Refugiados recebidos a faca (e garfo)

Guardanapo com o nome da Síria e da Alemanha: iniciativa cidadã para acolher refugiados passa pela gastronomia

Famílias alemães tentam integrar recém-chegados ao país com convites para jantar

Por Renata Malkes | ODS 11 • Publicada em 2 de janeiro de 2016 - 10:37 • Atualizada em 5 de janeiro de 2016 - 09:52

Guardanapo com o nome da Síria e da Alemanha: iniciativa cidadã para acolher refugiados passa pela gastronomia
Guardanapo com o nome da Síria e da Alemanha: iniciativa cidadã para acolher refugiados passa pela gastronomia
Guardanapo com os nomes da Síria e da Alemanha: alemães oferecem jantares a refugiados

Um esforço considerado surpreendente para receber refugiados levou a chanceler federal alemã, Angela Merkel, a ser eleita a pessoa do ano pela revista “Time”.  A escolha comprovou que, à sombra de dois grandes conflitos, dos horrores do nazismo e da divisão que mergulhou parte da Alemanha numa ditadura comunista durante a Guerra Fria, a defesa de uma sociedade multicultural é mais do que simples bandeira política, mesmo em um governo conservador como o da CDU (União Democrática Cristã) de Merkel. Trata-se de obsessão nacional. E num ano onde cerca de 1 milhão de refugiados desembarcaram em território alemão, o país mais rico da Europa recorre à criatividade para integrar os recém-chegados. Às vezes, à base da faca – e do garfo. É essa a aposta do projeto Ich lade Dich ein (“Eu te convido”) para fazer os refugiados se sentirem acolhidos na nova terra: através de convites para jantar em casas de famílias alemãs.

A iniciativa nasceu longe dos modismos da cosmopolita Berlim, mas na pequena Bonn, a ex-capital da antiga Alemanha Ocidental. Nessa cidade de cerca de 300 mil habitantes, considerada bastante conservadora, está concentrada, segundo a imprensa alemã, a maior comunidade salafista do país, o que faz muitos teutônicos olharem com grande desconfiança para a crescente população muçulmana que chega fugindo de conflitos em países como Síria, Iraque e Afeganistão. Nada disso, porém, impediu a jornalista búlgara Mariya Ilcheva, de 34 anos, de se mobilizar para ajudar na recepção aos novos moradores.

Mariya emigrou em 2000 para estudar e, ao perceber a crise gerada pela onda migratória, recordou das próprias dificuldades para se adaptar à vida germânica. No início do ano, decidiu, então, criar um site e uma página no Facebook onde famílias locais pudessem se cadastrar como anfitriões para receber visitas de refugiados em casa. Para participar, basta preencher uma ficha, indicar quantas pessoas o anfitrião pode receber, marcar uma data e, claro, estar disposto a lidar com panelas e temperos. A equipe, então, trata de cruzar as informações com outro cadastro, o de interessados na experiência. Afinal, à mesa, medos e preconceitos dão lugar a bate-papo, trocas de experiências, aprendizado, boa comida e risadas.

“Há mais de um ano, após o nascimento da minha filha, quis me engajar em algum projeto social. Minha própria experiência me levou a isso. Quando cheguei à Alemanha, tive muitas dificuldades. Não conseguia falar a língua, não tinha amigos e só podia trabalhar nas férias. Eu me dei conta de que somente muitos anos depois recebi pela primeira vez um convite para jantar na casa de uma família alemã. O que eu quero é ajudar as pessoas e encorajá-las. É muito difícil começar a vida numa terra nova, numa nova língua”, diz Mariya ao “Colabora”.

 

Foi simplesmente emocionante poder conhecer essas pessoas tão carinhosas, amigas. No início ficamos nervosos, porque não sabíamos o que esperar. Tínhamos trocado contatos e algumas fotos de antemão, mas a ansiedade passou rápido.

