha para ajudar os produtores agroecológicos que foram afetados pelas chuvas e enchentes. As informações de como doar podem ser conferidas neste link.
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Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.