ODS 1
Teresina cria comissão para discutir justiça climática e racismo ambiental
Capital do Piauí é a primeira cidade a ter órgão voltado a desenvolver ações de combate à crise do clima com foco nas populações mais vulneráveis
Ondas de calor, secas, enchentes e deslizamentos de terra atingem principalmente as parcelas mais vulneráveis da população. Em razão disso, a discussão em torno dos impactos da crise climática atravessa debates em torno de justiça e de racismo. Em Teresina (PI), os estudos do Plano de Ação Climática, lançado em outubro do ano passado, levaram à ampliação dos debates e ações em torno dos impactos das mudanças climáticas e, mais recentemente, à criação de uma Comissão Municipal de Justiça Climática.
A Comjuca passou a existir oficialmente por meio de decreto publicado no Diário Oficial de Teresina, em 16 de abril, e acessado pelo #Colabora através da plataforma Diários do Clima*. “Considerando o conceito de racismo ambiental, sabe-se que as mudanças climáticas e os riscos advindos afetam as pessoas de modo desigual, de modo que a população mais vulnerável está mais exposta ao agravamento das alterações climáticas”, diz o texto de criação da comissão, a primeira no Brasil voltada para discutir a relação entre mudanças climáticas e questões de justiça social e racismo ambiental.
Um ponto inovador da iniciativa está no fato de envolver diferentes secretarias e setores da administração pública, que deverão atuar em conjunto. Integram a comissão membros da: Fundação Municipal de Saúde de Teresina; da secretaria de cidadania, assistência social e políticas integradas; planejamento e coordenação; desenvolvimento econômico e turismo; políticas públicas para as mulheres; produção agropecuária; defesa civil; educação; e da coordenação especial de Direitos Humanos.
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“O intenso processo de urbanização e todo esse contexto global colocam Teresina em uma posição que nos preocupa. Teresina hoje é uma das cidades que está numa condição talvez de maior vulnerabilidade às mudanças climáticas”, aponta o pesquisador e gestor ambiental Leonardo Madeira, coordenador da Agenda 2030 na capital do Piauí.
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Veja o que já enviamosDe acordo com Madeira, a comissão surge justamente após o diagnóstico das vulnerabilidades da cidade e dos possíveis impactos em determinadas localidades e sobre grupos sociais já historicamente mais afetados por eventos extremos. “A questão climática atinge a todos indistintamente, mas de forma muito desigual”, afirma o representante da Secretaria Municipal de Planejamento e Coordenação na Comjuca.
Com 868.075 habitantes e localizada próxima à linha do Equador, Teresina já é uma das cidades mais quentes do Brasil. Ainda assim, a tendência é de que a temperatura média ao longo dos anos aumente, caso as emissões de carbono continuem no atual ritmo. A previsão é de que a média anual da cidade passe de 27°C a 32°C até 2070. Além disso, a previsão é de uma redução do volume de chuvas, o que potencializa secas e queimadas. Estas conclusões são fruto do documento “Análise de Vulnerabilidades à Mudança do Clima”, estudo feito como parte do Plano de Ação Climática de Teresina. Entre os bairros que devem ser mais afetados estão as periferias e os locais com piores índices de saneamento e infraestrutura.
Leonardo Madeira, mestre e doutor em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela UFPI, explica que, na capital do Piauí, é comum encontrar ar-condicionado até mesmo em banheiros de restaurantes. “Teresina é uma das cidades que tem o maior índice de radiação solar, radiação ultravioleta, e um dos maiores índices de câncer de pele”, acrescenta. Segundo ele, o primeiro passo para criar a comissão foi conscientizar e capacitar servidores das diferentes secretarias para entender os impactos da crise climática na cidade, em atividades que contaram com o apoio do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA).
A primeira missão da Comissão Municipal de Justiça Climática foi elaboração de um plano de trabalho, apresentado na 2° Conferência do Clima de Teresina, realizada entre 27 a 29 de maio. Além disso, Leonardo admite que um dos pontos a serem aprimorados e desenvolvidos na sequência é o diálogo e o estimula à participação das comunidades nos debates da comissão e das políticas de justiça climática.
Alternativas práticas para mitigação
Doutora em Engenharia Civil e Ambiental pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Bruna Lira mora em Teresina há pouco mais de um ano. Apesar do curto período, a professora da Universidade Federal do Piauí (UFPI) já percebeu os impactos das altas temperaturas e do grandes volume de chuvas em poucas horas e dias. Com uma economia baseada nos setores de comércio e serviços, os trabalhadores da cidade sofrem com as ondas de calor e com os alagamentos e inundações.
