Agricultores colhem dinheiro das árvores

Família Soares, do município de Juruti, Pará, aderiu à restauração florestal. Foto WRI/ Divulgação

Década da Restauração começa em 2021: meta da ONU é reflorestar 350 milhões de áreas degradadas pelo mundo, e Brasil se comprometeu a recuperar 12 milhões de hectares

Por Liana Melo | ODS 1ODS 13 • Publicada em 22 de outubro de 2020 - 09:00 • Atualizada em 28 de outubro de 2020 - 08:35

Família Soares, do município de Juruti, Pará, aderiu à restauração florestal. Foto WRI/ Divulgação

Em plena Floresta Amazônica, os Soares, família de agricultores de Juruti, no Pará, romperam com a lógica de produção local, exclusivamente de mandioca, e adotaram um sistema agroflorestal. A propriedade foi invadida por árvores nativas da Amazônia, enquanto os pés de mandioca continuaram lá. Só que a plantação ganhou ainda frutíferas e outras culturas agrícolas. As “culpadas” pelo início da restauração florestal na propriedade foram as filhas do casal.

As meninas convenceram os pais a parar de desmatar e queimar para garantir o sustento da família. Alegaram que as áreas já abertas seriam mais do que suficientes para aumentar a produção. Deu certo. Da farinha de mandioca, os Soares agregaram valor ao produto e passaram a vender bolos, beijus, geleias… A renda da família aumentou ao mesmo tempo em que restauraram uma área de floresta que, há apenas nove meses, vinha agonizando com as práticas de corte e queimada.

Os Soares são personagens de um movimento que vem crescendo no país alheio ao discurso oficial do governo que despreza a floresta em pé. O WRI Brasil transformou a história da família em um dos cinco episódios da Websérie “As caras da restauração”. São vídeos que contam a trajetória de produtores familiares e grandes produtores de diferentes estados. Em comum, todos têm a transformação de sua relação com a terra e o lucro advindo da floresta, que pode ser maior do que a rentabilidade de atividades agropecuárias convencionais.

O investidor Bruno Mariani também viu na floresta taxas invejáveis de retorno financeiro. No sertão baiano, a agricultora Silvany Lima abandonou a criação de gado, cabras e ovelhas, plantou árvores nas áreas desmatadas e começou a faturar com a venda de umbu. Emerson e Viviane são os primeiros agricultores do Espírito Santo autorizados a manejar a palmeira juçara, espécie em extinção no Brasil. E o paulista Patrick Assumpção vive de plantar árvores nativas no Vale do Paraíba. A trajetória de cada um deles rendeu um episódio da websérie.

Sem eles, a Organizações das Nações Unidas (ONU) terá muita dificuldade em atingir a meta estipulada para a Década de Restauração, que começa no próximo ano. De 2021 a 2030, a ONU quer restaurar 350 milhões de hectares de terras degradas mundo afora. Com a degradação ambiental avançando a uma taxa sem precedentes, a restauração dos ecossistemas tem o potencial econômico, segundo cálculos feitos pela instituição, de gerar US$ 9 trilhões em serviços ecossistêmicos e, ainda, remover da atmosfera entre 13 a 26 gigatons adicionais de gases de efeito estuda.

Parece, no mínimo, estranho falar em restauração florestal no Brasil quando já foram desmatados na Amazônia o equivalente a 100 campos de futebol, de agosto do ano passado até julho último. O mês de setembro foi, particularmente, desolador: a Amazônia registrou o maior número de queimadas da última década.

E uma dessas formas pode ser pela mobilização e contratação de pessoas para recuperar e restaurar a produtividade de milhões de hectares de áreas e florestas degradas no país, tornando-as economicamente produtivas e recuperando suas funções ecológicas

Ao negar, simultaneamente, a emergência climática e a crise sanitária, o governo Bolsonaro vem correndo o sério risco de perder uma oportunidade histórica. Na pós-pandemia, o novo normal vai exigir formas inovadoras de lidar com a crise e gerar novos empregos. O motivo é simples: o diagnóstico corrente é de que a pandemia deverá deixar um legado de recessão profunda. “E uma dessas formas pode ser pela mobilização e contratação de pessoas para recuperar e restaurar a produtividade de milhões de hectares de áreas e florestas degradas no país, tornando-as economicamente produtivas e recuperando suas funções ecológicas”, analisa Miguel Calmon, diretor de Floresta do WRI Brasil.

Calmon está convencido de que independentemente do governo, o movimento de restauração no país já começou e vai ser impossível detê-lo. Na falta de política pública, pequeno e grandes produtores vêm arregaçando a manga e plantando árvores. Em parceria com empresas privadas, academia e outras ONGs, como  a TNC e o Imazon, o WRI é um dos membros do Observatório da Restauração e Reflorestamento. No começo de 2021, a instituição planeja divulgar o primeiro levantamento sobre o que vem ocorrendo no país, qual o volume de emissões de gases de efeito estufa que deixou de ir para a atmosfera e quantos empregos foram gerados.

Em 2017, o Brasil anunciou o compromisso de restaurar 12 milhões de hectares de áreas degradas. Desde então, os governos Temer e Bolsonaro vêm anunciando, em fóruns internacionais, que 9,4 milhões de hectares estão em fase de regeneração na Amazônia. É preciso ter cautela ao analisar o discurso oficial do governo, que vem sendo repetido à exaustão pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. É que esta área, que representa perto de 80% da meta do país, foi abandonada pelos seus antigos proprietários. Dependendo do grau de degradação da área, ela jamais voltará a ser uma floresta, caso não seja objeto de uma intervenção drástica para atingir sua regeneração. Logo, este número de 9,4 milhões de hectares não pode entrar no cálculo da restauração florestal feita pelo país. Mas isso é apenas um detalhe para um governo que transformou o negacionismo ambiental em política pública.

 


Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

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