“Véia com TEA”: a luta de autistas idosos por escuta e direitos

Dados do IBGE apontam que existem mais de 300 mil pessoas autistas com 60 anos ou mais no Brasil. Políticas de inclusão esquecem o envelhecimento

Por Micael Olegário | ODS 10
Publicada em 14 de agosto de 2025 - 09:37  -  Atualizada em 14 de agosto de 2025 - 09:48
Tempo de leitura: 8 min

Dolores usa o nome “Véia com TEA para chamar atenção para o autismo em pessoas idosas – (Foto: Reprodução)

“As pessoas não sabem que existem autistas idosos”. A afirmação é da “Véia com TEA”, nome usado por Dolores Sala, 64 anos, para reivindicar direitos e falar sobre o tema nas redes sociais. Marginalizadas por grande parte da sociedade, as pessoas idosas dificilmente recebem diagnósticos que permitam reconhecer melhor suas características e condições. O resultado é a quase inexistência de políticas públicas que considerem o envelhecimento de autistas e de outras pessoas atípicas.

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Moradora de São Paulo (SP), Dolores vivenciou na prática a falta de preparo dos serviços de saúde em lidar com o Transtorno do Espectro Autista (TEA) em pessoas idosas. “Ouvi de uma psiquiatra, dentro de uma Unidade Básica de Saúde, que autismo só ‘dá’ em criança”, conta. Em 2006, quando um colega recebeu o diagnóstico de síndrome de Asperger (um dos nomes pelo qual o autismo era conhecido), Dolores começou a pesquisar sobre o assunto por desconfiar que tinha características parecidas. 

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Porém, a busca pelo diagnóstico teve início em 2021, motivada pela inclusão do autismo entre as categorias avaliadas no Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O diagnóstico demorou dois anos e veio após um processo cansativo com diversas consultas a sete diferentes profissionais. “Os autistas envelhecem e essa é uma questão de saúde pública que temos que enfrentar. Se não tem diagnóstico, não tem estatística e não tem política pública”, pontua Dolores.

De acordo com os dados do Censo 2022, 2,4 milhões de pessoas foram identificadas como autistas no Brasil. A maior prevalência do diagnóstico é entre crianças e jovens – 1,1 milhão de pessoas autistas têm até 14 anos. Porém, os mesmos dados identificaram 306.835 pessoas autistas com 60 anos ou mais, sendo cerca de 136 mil com 70 anos ou mais de idade.

Autistas adultos e idosos, principalmente pelo histórico de vida, são pessoas maltratadas, desconfiadas e inseguras por tudo aquilo que viveram e sofreram em relação às dificuldades de serem ouvidos e compreendidos

Weber Abrahão Júnior
Advogado e pesquisador

“Sabemos que o idoso no Brasil é empurrado para fora da vida social, por conta de aposentadoria com valores ridículos ou por conta de abusos familiares”, explica Weber Abrahão Júnior, 61 anos. Segundo ele, o contexto sócio-econômico e a própria trajetória de vida de muitas pessoas acaba por reprimir a busca pelo diagnóstico e mesmo a compreensão do autismo, não como uma doença e sim como uma neurodiversidade. 

“Se imaginar a geração idosa de hoje, no meu caso, com 61 anos, e de pessoas mais velhas, vivemos a nossa infância e adolescência na ditadura militar, um período de desconhecimento. A nossa formação intelectual, mental, afetiva e emocional, muitas vezes não nos permite reivindicar direitos”, complementa Weber. Professor aposentado e advogado, ele mora em Uberlândia (MG) e reconheceu o autismo aos 59 anos, durante o período de isolamento na pandemia de Covid-19 e após o diagnóstico do filho.

1° Conferência TEA+60

Ao buscar o diagnóstico, Dolores percebeu os desafios enfrentados por muitas outras pessoas idosas autistas, muitas vezes, tratadas como se tivessem depressão, ansiedade ou outras doenças. “Não passa pela cabeça dos profissionais que aquele idoso, uma das possibilidades, uma das hipóteses de diagnóstico seria o autismo”, descreve ela.

Ao lado de outras pessoas autistas idosas, Dolores ajudou a organizar a 1° Conferência TEA+60. O evento foi realizado na Câmara de Vereadores de São Paulo em julho. “Autismo não tem cara, autismo não tem idade. É urgente garantir também aos idosos o direito a um diagnóstico fundamentado numa avaliação aprofundada e consequentemente aos tratamentos, à medicação e às adaptações necessárias”, aponta trecho de documento produzido como resultado da iniciativa.