De acordo com a professora do Departamento de Recursos Hídricos, Geotecnia e Saneamento. Ambiental, com pesquisas voltadas para a área de obras de Terra e aterros sanitários, uma das alternativas que podem ajudar a mitigar o calor extremo é a substituição do pavimento de asfalto pelo pavimento de concreto. “Os pavimentos de concreto são mais frios e refletem mais luz solar do que os pavimentos de asfalto. Isto pode ajudar a aliviar os efeitos das ilhas de calor urbanas”, explica Bruna Lira.
Diretor de Prevenção e Mitigação da Defesa Civil do Estado do Piauí, Werton Costa, 50 anos, vive em Teresina desde o nascimento. Geógrafo e professor universitário, ele lembra que existem duas parcelas da população mais afetadas pela crise climática e a elevação da temperatura: as crianças da primeira infância e os idosos. “Porém, a gente poderia computar um rol de pessoas hipertensas, com doenças cardiovasculares, e até mesmo pessoas com indicativo de depressão. Essa condição de calor afeta toda a fisiologia humana, potencializa”, acrescenta o especialista.
Segundo Werton, a resposta do sistema de saúde local em relação a esses impactos das ondas de calor deixa a desejar em diferentes aspectos, principalmente por conta do crescimento desordenado da cidade. “Nós temos avançado muito, mas esses avanços ainda são pequenos comparados com o tamanho do desafio da máquina pública e também da sociedade”, pondera o geógrafo.
Bruna Lira aponta que uma abordagem ampla é essencial para tornar as cidades mais resilientes aos extremos do clima. Para além dos debates no âmbito da Comissão Municipal de Justiça Climática, Bruna elenca ações práticas como realocação de pessoas em áreas de risco, investimentos em sistemas de drenagem, e aumento da área verde, além de projetos arquitetônicos que privilegiem o conforto térmico. “Podem desenvolver avaliações de risco, envolver os cidadãos e implementar sistemas de alerta precoce”, complementa.
Diálogo com as periferias
Também professora da UFPI e doutora em Geociências e Meio Ambiente, Mayra Fernandes Nobre mora há mais de nove anos em Teresina e, a partir de sua experiência como moradora, ela destaca alguns pontos falhos no tratamento das questões ambientais. “Percebo esforços em busca de ações eficazes, mas não respostas. Inclusive a arborização nas vias públicas foi reduzida, de quando aqui cheguei para hoje”, revela a pesquisadora, que espera uma mudança de postura a partir da criação da Comissão Municipal de Justiça Climática.
Na avaliação feita por Mayra, a iniciativa da administração é positiva e condiz com a realidade enfrentada pela população mais vulnerável. A docente complementa com a descrição da rotina dessa população, que vive sem ar-condicionado e após enfrentar o transporte público chega: “fatigada pelo calor excessivo, não tem acesso a um ambiente climatizado e com isso passa uma noite com calor e sob a ação dos mosquitos. Esse exemplo retrata como sim, esse olhar da comissão é assertivo, quando pretende avaliar sob a perspectiva dos que mais sofrem com a crise climática”.
Nada disso, no entanto, funciona sem o diálogo com a comunidade e um olhar estratégico para as necessidades de cada bairro e comunidade. No caso de Teresina, ressalta Leonardo Madeira, o levantamento do Plano de Ação Climática permitiu perceber, por exemplo, que o bairro São Joaquim é um dos mais vulneráveis à proliferação de arboviroses: como a dengue, doença que também tem sua dinâmica afetada pelas mudanças climáticas.
Na visão do diretor da Defesa Civil estadual, Teresina precisa avançar na educação para riscos e também na conscientização da população para que não normalize os extremos do clima. Werton também elenca outros pontos cruciais do atendimento à população nesse contexto: “precisa ser acolhedor e humanizado, precisa sair do gabinete frio e avançar pelas periferias”. O especialista também cita a importância da comunicação, como uma forma de estabelecer “relação de parceria com a comunidade para poder enfrentar a crise climática de forma mais eficiente e construir, quem sabe, uma sociedade mais resiliente para o enfrentamento das mudanças climáticas”.
*O Diários do Clima (DC) é uma plataforma que agrega dados de políticas ambientais para auxiliar na pesquisa dos atos publicados por municípios brasileiros em seus Diários Oficiais. Com uso de inteligência artificial, a ferramenta pode ser utilizada para identificar os documentos mais relevantes para quem acompanha o tema. O DC foi criado por meio de uma parceria entre: Agência Envolverde, #Colabora – Jornalismo Sustentável, Eco Nordeste, InfoAmazonia, ((o)) Eco e Open Knowledge Brasil.
Micael Olegário
Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.