“Recontar histórias”: como a arqueologia pode contribuir para uma educação antirracista

Pesquisadores fazem análise do acervo Africano e Afro-brasileiro do MAE-USP. Foto Ader Gotardo

Desenvolvido pela USP, material educativo que aborda civilização africana e afro-brasileira ajuda a combater o racismo na sociedade

Por Adriana Terra | ODS 10 • Publicada em 9 de novembro de 2023 - 09:37 • Atualizada em 19 de novembro de 2023 - 19:32

Pesquisadores fazem análise do acervo Africano e Afro-brasileiro do MAE-USP. Foto Ader Gotardo

(São Paulo, SP) – Poder “sonhar outros passados”. Essa é uma das forças que a arqueologia carrega e que pode ajudar a combater o racismo na sociedade, crê Maurício André da Silva. “A materialidade nos permite recontar histórias”, completa. Educador do Museu de Arqueologia e Etnografia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), Maurício é um dos coordenadores do kit educativo africano e afro-brasileiro que a instituição está produzindo pela primeira vez. Por dois anos, um grupo de pesquisadores irá se debruçar em acervos, seleção e reprodução de peças a fim de revelar artefatos e tecnologias do povo negro.

Voltado para a educação básica, o kit será composto por uma maleta com dez réplicas de objetos que falam sobre a civilização africana e afro-brasileira, uma publicação com textos de especialistas e didáticos, audioguia e videoguia (veja exemplos de outros projetos como esse aqui). O kit poderá ser emprestado por professores por até 15 dias mediante solicitação ao museu universitário e, após uma formação sobre o conteúdo, usado em aulas como de história, por exemplo. Haverá seis modelos idênticos de kit disponíveis.

O desejo de realizar esse projeto é antigo. Por duas décadas, uma professora da instituição tentou colocar um material nesses moldes no mundo, o que só foi viabilizado com um financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico obtido em 2022. Maurício conta que a demanda por materiais que falassem sobre a civilização africana veio, também, de professores que usam as maquetes do museu em sala de aula.

Em um país de maioria negra, uma iniciativa como essa demorou a acontecer. Não é por acaso. Quando a arqueóloga Patrícia Marinho entrou no curso de Ciências Sociais da USP, em 1996, ela contava nos dedos o número de pessoas pretas e pardas estudando na faculdade, ausência que se refletia também nos conteúdos. “A vivência de pessoas negras, quilombolas e indígenas traz novos conhecimentos baseados na ancestralidade, rompendo com preconceitos perpetuados há séculos”, diz, lembrando a importância da política de cotas e a necessidade de mais docentes negros – “ainda há muita coisa por mudar”.

Mestre e doutora pela Universidade de São Paulo, Patrícia faz parte do grupo envolvido na produção do kit educativo: “A arqueologia estuda aquilo que os seres humanos produziram ou transformaram a fim de saber como nossos antepassados viveram”, explica, podendo “trazer muita informação sobre a materialidade afro-brasileira e também africana”, o que é central no combate ao preconceito.

“Esse tipo de informação também objetiva demonstrar que africanos e seus descendentes possuíam amplo conhecimento tecnológico, diferentemente do que é difundido há séculos por meio de um pensamento colonial e racista. Esperamos que esse kit chegue a crianças e adolescentes como forma de romper com esse pensamento preconceituoso sobre a cultura e religiosidade de africanos e seus descendentes”, aponta a arqueóloga.

Equipe envolvida no projeto faz uma visita técnica ao Museu Afro Brasil Emanoel Araujo. Foto Ader Gotardo
Equipe envolvida no projeto faz uma visita técnica ao Museu Afro Brasil Emanoel Araujo. Foto Ader Gotardo

Conhecimento que se dá em grupo

 É em rede que tem sido produzido o material. Além de pesquisadores ligados ao MAE, o projeto envolve o Museu Afro Brasil Emanoel Araújo, o Núcleo para Educação e as Relações Étnico Raciais da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, a educadora Liliane Pereira Braga, ex-formadora de professores no município, e o sacerdote do candomblé Tata Katuvanjesi, fundador do Instituto Latino-Americano de Tradições Bantu e membro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Uma exposição feita com grupos indígenas em 2019 reforçou entre pesquisadores do museu na USP a riqueza e a importância do fazer coletivo. “Para montar a equipe, fomos na perspectiva que hoje os museus estão tentando trabalhar que é de que não tem conhecimento sem ser em grupo”, diz Maurício.

Já Patrícia tem atuado de forma colaborativa há anos: a experiência com comunidades quilombolas em Vila Bela da Santíssima Trindade (MT) no mestrado e no doutorado, com a população construindo junto o conhecimento, ecoa em suas ações profissionais. “Qualquer população que se vê envolvida em contextos de estudos arqueológicos têm direito a ser informada sobre os objetivos da pesquisa e sempre que possível é preciso avaliar em conjunto possíveis impactos ao patrimônio cultural. Toda comunidade tem uma relação com a materialidade em seu entorno, seja ela ligada a seus ancestrais diretos ou não, pois o patrimônio arqueológico é ressignificado pelas pessoas”, diz ela.

Patrícia destaca a importância da participação de Tata Katuvanjesi para a interpretação dos objetos com os quais estão trabalhando. “Ele tem sido fundamental desde o início, nos primeiros contatos com peças que podem carregar significados mágico-religiosos”, diz. “Boa parte do acervo do MAE é material religioso apreendido pela polícia na primeira metade do século XX, então tem um compromisso da universidade em prestar contas”, conta Maurício.

A presença do sacerdote na iniciativa tem sido potente também para questionar como se faz ciência, explica Maurício. “Ele é talvez nossa bússola no sentido de pensar que o conhecimento se dá de muitas formas, e não somente nessa matriz moderna ocidental no qual fomos formados do que é o pensar, a razão. Há outras epistemologias de saber, sentir.”

O projeto é dividido em fases. A primeira envolveu encontros e visitas a espaços dos quais fazem parte a equipe. “Foi o momento de as pessoas se conhecerem para constituírem o que a gente está chamando de terreiro educativo, esse chão comum”, conta o coordenador. Já na segunda etapa, que acaba de ser concluída, foram construídos grupos de trabalho para fazer a seleção das peças que estarão no kit com base nos acervos do MAE e do Museu Afro Brasil, e para pensar o conteúdo de uma publicação didática associada.

A próxima fase envolve a reprodução desses objetos – são essas réplicas que estarão nas maletas emprestadas para as salas de aula -, feita por artesãos usando material etnográfico. Maurício conta que o conceito do kit pretende trabalhar a figura do orixá Exu para falar sobre encontro de diferentes e sobre a ideia de encruzilhada do ponto de vista educativo. “Esse é um tema muito caro porque tem muita resistência dentro das escolas”, diz ele.

A previsão é que o material esteja disponível para uso pedagógico em 2025, com as primeiras formações de professores.

Adriana Terra

Adriana Terra é jornalista, professora e pesquisadora. Mestra em Estudos Culturais e doutoranda em Mudança Social e Participação Política pela EACH-USP. Escreve sobre cultura e cidade, com publicações em veículos como UOL, Quatro Cinco Um, TPM, Elástica e Brasileiros.

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