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Veja o que já enviamosO desbotado verde e amarelo da Copa do Mundo
Faltavam menos de duas semanas para a Copa do Mundo quando estive na Argentina. E foi só em Buenos Aires que me dei conta realmente de que faltavam menos de duas semanas para a Copa do Mundo. Antes dos brasileiros chegarem, os enviados especiais das emissoras argentinas já estavam no Qatar, entrevistando torcedores e promovendo debates sobre a lista dos 26 convocados que ainda não havia sido divulgada. As bancas de jornais e os quiosques vendiam pôsters de Messi (e de Maradona) e edições especiais sobre o Mundial de futebol. Bares anunciavam promoções para os dias de jogos. A seleção tomava conta das conversas, a lista, quando divulgada, ocupou as primeiras páginas do La Nacion e do Clárin, os mais tradicionais diários do país. Argentinos já circulavam com camisas de Messi (e de Maradona).
Leu essa? A mais infame de todas as Copas (junto com uma outra)
Esse clima ainda estava ausente das ruas do Rio quando retornei a uma semana da abertura da Copa do Mundo – e não era apenas porque golpistas vestidos com a camisa amarela da seleção estavam acampados em frente a quartéis pedindo intervenção militar para impedir a posse do presidente eleito. Uma Copa do Mundo logo depois das eleições talvez tenha desviado o foco do futebol. Talvez a atual seleção não desperte mais paixões e polêmicas – a convocação de Daniel Alves para a reserva foi o tema principal dos debates sobre a lista. de Tite (aproveito para dizer o que o técnico não pode: o veterano de 39 anos foi convocado pela falta de alternativas mais talentosas).
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Veja o que já enviamosE foi ao chegar ao Brasil que fiquei sabendo que, na Copa de 2022, não vai ter Alzirão. Explico a quem não é do Rio: a Rua Alzira Brandão, na Tijuca, é palco, desde o Mundial de 1978, de reuniões festivas para torcer pela seleção brasileira. Fechava-se a via, enfeitava-se os prédios, ocupava-se as calçadas, colocava-se grandes aparelhos de TV e depois telões para a galera. Mais de um mês antes, os moradores da região começavam a decorar a rua com bandeiras, a pintar o asfalto com as cores nacionais. O “estádio do Alzirão” virou uma tradição carioca no Mundial. O cancelamento da festa é mais um sinal de como anda desbotado o verde e amarelo.
Torcer na rua, acompanhado por amigos ou desconhecidos, faz parte dos hábitos do Rio desde 1938, quando a seleção disputou a Copa do Mundo da França. Um pool de emissoras (duas do Rio, duas de São Paulo) transmitiu os jogos do Brasil de Leônidas da Silva. No Rio de Janeiro, ao longo da Avenida Rio Branco e nas ruas comerciais do Centro, lojas e repartições públicas botavam rádios nas calçadas e nas janelas para que torcedores pudessem acompanhar as partidas. O Mundial seguinte foi em 1950, no Brasil: o Rio – como outras cidades do país – ganhou bandeiras nas janelas e nas ruas, lojas e casas enfeitadas, tudo para comemorar o título que não veio. O rádio que contava a história das partidas para quem não podia ir aos estádios; nas ruas, torcedores acompanhavam os jogos, por aparelhos colocados nas varandas e nas calçadas ou por alto-falantes em praças do subúrbios.
Esse hábito de acompanhar as partidas na rua, pelo rádio, com a cidade embandeirada prosseguiu nas Copas de 1958 e 1962 quando o Brasil foi bicampeão mundial com conquistas na Suécia e no Chile. Na final da Copa de 58, a TV Tupi, sem tecnologia para transmitir, ao vivo, por satélite da Suécia, ficou durante 90 minutos com imagens ao vivo da torcida na Cinelândia, acompanhando o jogo pelos rádios dos bares, e o áudio da transmissão pela Rádio Tupi. Depois vieram, desde 1970, as transmissões ao vivo pela TV, mas a cidade enfeitada de verde e amarelo, a animação generalizada e essas festas na rua, antes e depois dos jogos, criavam um clima inconfundível de Copa do Mundo.
As razões para a ausência da festa no Alzirão ajudam a explicar o desbotado do verde e amarelo. A nota nas redes sociais – divulgada pela Associação Recreativa e Cultural Turma do Alzirão – explica que não vai ter evento por falta de patrocínio: o que nasceu como uma festa de confraternização esportiva entre vizinhos virou um empreendimento. Da mesma forma que a Copa do Mundo: o futebol virou um grande negócio globalizado. Os jogadores da seleção viraram popstars milionários, atletas profissionais de clubes europeus, com quem muitos torcedores brasileiros não se identificam e até rejeitam.
A outra razão para o fracasso da festa tem relação com a primeira, mas também reflete o momento do país. Houve um racha na diretoria da entidade do Alzirão, criada exatamente para captar recursos para a festa, e a briga interna atrapalhou a viabilização da festa para a torcida na rua. O Brasil também vive um racha com o clima de ódio promovido pela extrema-direita e incentivado pelo presidente derrotado na tentativa de reeleição: eles transformaram a camisa amarela da seleção brasileira em uniforme de combate aos diferentes e, agora, à própria democracia. Nada desbota mais o verde e amarelo do que seu uso por quem propaga ódio, violência e preconceito – aliás, desde 2013.
Quando o Mundial começou, já havia mais de animação e entusiasmo pela seleção, começaram a aparecer as camisas amarelas nas bancas dos ambulantes. Até o pessoal do Alzirão pendurou uma antiga bandeira para lembrar dos bons tempos. Com o começo dos jogos da seleção, a tradição de ver os jogos em família e com os amigos, e também, nas ruas, ao lado desconhecidos, retornou com força. Pode ser que a jovem seleção brasileira – com seu futebol potencialmente vistoso, com seus jogadores das mais diferentes origens (muitos vítimas de racismo pelo mundo afora) – consiga ajudar a retomar esse espírito de festa e de confraternização que foi visto até naqueles mundiais onde o Brasil se lascou de verde e amarelo. É torcer para que, muito além da Copa do Mundo, o Brasil possa superar o clima de ódio e divisão e recuperar suas cores e seu brilho.
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