Cultura submersa: artistas encaram futuro incerto após desastre no Sul

Trabalhadores da cultura perderam materiais, espaços e fontes de renda. Iniciativas buscam arrecadar doações e incentivar a contratação de artistas gaúchos

Por Micael Olegário | ODS 11ODS 13 • Publicada em 6 de junho de 2024 - 09:53 • Atualizada em 29 de agosto de 2024 - 09:57

A Casa de Cultura Mario Quintana inundada pelas águas do Guaíba: artistas, músicos, atores, produtores culturais e técnicos do setor com trabalho e renda comprometidos (Foto: Maxi Franzoi / AGIF / via AFP – 17/05/2024)

“Não temos mais nenhum instrumento musical. Todos os instrumentos, figurinos, máscaras, tudo ficou debaixo d’água”, relata Tânia Farias, artista do grupo “Ói Nóis Aqui Traveiz”, em depoimento que ilustra outra dimensão das enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul: a cultura submersa pelas águas do Guaíba. Ainda em fase de recuperação após um período de dificuldades geradas pela pandemia de Covid-19, artistas e trabalhadores da cultura agora enfrentam um novo desafio imposto pelo desastre climático e político que atingiu o estado.

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“Não temos perspectiva de quando vamos voltar a trabalhar”, comenta Luciano Malásia, músico e DJ que foi obrigado a abandonar o apartamento onde morava, em uma área próxima ao Cais Mauá, na capital Porto Alegre. Da sacada de sua casa, Malásia, como é mais conhecido, observou o avanço das águas e, no dia 3 de maio, decidiu sair e buscar abrigo na residência de amigos em uma parte mais alta da cidade. Quando conversou com a reportagem do #Colabora, o músico já estava há 23 dias desalojado.

O caos social e financeiro que vamos viver nos próximos meses, até anos, vai ser tão grande quanto o da pandemia

Luciano Malásia
Músico e DJ

Além dos artistas afetados diretamente pelas enchentes, intensificado pelas mudanças climáticas, pela degradação ambiental dos biomas Pampa e Mata Atlântica e por falhas nas políticas de prevenção das cidades, diversos outros músicos, atores, produtores culturais e técnicos do setor tiveram seu trabalho e renda comprometidos. “O impacto foi muito grande e não sabemos quando vamos voltar, porque todas as agendas foram canceladas. Então, até quem não foi atingido diretamente, acaba sofrendo as consequências”, descreve Luciano Fernandes, presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Rio Grande do Sul (Sated-RS).

O maior desastre ambiental da história do RS alcançou, inclusive, o Centro Histórico de Porto Alegre, onde estão localizados bens culturais como o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs) e a Casa de Cultura Mario Quintana, além de outros espaços artísticos e culturais espalhados pelo estado, conforme apuração do Nonada Jornalismo.

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Veja o que já enviamos

“Tivemos cenas de circos completamente alagados, com as pessoas perdendo todo o material de trabalho”, conta Luciano Fernandes. O presidente do Sated-RS e ator circense revela a mobilização criada primeiro para mapear os artistas impactados, para arrecadar doações e cobrar ações dos governos estadual e municipais. Uma das principais reivindicações feita por ele e mencionada por outros artistas é com relação a liberação de recursos de editais das leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc.

Na última semana de maio, o Ministério da Cultura (MinC) anunciou a liberação antecipada de R$ 6,8 milhões dos recursos de diferentes editais para desenvolvimento de ações do Sistema MinC. Questionada sobre as ações de apoio ao setor neste momento de calamidade, a Secretaria da Cultura do Rio Grande do Sul (Sedac) informou a decisão de antecipar o pagamento de recursos para projetos aprovados na Lei Paulo Gustavo (LPG), sem necessidade de apresentação prévia do plano de trabalho. De acordo com a nota enviada pela pasta ao #Colabora, já foram destinados cerca de R$12 milhões para 82 proponentes contemplados nos editais da LPG. 

