Cerrado pode perder um terço da água, indica estudo divulgado na COP27

Monocultura no Cerrado: bioma pode perder um terço da água, aponta estudo divulgado na COP27 para alertar sobre riscos (Foto: Thomas Bauer / Arquivo ISPN)

Desmatamento para monocultura e pastagem é o principal responsável por redução da vazão dos rios; no Egito, sociedade civil chama atenção para bioma

Por Oscar Valporto | ODS 13ODS 15 • Publicada em 15 de novembro de 2022 - 10:44 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 20:08

Monocultura no Cerrado: bioma pode perder um terço da água, aponta estudo divulgado na COP27 para alertar sobre riscos (Foto: Thomas Bauer / Arquivo ISPN)

No Cerrado, 93% das bacias devem ter redução na disponibilidade de água, é o que aponta o estudo The heavy impact of deforestation and climate change on the streamflows of the Brazilian Cerrado biome and a worrying future, apoiado pelo Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), organização da sociedade civil com foco no bioma. Segundo a pesquisa, o Cerrado deve perder 34% da sua vazão de água nos próximos 28 anos. O estudo em fase de revisão pela revista científica Sustainability, concluiu que o desmatamento é a principal causa dessa diminuição, responsável por 56% do impacto. Devem ser perdidos 23.653 m³/s até 2050, só nos rios analisados no estudo, essa perda equivale à vazão de oito rios Nilo.

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O estudo foi apresentado durante debate – Acordo UE-Mercosul e Regulamento de importação livre de desmatamento: desafios para o Cerrado e para a discussão de salvaguardas – na COP27, realizado no Brazil Climate Action Hub e organizado pelo ISPN, em parceria com Fase, WWF-Brasil, IPAM, Instituto Cerrados e Rede Cerrado. As organizações buscam chamar a atenção para o bioma na COP27, onde as florestas – no caso do Brasil, a Amazônia – dominam as discussões. “A atenção do campo socioambiental e da sociedade geralmente reside nas florestas tropicais, embora biomas não florestais, como o Cerrado, cubram 57% do cinturão tropical do mundo”, comentou o advogado Guilherme Eidt, assessor de políticas do ISPN, em Sharm el-Scheik. “Para garantir a segurança climática, também é necessário proteger savanas e campos”, acrescentou

A pesquisa analisou o comportamento de 81 bacias hidrográficas no Cerrado, em um período entre 1985 e 2022. Destas, 88% já apresentam diminuição da vazão devido às intensas mudanças do uso do solo na área de abrangência da bacia hidrográfica. O número alto indica tendência sistêmica de escassez de água e ampliação do estresse hídrico até 2050 em especial ocasionado pela ocupação agropecuária de larga escala, o agronegócio. Os recursos hídricos do bioma estão cada vez mais escassos localmente e já apresentam perda de 15,4% da vazão dos rios. Ainda assim, água segue sendo exportada para China, União Europeia e Estados Unidos em forma de “água virtual”, ou seja, água consumida na produção dos grãos e carne (commodities).

O estudo chama atenção para as mudanças no uso da terra pela expansão da agricultura e de pastagens, responsável por cerca de 46% da emissão de gases de efeito estufa (GEE) do país, o que é um dos fatores de impacto do agronegócio nas mudanças climáticas. Impacto esse que retorna, intensificando secas e impactando a própria agricultura e ampliando conflitos por água.

A principal conclusão da análise é que a expansão da agricultura para commodities e a escassez de água estão intrinsecamente ligadas. Yuri Salmona, geógrafo, doutor em Ciências Florestais pela Universidade de Brasília e responsável pela pesquisa, explicou que o aumento da exportação de commodities que consomem água mudou a governança das águas. “Os controles local, regional e nacional das águas do Cerrado foram substituídos por atores que dominam a cadeia global de produtos agropecuários”, disse o pesquisador.

