Neste Brasil, onde 122 pessoas trans e travestis foram vítimas de assassinato em 2024, foi realizado, nesta semana inicial de fevereiro, o 1º Seminário Nacional LGBTQIA+ de Fé – com representantes de 11 tradições religiosas. O foco do encontro foi o enfrentamento da LGBTfobia e a luta contra os fundamentalismos. “É no seio do cristianismo tradicional e hegemônico que mora a semente de todos esses discursos de ódio que negam a integralidade do LGBT à experiência da fé, que é o que a gente chama de uma cidadania religiosa”, afirmou a teóloga queer Ana Ester, doutora e mestra em Ciências da Religião, pela PUC Minas, que chegou a ser ordenada clériga pelas Igrejas da Comunidade Metropolitana, uma denominação cristã nascida nos Estados Unidos nos anos 1960.
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Ana Ester dividiu com a pesquisadora Giovanna Sarto a curadoria do seminário que discutiu – na principal biblioteca pública do Rio de Janeiro, estado onde no primeiro dia do mês, uma mulher trans e um amigo foram feridas a faca em ataque homofóbico no município de Nova Frirburgo – o enfrentamento aos fundamentalismos a partir da ética da diversidade; o diálogo inter-religioso e a política da aproximação, a Biblia e a diversidade sexual e de gênero; terapias de reversão; e os diversos tipos de fundamentalismo religioso. “Foi imperativo para mim convidar outras tradições de fé que já comungam da ideia da sexualidade e gênero de uma maneira ou outra, acolhendo, incluindo a diversidade”, explicou a teóloga mineira.
A gente sonhou esse evento antes do retorno do Trump, porque já havia sinais de um retorno desse fundamentalismo ao governo. E é um receio que obviamente a gente tem aqui no Brasil também. Porque a gente vê que, de alguma forma, a direita se articula por meio de mentiras que precisam ser combatidas
Ao final do seminário, foi divulgada a a Carta do Rio de Janeiro contra a LGBTfobia, destinada a políticos e autoridades, com o objetivo de incentivar políticas públicas de defesa à vida. O encontro – iniciativa do Fundo Positivo, organização que mobiliza recursos, por meio de fontes financeiras de apoio, e repassa a entidades sociais através de editais públicos – teve a participação do Pai Rodney de Oxóssi, babalorixá e antropólogo, do pastor evangélico Henrique Vieira, deputado federal pelo Psol, do reverendo Bob Luís Botelho, clérigo pela Iglesia Antigua de Las Américas, da professora Fabíola Oliveira, muçulmana, do teólogo Christiano Valério, do historiador e babalawô Ivanir dos Santos, e de ativistas do movimento LGBTQIA+ como Jacque Chanel, Lucas Dantas e Fred Nicácio.
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Veja o que já enviamosEntre um debate e outro do seminário, a mineira Ana Ester Pádua Freire, formada em Teologia pelo Instituto Metodista Izabela Hendrix e hoje pequisadora do grupo Indecências – Religião, gênero e sexualidade (ReGeSex), da Universidade Federal de Juiz de Fora, deu uma breve entrevista ao #Colabora, preocupada com a ampliação deste debate entre as religiosidades e a comunidade LGBTQIA+ sobre as mais diversas questões. “É preciso ter uma visão interseccional dessas questões que estão sendo suscitadas aqui”, afirmou.

#Colabora – Qual a importância do 1º Seminário Nacional LGBTQIA+ de Fé neste momento?
Ana Ester – O objetivo é fomentar uma rede de discussões que atravessem duas perspectivas, nossas enquanto humanos: gênero e sexualidade e a questão da fé. Esse é um evento que, em princípio, olhando para a ideia de LGBT+, a gente acha que vai tratar de diversidade sexual e de gênero. Mas não apenas – porque eu acho que o grande diferencial que esse seminário nos oferece é o espaço da interreligiosidade. A gente tem aqui não somente pessoas LGBTs, mas também muitas pessoas aliadas, que se encontram no ativismo ou dentro da academia, com produção, que tem voltado para as questões do gênero e sexualidade; são aliados, parte desse movimento. E por quê? Porque a gente acredita que esse seminário propicia um espaço seguro e responsável para o diálogo entre as religiões e entre a diversidade sexual e de gênero, oferecendo uma ferramenta fundamental na disputa das contranarrativas de ódio. Essas narrativas de ódio tem suscitado o que a gente pode compreender como o neofascismo, nessa realidade nossa que tem sido marcada pelo reacionarismo e o conservadorismo.
#Colabora – As organizações religiosas são, muitas vezes, fonte de preconceito, violência e perseguição contra a comunidade LGBTQIA+ – o próprio #Colabora publicou uma série de reportagens, mostrando essa realidade. Essa é uma preocupação central dos debates?