“A Sedac também já atua com a previsão de disponibilizar linhas de fomento visando à reparação e à reconstrução do setor cultural do estado. Um grupo de trabalho foi instituído junto ao Conselho Estadual de Cultura, visando ao mapeamento dos impactos e ao levantamento de alternativas”, diz o texto da nota.

O teatro popular Terreira da Tribo tomado pelas águas: artistas encaram futuro incerto (Foto: Eugênio Barboza / Divulgação)
O teatro popular Terreira da Tribo tomado pelas águas: artistas encaram futuro incerto (Foto: Eugênio Barboza / Divulgação)

Escola de teatro devastada pela enchente

Um dos espaços mais danificados pela cheia do Guaíba em Porto Alegre foi o Terreira da Tribo, teatro popular onde funcionava a sede do grupo “Ói Nóis Aqui Traveiz”, há mais de 46 anos em atividade no RS. Segundo Tânia Farias, o local estava passando por um processo de organização e digitalização de parte de seu acervo. “Não sabemos agora se esses documentos existem. Até que consigamos entrar lá, estamos tendo pesadelos com o que vamos encontrar quando abrirmos a Terreira”, revela a artista visual.

O início do processo de reconstrução do teatro começou no último sábado (01/06), através de um mutirão de limpeza. Para além disso, Tânia teme pelo futuro diante da necessidade de repor todos os materiais e instrumentos perdidos. “Vamos estar sem renda, material e espaços de trabalho para gerar alguma renda”, acrescenta a artista, também desalojada após sua casa no centro da cidade ter ficado sem energia elétrica e abastecimento de água, o que a obrigou a buscar abrigo junto a amigos.

Quando começamos a nos deparar com a situação que foi jogada na nossa frente, pensamos em ajudar no front e colocamos nossa van para ajudar no transporte de pessoas. Depois, pensamos logo na situação dos artistas, porque temos peculiaridades que não se encaixam nas ações do governo, que tem muitas agendas; com isso, pensamos em fazer uma campanha para ajudar financeiramente essas pessoas

Luciano Wieser
Ator, diretor e produtor cultural

Luciano Malásia não sabe quando vai poder voltar para casa, mesmo com a redução do nível do Guaíba, ainda vai demorar mais tempo até que os serviços básicos do prédio onde vive sejam restabelecidos, mas para ele o mais preocupante é a falta de perspectiva sobre voltar a trabalhar. “O caos social e financeiro que vamos viver nos próximos meses, até anos, vai ser tão grande quanto o da pandemia”, prevê o músico e DJ.

Um sentimento que permeia os relatos dos artistas é de que a cultura provavelmente será a última a voltar à normalidade, após o longo percurso de reconstrução que o Rio Grande do Sul deve passar. Malásia resume algo que tem sido sentido por todos os gaúchos nas últimas semanas: “cada vez que chove entramos em um tipo de gatilho”. 

Após morar durante muitos anos em São Paulo e voltar ao RS durante a pandemia, o músico e DJ acredita que talvez uma das alternativas seja se mudar novamente para outro estado. Mesmo assim, Malásia menciona a importância da solidariedade e de ações desenvolvidas por vários artistas e membros da sociedade civil em abrigos e na busca por arrecadar doações. “A arte não é extraordinária, ela é ordinária, necessária e um tipo de respiro nestes momentos de crise”, acrescenta.

Almoxarifado do teatro Terreira da Tribo: instrumentos, figurinos, máscaras e equipamentos destruídos pela força das águas (Foto: Eugênio Barboza / Divulgação)

A solidariedade que emerge das águas

“É um novo estado, parece que o tempo está suspenso. É difícil saber para onde as coisas vão ir, têm muitas respostas que estamos aguardando”, afirma Luciano Wieser, do grupo “De Pernas para o Ar”, com mais de 35 anos de história. Desde o início das chuvas e enchentes, o grupo de Canoas começou a realizar ações voluntárias para auxiliar as pessoas mais atingidas, principalmente moradores do bairro Mathias Velho, um dos locais que mais sofreram por conta das inundações.