Mais de 150 jantares promovidos pelo projeto já aconteceram neste ano. E a iniciativa cresceu. Há mais famílias cadastradas para receber visitantes do que recém-chegados interessados em serem recebidos. Mariya conta agora com a ajuda de mais três voluntárias para divulgar o projeto nas redes sociais e percorrer os cursos de alemão na cidade, de olho no recrutamento de novos hóspedes para uma verdadeira experiência alemã à mesa. Ela reforça ainda que, hoje, o projeto visa à integração não somente de refugiados políticos, mas de todo migrante que chega à Alemanha.

“Já tivemos até dois convidados do Brasil. O projeto não é apenas para os refugiados, mas para que todos os migrantes e os próprios alemães saiam ganhando. Os alemães não são frios como se pensa, mas são cautelosos, reservados. Eles não têm a mesma espontaneidade que nós, na Bulgária, onde está todo mundo do lado de fora, na rua, marcando um café ou uma cerveja. Aqui em Bonn as coisas funcionam com planejamento. Você marca um evento com dias ou semanas de antecedência. Por isso, acho que o projeto é uma ótima oportunidade também para os alemães. Eles são muito solícitos, querem ajudar, têm curiosidade sobre outras culturas, mas não sabem como proceder”, garante Mariya.

A estudante Helena (à esquerda) com o casal Othman e Zalikha
A estudante Helena (à esquerda) com o casal Othman e Zalikha

E não é só a barriga que fica cheia nesses encontros até então inusitados. Mas a cabeça, fervilhando de histórias como a do sírio Nidal, de 29 anos, que há um ano e meio enfrentou uma odisseia de mais de um mês de sua cidade natal, Homs, para chegar a Bonn. Ele temia ser obrigado a se alistar no Exército para combater a insurgência que tentava derrubar o regime de Bashar al-Assad na Síria. Com uma pequena mala, fugiu para a Turquia, pegou um avião até a Argélia e seguiu pelo deserto até alcançar a Líbia, onde finalmente embarcou num barco rumo à Itália. Por pura sorte, diz o refugiado, acabou parando na Alemanha.

“Não tínhamos nada para comer, só queijo. Durante 13 dias foi o que comemos. Para mim, estava claro que se eu ficasse na Síria, iria para o Exército. Ou ia ser morto ou teria que matar outras pessoas. Eu não queria isso”, contou Nidal para sua anfitriã, Nina, num encontro registrado pela agência “Deutsche Welle”.

As histórias são muitas. E não param de surpreender anfitriões alemães como a estudante Helena, que recebeu em sua casa o casal Othman e Zalikha, também da Síria. E o casal Vanessa e Chris, que, junto com a filha Mia, de apenas 2 anos, abriu as portas de sua casa para receber uma família sérvia para o jantar. Ambos já fazem planos para repetir a experiência com os novos amigos estrangeiros. Afinal, a expectativa é de que o número de requerentes de asilo aumente em 2016 e coloque à prova a promessa maior da chanceler federal Angela Merkel, que estampou manchetes de jornal mundo afora meses atrás com as palvras wir schaffen das (“Nós vamos conseguir”).

“Foi simplesmente emocionante poder conhecer essas pessoas tão carinhosas, amigas. No início, ficamos nervosos porque não sabíamos o que esperar. Tínhamos trocado contatos e algumas fotos de antemão, mas a ansiedade passou rápido. O lugar de onde viemos, a língua que falamos e o tempo que vivemos aqui não têm importância. Passamos uma noite agradável e vamos nos encontrar de novo. Mesmo que haja algum imprevisto e as pessoas não queiram mais se ver, que importância tem isso? Esses encontros nos fazem ganhar muito mais do que perder”, afirma Vanessa.

Renata Malkes

Carioca nada da gema, na Alemanha desde 2016. Mestre em Estudos de Paz e Guerra pela Universidade de Magdeburg. Jornalista, inconformista e flamenguista. Mochileira e cervejeira. Ex-correspondente do jornal O Globo no Oriente Médio e da alemã Deutsche Welle no Brasil. Contadora de 'causos', mantém as antenas ligadas em ciência, direitos humanos e política internacional.

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