ODS 1
Mudanças climáticas e El Niño elevam preocupação com dengue no Brasil
Em 2023, o país registrou recorde de mortes pela doença e aumento de 20,9% no número de casos
O Brasil bateu recorde de mortes por dengue em 2023, com 1.079 óbitos pela doença. O país também registrou 1.663.113 casos de dengue no ano passado, um aumento de 20,9% em relação aos 1.374.776 confirmados em 2022, de acordo com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), divulgados pelo Ministério da Saúde, na última semana de dezembro. Especialistas ouvidos pelo #Colabora apontam a relação entre o aumento da temperatura global – causado pelas mudanças climáticas e pela influência do fenômeno El Niño – e a proliferação do vetor da doença, o mosquito Aedes aegypti, também transmissor de febre amarela, zika e chikungunya.
Segundo relatório sobre a situação global da dengue em 2023, elaborado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), foram 5 milhões de notificações em todo o mundo, com cerca de 5 mil mortes relacionadas à doença. A maioria dos casos, 80%, ocorreu na região das Américas, com destaque para o Brasil, com 2.909.404 casos suspeitos em 2023, mais da metade do total de notificações. O relatório da OMS ainda destaca que a dengue é a principal arbovirose (doença transmitida por mosquito) que afeta a América, com 500 milhões de pessoas correndo risco de serem infectadas.
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Em 2023, a temperatura média global bateu recordes e os efeitos da crise climática foram sentidos em diferentes momentos do ano e em várias regiões do Brasil, Neste contexto, contribuiu também o fenômeno natural El Niño, que no país causa secas na região norte e chuvas frequentes e volumosas na região sul. “Chuvas frequentes e calor intenso foram a dupla perfeita para a proliferação de mosquitos no Brasil”, explica Joel Henrique Ellwanger, biólogo e pesquisador do departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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Veja o que já enviamosAo ser questionado sobre os fatores ligados ao crescimento de casos de dengue no Brasil, o também biólogo Junir Antonio Lutinski e professor da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), menciona como agravantes da doença a carência de políticas públicas de gestão do lixo urbano, as fragilidades no saneamento básico no país e as descontinuidades consecutivas no Programa Nacional de Controle da Dengue (PNCD). “Dengue é mais do que uma doença, é um problema social e reflete vários aspectos da sociedade moderna, especialmente em países latinoamericanos”. Associado a esses elementos, o clima extremo se torna, no último ano, mais um fator de risco para a proliferação dos mosquitos e da doença.
De acordo com relatório do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o número de dias com calor intenso no Brasil passou de 7 para 52 por ano, isso em apenas três décadas. “No que se refere à temperatura, insetos como o mosquito Aedes aegypti têm seu desenvolvimento e metabolismo regulados pelo clima. Temperaturas entre 25 °C e 30°C são ótimas para a espécie. Mais dias no ano com estas condições, mais mosquitos no ambiente”, pontua Lutinski. O especialista também relaciona o crescimento dos casos com a questão da densidade populacional das cidades brasileiras. “O adensamento urbano, um fenômeno crescente no Brasil, cria as chamadas ‘ilhas de calor’ onde a temperatura num centro urbano pode ser até 5°C maior do que na periferia. Todo este cenário favorece muito o crescimento populacional do vetor”, destaca o biólogo.
Além das altas temperaturas e das chuvas intensas, Joel Ellwanger cita também problemas crônicos das cidades brasileiras relacionados à falta de saneamento básico, com acúmulo de água em reservatórios artificiais, principalmente restos de lixo. “Os criadouros de mosquitos nas cidades brasileiras são um problema que ainda não foi solucionado. Em conjunto (com chuvas intensas e ondas de calor), esses fatores formaram o cenário perfeito para a proliferação de mosquitos e disseminação da dengue no Brasil”, descreve Ellwanger.
Desmatamento e secas extremas também preocupam
Bióloga molecular e professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Ana Beatriz Gorini da Veiga relaciona diversos fatores com o aumento dos casos, como por exemplo a urbanização acelerada e de forma não planejada. Além disso, a especialista aponta o desmatamento como outro elemento que interfere na dinâmica de proliferação do mosquito vetor. “O aumento do desmatamento diminui o habitat natural de vários mamíferos que podem servir de hospedeiros, animais de sangue quente nos quais esses mosquitos se alimentam. Portanto, reduz o número de outros hospedeiros do mosquito, restando praticamente o ser humano”, comenta.
Joel Henrique Ellwanger ressalta a importância do combate ao desmatamento também para mitigar a emissão de gases CO² na atmosfera, principais responsáveis pela elevação da temperatura global que cria as condições perfeitas para o Aedes Aegypti se multiplicar. “A população também deve fazer sua parte, não apenas removendo potenciais criadouros de mosquitos, mas exigindo dos governantes e órgãos ambientais a expansão das ações focadas no controle das mudanças climáticas. Focar nas atividades que mais prejudicam a biodiversidade brasileira atualmente, como a criação de gado e cultivo de monoculturas, é também fundamental”, acrescenta o especialista.