“Quando começamos a nos deparar com a situação que foi jogada na nossa frente, pensamos em ajudar no front e colocamos nossa van para ajudar no transporte de pessoas. Depois, pensamos logo na situação dos artistas, porque temos peculiaridades que não se encaixam nas ações do governo, que tem muitas agendas; com isso, pensamos em fazer uma campanha para ajudar financeiramente essas pessoas”, relata Luciano Wieser.

Já estávamos vivendo uma crise em Porto Alegre pela falta de espaços para trabalhar, estrutura e falta de pagamentos de alguns editais

Deborah Finocchiaro
Atriz, produtora cultural, palestrante e locutora

O grupo “De Pernas para o Ar” foi um dos responsáveis por arrecadar doações em dinheiro para os artistas prejudicados pelas enchentes. A iniciativa já conseguiu alcançar mais de 177 pessoas do meio cultural de Canoas e da região metropolitana de Porto Alegre, sendo cerca de 98 afetadas diretamente, incluindo desabrigados e desalojados.

“Mais que o auxílio, o intuito foi ouvir as pessoas, dar um afeto e repassar afeto do Brasil todo”, ressalta Luciano, lembrando que uma das primeiras consequências do desastre foi o cancelamento de eventos por 180 dias pelo governador do Estado. “Estamos muito preocupados com o que vai ser para os próximos meses”, acrescenta o ator e produtor cultural. 

Como ajudar os artistas gaúchos

A chave PIX para fazer doações para a campanha criada pelo grupo de Canoas é o e-mail: depernasculturasos@gmail.com. Todas as informações e atualizações sobre o destino dos recursos estão sendo divulgadas na página do grupo no Instagram: @grupodepernasproar.

Outra mobilização semelhante foi idealizada pela produtora e gestora cultural Joka Alovisi, em parceria com outras pessoas do setor. Segundo ela, é muito importante considerar que a situação de dificuldade vai continuar durante um bom tempo, por isso foi criado o financiamento coletivo via apoia.se: Ajuda Para Todos os Artistas do Rio Grande do Sul (Apta-RS)

Quando aconteceu, eu fiquei duvidando e pensando: ‘quem vai querer ouvir música agora’, mas depois tomei consciência da necessidade emocional de ressignificar e dar um respiro para as pessoas passarem por esse momento

Clarissa Ferreira
Escritora, professora e musicista

“Pelo que estamos vendo, essa campanha vai se prolongar por mais tempo”, avalia Joka Alovisi sobre a necessidade observada a partir de outra ação feita pelo projeto, um levantamento para identificar o número de profissionais do meio artístico afetados pelo desastre socioambiental. Até o final de maio, mais de 600 pessoas já haviam se cadastrado no formulário. A chave PIX para ajudar a iniciativa é: artistas-rs@apoia.se

Além dos movimentos de grupos mais ligados ao teatro e as artes visuais, uma série de músicos idealizou uma campanha específica para ajudar os profissionais que perderam suas casas e seus instrumentos musicais. O RS Música Urgente já reúne mais de mil artistas e têm também o objetivo de ampliar a discussão sobre políticas públicas e necessidades dos profissionais da música no estado. Para ajudar é possível fazer uma doação pela chave PIX: emergenciamusicars@gmail.com

Memorial do Rio Grande do Sul, equipamento cultural ilhado pelas águas do Guaíba: artistas fazem campanha por doações e trabalho (Foto Camila Diesel / SecomRS)

Oportunidade para discutir políticas públicas

“É hora de botar em prática todos nossos discursos. Transformar tudo”, defende Deborah Finocchiaro, atriz, produtora cultural, palestrante e locutora. De acordo com ela, antes mesmo da catástrofe climática, a cultura vinha sofrendo com um processo de sucateamento. A produtora cultural menciona, por exemplo, o atraso no pagamento de recursos de projetos contemplados na Lei Paulo Gustavo em junho do último ano.

