Nos desdobramentos da tragédia da Vale em Brumadinho, uma enfermeira do Programa Saúde da Família (PSF) viu-se no epicentro de uma trama complexa. Aline Flávia Leite Gonçalves teve seu carimbo de assinatura usado indevidamente, dando início a um processo de obtenção indevida de indenizações. Mesmo com a confissão do fraudador, a profissional de saúde ainda aguarda compensação moral e financeira, levantando questionamentos sobre as lacunas na reparação às vítimas.
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Em maio de 2019, dois meses após o rompimento da barragem de Córrego do Feijão, enfermeiras de Unidades Básicas de Saúde (UBS) foram autorizadas a emitir comprovantes de endereço para moradores receberem o auxílio emergencial, hoje conhecido como Programa de Transferência de Renda (PTR). Foi quando Aline descobriu as falsificações em seu carimbo. O crime, na verdade, teve início em março do mesmo ano, quando os esforços para amparar as vítimas foram intensificados.
Responsável, à época, pela equipe de técnicos de enfermagem na Unidade do bairro Progresso – a pouco mais de 20 km da Mina Córrego do Feijão –, Aline entende que esse capítulo obscuro na história de Brumadinho expõe fraturas no processo de reparação, que fica sob suspeita de fraude. “Foi um golpe duro. Trabalhei sete anos no mesmo PSF, amando o que fazia. Mas após o incidente, enfrentei ameaças, perdi meu emprego e sofro perseguição política. Não posso mais atuar como enfermeira”, lamenta ela.
Moradora na cidade desde 2011, Aline relembra que só constatou as falsificações ao ser questionada por seus chefes e pela própria Vale. E foi apontada como culpada, sem direito a defesa. “No dia do laudo grafotécnico, foi uma confusão. Eram 30 páginas para copiar entre cursivo e não cursivo, cheguei a ter inflamação nos nervos da mão direita”, relata.”Depois da fraude, fiquei mais de um ano sem trabalhar, comecei a tomar tranquilizantes”.
Aline aguarda o resultado da perícia do exame grafotécnico, análise especializada que poderá confirmar a autenticidade das assinaturas. Além disso, a data das falsificações é apontada como 19 de abril de 2019, quinta-feira da Paixão, dia em que as Unidades Básicas de Saúde não funcionam no Brasil por ser feriado. “Não fui eu quem fez. Nem a assinatura é minha, só o carimbo. Custei a entender que estavam tentando roubar na tragédia e usaram meu nome”.
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Veja o que já enviamosA repórter teve acesso à declaração escrita pelo fraudador, que apresenta discrepância evidente com a caligrafia da enfermeira. O processo, conduzido pela 02ª Promotoria de Justiça no município de Brumadinho, está em andamento, com o último registro datado de 08/01/2024. Antes disso, em 20 de dezembro de 2023, houve uma suspensão relacionada à Resolução Conjunta 05/2023, e em 04 de julho de 2023, foi pedida nova investigação.
Há ainda uma apuração de “assédio, ameaça e retaliação contra enfermeiros da rede municipal de saúde de Brumadinho, para que fossem emitidas declarações de residência falsas na cidade, para fins de recebimento de valores” a título de indenização pelo rompimento da barragem de Córrego do Feijão.
A tragédia provocada pela mineradora deixou marcas profundas na vida de Aline, impactando tanto sua carreira quanto sua esfera pessoal. A enfermeira lembra o momento em que soube do desastre, descrevendo a angústia de uma paciente cujo marido estava na mina, minutos antes do rompimento. O instante desencadeou uma série de eventos que transformaram a vida da profissional de saúde. “Quando deu meio-dia [28 minutos antes do rompimento da barragem] sentei para almoçar no PSF. Pouco tempo depois uma agente de saúde me ligou e mandou mensagem dizendo que uma paciente nossa estava desesperada no WhatsApp, falando que o marido dela estava na Mina Córrego do Feijão e que tinha acabado tudo. Ela chorava muito”.
Depois da devastação, a tragédia continuou na vida de Aline, que, com o uso fraudulento do carimbo, sofreu ameaças de morte e hostilidades da comunidade. A situação se agravou com o aumento da pressão por documentações relacionadas à Vale. Ela expôs a sobrecarga e os abusos enfrentados pelas profissionais de saúde, que passaram de cuidadoras para “meras fornecedoras de endereço”, conforme mencionado no processo encaminhado ao Coren e Cofen.
A história de Aline reflete não apenas a dor e a tragédia vividas pela população de Brumadinho, mas também evidencia a corrupção sistêmica na cidade. “E a conclusão disso tudo é que em cinco anos ninguém teve nenhum tipo de resposta ou justiça. O dinheiro comprou as vidas ceifadas e prejudicou quem tentou ser honesto”, analisa ela, que segue tentando contribuir com a comunidade, agora no projeto social Meninadança.
A reportagem entrou em contato com a assessoria de comunicação da Vale e da Prefeitura de Brumadinho. No entanto, não houve retorno de ambas as partes. O espaço segue aberto para um posicionamento.