De acordo com Ana Gorini, mesmo as regiões que enfrentam secas extremas podem gerar preocupação com relação à proliferação do Aedes aegypti. A bióloga explica que com a falta de chuvas, as pessoas tendem a recorrer mais ao armazenamento de água em caixas d’água e cisternas. “Esses reservatórios, por sua vez, também podem servir para a proliferação das larvas. Então, os climas extremos, tanto de muita chuva como de muita seca, acabam direta ou indiretamente contribuindo para a proliferação do mosquito”, conclui a especialista. Essa visão é compartilhada pelo professor da Unochapecó, Junir Lutinski. “Cisternas ou qualquer outro tipo de recipiente improvisado para armazenar água oferecem condições ideais para que o vetor se prolifere”.
Na visão da professora da UFCSPA, o aumento de casos de dengue no Brasil pode também estar associado a uma busca maior por atendimento pela população e a eficácia nos diagnósticos da doença. Por outro lado, muitos casos seguem não sendo notificados, portanto o número real de casos pode ser ainda muito maior. Como estratégia para diminuir o número de infecções e mortes, Ana Gorini aponta medidas de proteção individual, como uso de repelentes e mosquiteiros e adaptações estruturais, como telas em residências e políticas públicas para gestão correta do lixo.
Vacina contra a dengue
Em dezembro de 2023, o Brasil anunciou a disponibilização da primeira vacina contra a dengue através do SUS (Sistema Único de Saúde). O imunizante, chamado Qdenga, será ofertado inicialmente para públicos e regiões prioritárias a serem definidas pelo Ministério da Saúde. De acordo com Joel Ellwanger, mesmo que o imunizante não seja disponibilizado para toda a população, a novidade pode colaborar na redução dos casos de dengue, principalmente em um contexto de continuidade do El Niño em 2024.
Com a sequência do fenômeno, a tendência é de que os casos continuem em alta, principalmente na região sul do país. “Paraguai e a região norte da Argentina iniciaram 2024 já com uma transmissão viral da doença. Neste sentido, há uma tendência de que, especialmente a região Sul do Brasil”, alerta Junir Lutinski.
O biólogo da Unochapecó pondera que uma imunização em larga escala com a vacina contra a dengue demandaria uma melhor organização, além de mais recursos financeiros por parte do governo. “Imunizar a população contra a dengue não exclui o Programa de Controle vetorial já que o mosquito Aedes aegypti é capaz de transmitir uma série de outros vírus de importância sanitária, a exemplo da febre amarela, zika vírus e febre chikungunya”, complementa o pesquisador. Lutinski também menciona a dificuldade de acesso a muitas residências por agentes de combate à endemias ou agentes comunitários de saúde.
“O Programa Nacional de Controle da Dengue se baseia em dois objetivos principais: manter a população de mosquitos baixa, em menos de 1% dos imóveis; e na redução dos óbitos causados pela doença. O PNCD é ótimo na sua concepção e em seus princípios, contudo, salvo algumas situações pontuais e momentâneas, não alcançou nenhum dos objetivos propostos em nenhum município brasileiro”. Na opinião do especialista, estratégias alternativas adotadas por municípios e a descentralização das ações podem ajudar a reduzir os casos de infecção e doenças causadas pelo Aedes aegypti.
Crise climática e saúde pública
Além da dengue e de arboviroses em geral, diferentes tipos de doenças podem ser potencializados pelos efeitos das mudanças climáticas, como ondas de calor e chuvas frequentes. Joel Ellwanger cita como exemplo um estudo produzido pelo grupo de pesquisa do qual faz parte na UFRGS. A pesquisa procurou mostrar a relação das mudanças climáticas com a disseminação de doenças pelo solo em diferentes áreas de Porto Alegre.
“Climas mais quentes e úmidos serão propícios não apenas para doenças transmitidas por mosquitos. Essas condições climáticas também poderão facilitar a disseminação de parasitas transmitidos por solo contaminado, as geo-helmintíases, como ascaridíase e ancilostomose”, explica Ellwanger. No caso do estudo feito na capital gaúcha, um dos resultados aponta para a necessidade de preservação da biodiversidade do solo, justamente para evitar o surgimento dessas doenças.
Além disso, de acordo com Junir Lutinski, o Brasil também tem registrado aumento no número de acidentes envolvendo animais peçonhentos, que possuem tendência a ficar mais ativos em períodos de calor. “As doenças virais e também aquelas causadas por bactérias, fungos, outros parasitas, protozoários, elas podem sim aumentar muito com essas mudanças climáticas”. No caso do Brasil e da América Latina, a falta de saneamento adequado e o clima extremo formam o contexto perfeito para novas endemias relacionadas à dengue e outras doenças.
Micael Olegário
Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.