A reclamação e a indignação não são apenas circunstâncias causadas pela atual situação de emergência, entidades representativas da classe vinham cobrando explicações sobre diferentes pontos da execução da lei, como revelou reportagem da Matinal Jornalismo. “Já estávamos vivendo uma crise em Porto Alegre pela falta de espaços para trabalhar, estrutura e falta de pagamentos de alguns editais”, complementa Deborah.

É bom quando tu percebes que são solidários contigo e, é melhor ainda quando tu és solidário com alguém. A arte e a solidariedade serão fundamentais para essa reconstrução

Tânia Farias
Atriz, diretora, cenógrafa e artista visual

Escritora, professora e musicista, Clarissa Ferreira ressalta as dificuldades que trabalhadores da cultura vinham enfrentando nos últimos anos, agravadas primeiro pelo pandemia e agora pela catástrofe climática. Ela mesma teve diversos shows e eventos cancelados durante o mês de maio. “Pegou um mercado musical que já tinha problemas de precariedade no trabalho, assim como diversos setores da cultura”, comenta Clarissa. 

O momento de crise colocou em evidência desigualdades e problemas sociais, no entanto, conforme a escritora, evidencia uma oportunidade para a união entre artistas como forma de reivindicar políticas públicas. “Pensar em outras formas de, não só reestruturar, mas melhorar as condições que tínhamos. Acho que não estávamos muito conscientes dos nossos direitos como músicos e artistas”, complementa a escritora e compositora que faz parte do movimento RS Música Urgente.

Sobre o debate em torno de políticas públicas, Tânia Farias, do Ói Nóis Aqui Traveiz,  menciona a importância da aprovação de projetos como o PL 1896/2024, proposta enviada para a Câmara dos Deputados e que busca instituir auxílio emergencial aos micro e pequenos empreendedores da área da cultura do Rio Grande do Sul.

Arte e cultura na reconstrução do estado

Mesmo diante de um contexto desfavorável e de terem sido impactados pelo desastre, muitos artistas também se envolveram em ações voluntárias em abrigos, inclusive, com a realização de apresentações e atividades com crianças. Na opinião de Deborah Finocchiaro, que atua desde 1985 no setor, a arte e a solidariedade são elementos essenciais para virar a chave, inverter a cena de calamidade. “Fazer as pessoas rirem, brincarem, terem um pingo de leveza que seja, isso afeta diretamente o emocional e a saúde das pessoas”, destaca Deborah. 

Uma das ações organizadas pela produtora cultural está marcada para o próximo 12 de junho, o início do projeto “Sarau Voador – Tudo com Elas”, uma iniciativa que vai reunir artistas em palestras e apresentações na Biblioteca Pública do RS, com objetivo de arrecadar doações e, principalmente, absorventes para serem distribuídos para mulheres em situação de vulnerabilidade.

“Quando aconteceu, eu fiquei duvidando e pensando: ‘quem vai querer ouvir música agora’, mas depois tomei consciência da necessidade emocional de ressignificar e dar um respiro para as pessoas passarem por esse momento”, pondera Clarissa Ferreira. De acordo com a musicista, autora do álbum “La Vaca”, com canções que problematizam questões ambientais e sociais no contexto do Rio Grande do Sul e do Pampa, a música ajuda a conscientizar as pessoas sobre a importância de mudar as relações entre os seres humanos e a natureza.

Além disso, conforme diferentes artistas ouvidos pelo reportagem do #Colabora, a arte e a cultura oferecem modos de esperançar e buscar políticas e dias melhores. “É bom quando tu percebes que são solidários contigo e, é melhor ainda quando tu és solidário com alguém. A arte e a solidariedade serão fundamentais para essa reconstrução”, aponta Tânia Farias.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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