Uma das características do autismo é a dificuldade em lidar com situações de estresse comuns na sociedade, como a espera para atendimento em uma unidade de saúde. A exposição a essas situações pode desencadear crises e surtos, independente da idade e mesmo do nível de suporte, uma vez que estes podem variar (uma pessoa autista com nível de suporte 1 pode se comportar como nível 2 em determinada situação).

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Segundo Dolores, a falta de preparo e adaptação, principalmente na saúde pública, é uma das situações que causa mais sofrimento em pessoas idosas autistas. “Você está na sala de espera e não sabe se você vai ser chamado dali a 10 minutos ou em 2 horas. E você não sabe nem de onde vai vir esse chamado”, exemplifica. Ela também observa uma lacuna na realização de mais pesquisas científicas sobre o autismo em pessoas idosas.

Dolores destaca também os desafios de autistas de grupos vulneráveis, como pessoas em situação de rua e dependentes químicos. O tema tem sido um dos seus hiperfocos (interesse intenso e duradouro por uma temática). “Pessoas com mais recursos, instrução e rede acabam achando caminhos (para o diagnóstico). Mas a maioria não”, pontua ela, ao relacionar o tema com as ideações e taxas de suicídio entre autistas.

Weber em congresso de filosofia; advogado começou a pesquisar sobre autismo após diagnóstico (Foto: Arquivo Pessoal)

PL pretende facilitar diagnóstico

Proposto pelo deputado Zé Haroldo Cathedral (PSD/RR), o Projeto de Lei 4540/2023 pretende alterar a Lei Berenice Piana para incentivar a realização da investigação diagnóstica do transtorno do espectro autista (TEA) em pessoas adultas e idosas. O projeto recebeu parecer favorável na Comissão de Direitos Humanos em julho de 2024 e, desde então, aguarda designação de relator na Comissão de Assuntos Sociais.

O autismo em pessoas idosas também foi tema de audiência pública na Câmara em abril do ano passado. O evento foi promovido pela Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa e teve participação de diferentes entidades da sociedade civil e especialistas envolvidos com o assunto, mas sem outros desdobramentos.

“O que é mais fácil, adequar o autista a um padrão de normalidade de fala e de conduta para que ele pareça normal ou criar condições para que autistas e não autistas desenvolvam uma capacidade de comunicação que passe pelo respeito e o direito que o outro tem de ser diferente?”, questiona Weber Abrahão. Como advogado, ele atua com pessoas autistas idosas que buscam seus direitos e observa as dificuldades geradas pela falta de diagnóstico e de conhecimento sobre o tema. 

Outro aspecto mencionado por Weber é o receio que muitas pessoas sentem de ter um rótulo e, consequentemente, sofrer com preconceitos, como o capacitismo. “Tenho clientes que sabem da sua condição e entendem as suas estranhezas, mas se recusam a investigar a sua condição de neurodiversidade em função do emprego, da família ou dos amigos”, comenta.

Escuta e visibilidade

Para Weber, a falta de sensibilidade da sociedade é um dos principais entraves para a comunicação de pessoas autistas. Como exemplo, o professor aposentado cita as ironias e frases com duplo sentido com as quais neurodivergentes possuem dificuldades. “Eu passei a vida inteira sendo chamado de estranho e esquisito, sempre me senti muito deslocado”, recorda Weber, sobre essas dificuldades.

Além da advocacia, Weber também faz graduação em psicologia e pesquisa sobre autismo no doutorado em filosofia. “Autistas adultos e idosos, principalmente pelo histórico de vida, são pessoas maltratadas, desconfiadas e inseguras por tudo aquilo que viveram e sofreram em relação às dificuldades de serem ouvidos e compreendidos”, aponta ele, ao mencionar a luta pelo diagnóstico em idades avançadas.

Segundo ele, a escuta ativa é um dos elementos que pode ajudar a vencer essas barreiras e ajudar na mobilização da sociedade em prol de políticas públicas para autistas idosos. O advogado também se coloca à disposição para ajudar outras pessoas e ou associações ligadas ao tema, pelo e-mail: advocaciaweber@gmail.com ou pelo Instagram @weberabrahaojr_papodeautista.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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