Isso significa que a água do rio, em vez de beneficiar as comunidades locais ou a população brasileira, está sendo controlada por empresas do agronegócio que desviam o fluxo hídrico para irrigação e enviam água para importadores em forma de commodities. Para Salmona o uso da água para produção agrícola no Brasil tem que ser monitorada e avaliada com rigor por órgãos governamentais que garantam o interesse coletivo em detrimentos a interesses particulares.

Apesar das mudanças no clima também interferirem na redução da vazão dos rios, a pesquisa mostra que o desmatamento é o grande fator isolado que interfere na segurança hídrica. Por meio de testes estatísticos, modelagens validadas e repetidas checagens para mapear a oscilação da vazão dos rios ao longo do tempo, os autores do estudo conseguiram estabelecer projeções para as próximas décadas e analisá-las a partir do isolamento dos efeitos do desmatamento e das mudanças climáticas. O resultado mostrou que as mudanças climáticas contribuíram com 43% da redução da vazão, menos que o desmatamento, responsável por 56% do impacto negativo nas águas. E modelagens futuras produzidas pelo estudo indicam que o papel do uso do solo na redução da vazão dos rios do Cerrado deve ter peso ainda maior.

Apesar de as mudanças climáticas terem sido sentidas com mais intensidade durante o período de seca, foi possível constatar que as alterações no regime de chuvas, não são protagonistas na redução das vazões. “A gente está sobrepondo efeitos negativos às mudanças climáticas, por meio da ampliação do desmatamento e sobre uso da água para irrigar plantações em larga escala, estamos jogando contra nós mesmos. Estamos perdendo a chance de mitigar os efeitos do desequilíbrio climático e estamos aumentando a preocupação com a disponibilidade de água ”, lamentou Salmona.

Cobrança à União Europeia na COP27

O objetivo de organizar um evento paralelo sobre o Cerrado na COP27 foi enfatizar a necessidade de regulamentação de produtos livres de desmatamento, considerando a legislação europeia em debate, que inclui a Floresta Amazônica e outras florestas tropicais mas exclui outros biomas. As organizações da sociedade civil que compõem a Rede Cerrado divulgaram carta enviada às instituições políticas da União Europeia, reconhecendo os esforços na construção de legislação para conter o desmatamento no Sul Global e demandando três ações ainda não contempladas no documento aprovado pelo Parlamento Europeu, em setembro.

Para as organizações da Rede Cerrado, a legislação deve incluir ecossistemas naturais (adicionando ecossistemas não florestais), garantir transparência na origem dos produtos e exigir respeito aos direitos humanos. “O desmatamento desenfreado quer destruir o ar que respiramos. Conheço a importância desse bioma em nossas vidas. Com a inclusão do Cerrado na legislação europeia, todos ficaremos fortalecidos. Precisamos conter o desmatamento na caixa d’água do Brasil”, afirmou Maria de Lourdes de Souza Nascimento, coordenadora da Rede Cerrado, que espera ver uma legislação rígida aprovada pela União Europeia.

Guilherme Eidt, do ISPN, enfatizou que o Cerrado está em risco e precisa de atenção tanto quanto a Amazônia. “É importante que as regulamentações europeias assegurem a inclusão de outros ecossistemas naturais em seu escopo. O Parlamento Europeu aprovou um texto ambicioso que deve ser garantido no diálogo com as outras instituições europeias. Acreditamos em mais um modelo de desenvolvimento que gere renda a partir da conservação ambiental”, comentou.

O ISPN destaca a necessidade de implementação de políticas públicas específicas para o bioma Cerrado, que garantam a conservação ambiental e a proteção dos povos guardiões. “Cerrado em pé é fundamental para a garantia de segurança alimentar, segurança hídrica, segurança energética, segurança climática global e manutenção da sociobiodiversidade. Os povos, as comunidades tradicionais e agricultores familiares são essenciais para a conservação do meio ambiente e equilíbrio climático”, destacou Guilherme Eidt.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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