#RioéRua: otimismo com angu na Guanabara

A antiga barraquinha do Angu do Gomes na porta do restaurante no Largo da Prainha: febre na cidade 50 anos atrás (Foto: Oscar Valporto)

Neste ano triste, cidade perde criador de restaurante baseado em clássica receita africana, que resiste também à pandemia

Por Oscar Valporto | ODS 11 • Publicada em 28 de setembro de 2020 - 12:05 • Atualizada em 28 de setembro de 2020 - 21:09

A antiga barraquinha do Angu do Gomes na porta do restaurante no Largo da Prainha: febre na cidade 50 anos atrás (Foto: Oscar Valporto)

Eu – que nasci na Guanabara e, por isso, não tenho direito de ser pessimista – não posso imaginar o ano tão ruim como esse. A pandemia de covid-19 já matou quase 150 mil brasileiros, as queimadas nunca foram tão intensas no Pantanal e na Amazônia. Temos um presidente que parece trabalhar pelo coronavírus e pelo fogo. Temos um governador do estado a caminho do impeachment. Temos um prefeito que detesta a cidade e seu espírito. Começo cada semana imaginando qual será a nova notícia ruim: mais uma perda gigante para a cultura nacional como a de Aldir Blanc ou Sérgio Sant’Anna? mais um desastre ambiental ameaçando as onças-pintadas ou as araras-azuis? Nesta semana que passou, a má notícia foi um pequeno golpe na boemia e na baixa gastronomia carioca: morreu Basílio Pinto Moreira, um dos criadores do Angu do Gomes, clássica e tradicional iguaria que faz parte da história da cidade.

Só vi Basílio uma vez, quatro anos atrás, logo depois de voltar ao Rio após minha temporada baiana: enquanto eu almoçava no restaurante, ele estava ao lado do neto, na frente do Angu do Gomes. no Largo da Prainha, na Praça Mauá. Na época, com 87 anos, já estava longe do negócio que tornou uma marca da cidade. No começo da década de 1950, o português Manoel Gomes começou a vender seu angu – receita africana de miúdos com polenta – em uma barraquinha na Praça XV, que ainda nem tinha seu nome. Antes da década terminar, com a morte de Manoel, seu filho João Gomes e o sócio Basílio assumiram o negócio, tornaram o Angu do Gomes uma marca e multiplicaram as barraquinhas pela cidade. O ponto da Praça XV, que fiquei sabendo pioneiro, foi meu primeiro contato com o angu: nos meus tempos de estudante da UFRJ, muitas vezes, atravessei a baía para confraternizar com os colegas – as colegas, principalmente ´da UFF. Na volta, ao desembarcar na estação das barcas, o angu – com pimenta e cerveja – era um impulso para ajudar a chegar em casa.

Polenta e miúdos bovinos com linguiça: receita clássica africana, popularizada por comerciante português, resiste na gastronomia carioca (Foto: Oscar Valporto)
Polenta e miúdos bovinos com linguiça: receita clássica africana, popularizada por comerciante português, resiste na gastronomia carioca (Foto: Oscar Valporto)

Naquele tempo, comecinho dos anos 1980, o Angu do Gomes tinha mais de 50 barraquinhas pela cidade e havia inaugurado, em 1977, um restaurante no Largo de São Francisco da Prainha, que, além de servir sua clientela, tinha uma robusta cozinha que produzia angu para abastecer os pontos ambulantes espalhados pelo Rio. A crise econômica do país, que explodiu nos últimos anos da ditadura e afetou os anos iniciais da jovem democracia brasileira, levou ao fechamento das barraquinhas de angu e do restaurante em meados dos anos 1990. Durante mais de 10 anos, o Angu do Gomes ficou apenas na memória do carioca; em 2008, depois da morte de João Gomes, Rigo Duarte, neto de Basílio, e novos sócios reabriram o restaurante, em outro ponto do Largo da Prainha. O angu é receita africana; os africanos, como mostram a história de seu continente e de seus descendentes por toda parte, são exemplo de resistência.

Estive lá algumas vezes depois daquele dia em 2016. O Angu do Gomes tem, além da receita clássica com miúdos bovinos e polenta, angu só com linguiça, com frutos do mar, com carne moída, e até angu vegetariano, com berinjela e abobrinha. Também oferece clássicos petiscos dos bons botequins – moela, azeitonas, salaminho, frango a passarinho, sardinhas fritas, bolinhos de bacalhau – para acompanhar cervejas e cachaças variadas. E o angu também inspira opções menos tradicionais: tem bolinho de angu com rabada, com gorgonzola e com camarão. A receita clássica parece a mesma das madrugadas de quarenta atrás: polenta bem mole, os miúdos encharcados de molho, pedacinhos de linguiça para acompanhar.

História do Angu do Gomes estampada nas paredes do restaurante: legado de comida honesta e barata (Foto: Oscar Valporto)
História do Angu do Gomes estampada nas paredes do restaurante: legado de comida honesta e barata (Foto: Oscar Valporto)

A área externa do restaurante tem vista para a estátua em bronze da dançarina e coreógrafa Mercedes Baptista, precursora e incentivadora das danças afro-brasileiras, e para os sobrados nem sempre bem tratados do largo. Dou outro lado da praça, fica o restaurante – e bar, e palco para roda de samba – Casa Porto, do intrépido Rafael Vidal; os dois estabelecimentos resistiram aos consequências da pandemia de covid-19. Infelizmente, o mesmo não aconteceu com a filial de Botafogo do Angu do Gomes que, aberta em 2018, fechou as portas dois meses atrás. Basílio Moreira, que partiu aos 91 anos, tinha orgulho do legado que ele e seu sócio João Gomes deixaram de comida barata e honesta que está na memória da cidade – em frente ao restaurante, tem uma réplica da histórica barraquinha de angu.

O Sindicato de Bares e Restaurantes calculam que, só aqui na capital, mais de 800 casas fecharam e 11 mil funcionários foram demitidos. O desastrosa administração federal prolongou a crise sanitária e, como consequência, prolongou a crise econômico. Eu – que nasci na Guanabara – sou otimista. O Rio, como o Angu do Gomes, resistirá.

#RioéRua

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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