Obviamente, a gente está pensando em políticas públicas que nos defendam, porque, afinal de contas, há decisões do Supremo em nosso favor, como, por exemplo, o casamento igualitário. Mas a gente não tem leis que nos acolham nas questões que dizem respeito às nossas individualidades e às nossas identidades enquanto sujeitos LGBT. Mas eu acho que, acima de tudo, o que a gente pode oferecer aqui é esperança. Porque a gente está trabalhando no campo do sagrado, do místico, do religioso. E trabalhar com a esperança é trabalhar com a ideia estética de que é possível construir um outro mundo possível
Ana Ester – Com certeza, principalmente ao falarmos do que a gente chama de cristianismo tradicional e hegemônico. Como parte da curadoria e enquanto uma clériga cristã, foi imperativo para mim convidar outras tradições de fé que já comungam da ideia da sexualidade e gênero de uma maneira ou outra, acolhendo, incluindo a diversidade. É no seio do cristianismo tradicional e hegemônico que mora a semente de todos esses discursos de ódio que negam a integralidade do LGBT à experiência da fé, o que a gente chama de uma cidadania religiosa. Por isso, temos aqui um grupo de trabalho, por exemplo, conversando sobre o que foi chamado no Brasil de cura gay, que a gente também chama de terapias de reversão, porque temos histórias de pessoas aqui que foram aprisionadas durante anos por igrejas, que foram violentadas sistematicamente, espiritualmente. A ideia foi juntar um grupo de pessoas que estão de alguma forma ligadas a essa temática para que a gente possa levantar saídas para esses argumentos falaciosos dessa igreja tradicional.
#Colabora – Você teme uma força maior dessa visão fundamentalista em relação à comunidade LGBTQIA+ após a nova eleição de Donald Trump nos Estados Unidos?
Ana Ester – A gente sonhou esse evento antes do retorno do Trump, porque já havia sinais de um retorno desse fundamentalismo ao governo. E é um receio que obviamente a gente tem aqui no Brasil também. Porque a gente vê que, de alguma forma, a direita se articula por meio de mentiras que precisam ser combatidas. Eu acho que existe um exercício nosso, enquanto ativistas, de reforçar a polarização. Porque a gente está sempre mediando, tentando encontrar um caminho do meio, mas eu acho que é importante sinalizar que a gente está numa direção completamente oposta do que está sendo dito e feito, nacional e internacionalmente, em relação às pessoas LGBTs ou as conhecidas como minorias sociais. As discussões obviamente vão passar por questões de classe, de raça, e não somente de gênero e sexualidade. É preciso ter uma visão interseccional dessas questões que estão sendo suscitadas aqui. Porque a gente acredita que, esse fomento de realçar a diversidade, é uma das bases para a construção de redes solidárias, para um enfrentamento do que a gente não só passou, está escutando agora, mas que provavelmente também vai enfrentar num futuro muito próximo.
#Colabora – Um dos objetivos é garantir essa cidadania religiosa para as pessoas LGBTs? De que forma?
Ana Ester – Obviamente, a gente está pensando em políticas públicas que nos defendam, porque, afinal de contas, há decisões do Supremo em nosso favor, como, por exemplo, o casamento igualitário. Mas a gente não tem leis que nos acolham nas questões que dizem respeito às nossas individualidades e às nossas identidades enquanto sujeitos LGBT. Mas eu acho que, acima de tudo, o que a gente pode oferecer aqui é esperança. Porque a gente está trabalhando no campo do sagrado, do místico, do religioso. E trabalhar com a esperança é trabalhar com a ideia estética de que é possível construir um outro mundo possível. Um outro mundo possível pode ser construído apesar de tudo o que está acontecendo. Porque o que o mundo nos oferece hoje é fundamentalismo religioso, conservadorismo, o capitalismo; enfim, é retirar de nós a imaginação. E a gente está aqui querendo oferecer a essas pessoas um espaço para que elas imaginem e reimaginem uma outra realidade. Então eu acho que a gente vai fazer uma disputa estética nesse momento. E a fé vai ser fundamental para isso. Porque o que tem sido dito, no senso comum, é que não, a religião não serve para nada, ela aliena. Mas o que a gente está tentando mostrar é que é possível um outro lado dessa moeda, que é uma experiência religiosa resgatadora das individualidades e acima de tudo libertadora. Onde a gente bebe aqui – enquanto cristã, eu falo isso – é da Teologia da Libertação. A gente está trazendo um cenário que foi construído à época da ditadura, de resistência, trazendo para os nossos dias e assimilando ele a partir das necessidades que nos atravessam.
#Colabora – É possível então aproximar as pessoas LGBTs da religião apesar do conservadorismo de muitas organizações religiosas?
Ana Ester – O que a gente percebe, principalmente do ponto de vista da academia, é o que é chamado de trânsito religioso. A gente vê muitas pessoas LGBTs sendo excluídas da comunidade cristã de fé e aderindo a outras tradições religiosas, como, por exemplo, as comunidades tradicionais de terreiro, as religiões de matriz africana. Muitas delas têm um histórico de acolhimento a essas pessoas. A gente teve hoje aqui testemunho da Marina, que é do Fundo Positivo, que ela contou que ela fez a transição de gênero dela dentro de um terreiro, com o acolhimento daquele grupo. O que a gente quer não é garantir o retorno dessas pessoas à sua igreja, a uma religião, mas garantir que, se elas quiserem voltar, há a possibilidade. Não é uma conversão à igreja, mas uma conversão a respeito da dignidade humana, ao respeito à cidadania religiosa das pessoas LGBTs.