(São Paulo, SP) – Poder “sonhar outros passados”. Essa é uma das forças que a arqueologia carrega e que pode ajudar a combater o racismo na sociedade, crê Maurício André da Silva. “A materialidade nos permite recontar histórias”, completa. Educador do Museu de Arqueologia e Etnografia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), Maurício é um dos coordenadores do kit educativo africano e afro-brasileiro que a instituição está produzindo pela primeira vez. Por dois anos, um grupo de pesquisadores irá se debruçar em acervos, seleção e reprodução de peças a fim de revelar artefatos e tecnologias do povo negro.
Voltado para a educação básica, o kit será composto por uma maleta com dez réplicas de objetos que falam sobre a civilização africana e afro-brasileira, uma publicação com textos de especialistas e didáticos, audioguia e videoguia (veja exemplos de outros projetos como esse aqui). O kit poderá ser emprestado por professores por até 15 dias mediante solicitação ao museu universitário e, após uma formação sobre o conteúdo, usado em aulas como de história, por exemplo. Haverá seis modelos idênticos de kit disponíveis.
O desejo de realizar esse projeto é antigo. Por duas décadas, uma professora da instituição tentou colocar um material nesses moldes no mundo, o que só foi viabilizado com um financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico obtido em 2022. Maurício conta que a demanda por materiais que falassem sobre a civilização africana veio, também, de professores que usam as maquetes do museu em sala de aula.
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Veja o que já enviamosEm um país de maioria negra, uma iniciativa como essa demorou a acontecer. Não é por acaso. Quando a arqueóloga Patrícia Marinho entrou no curso de Ciências Sociais da USP, em 1996, ela contava nos dedos o número de pessoas pretas e pardas estudando na faculdade, ausência que se refletia também nos conteúdos. “A vivência de pessoas negras, quilombolas e indígenas traz novos conhecimentos baseados na ancestralidade, rompendo com preconceitos perpetuados há séculos”, diz, lembrando a importância da política de cotas e a necessidade de mais docentes negros – “ainda há muita coisa por mudar”.
Mestre e doutora pela Universidade de São Paulo, Patrícia faz parte do grupo envolvido na produção do kit educativo: “A arqueologia estuda aquilo que os seres humanos produziram ou transformaram a fim de saber como nossos antepassados viveram”, explica, podendo “trazer muita informação sobre a materialidade afro-brasileira e também africana”, o que é central no combate ao preconceito.
“Esse tipo de informação também objetiva demonstrar que africanos e seus descendentes possuíam amplo conhecimento tecnológico, diferentemente do que é difundido há séculos por meio de um pensamento colonial e racista. Esperamos que esse kit chegue a crianças e adolescentes como forma de romper com esse pensamento preconceituoso sobre a cultura e religiosidade de africanos e seus descendentes”, aponta a arqueóloga.

Conhecimento que se dá em grupo
É em rede que tem sido produzido o material. Além de pesquisadores ligados ao MAE, o projeto envolve o Museu Afro Brasil Emanoel Araújo, o Núcleo para Educação e as Relações Étnico Raciais da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, a educadora Liliane Pereira Braga, ex-formadora de professores no município, e o sacerdote do candomblé Tata Katuvanjesi, fundador do Instituto Latino-Americano de Tradições Bantu e membro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Uma exposição feita com grupos indígenas em 2019 reforçou entre pesquisadores do museu na USP a riqueza e a importância do fazer coletivo. “Para montar a equipe, fomos na perspectiva que hoje os museus estão tentando trabalhar que é de que não tem conhecimento sem ser em grupo”, diz Maurício.
Já Patrícia tem atuado de forma colaborativa há anos: a experiência com comunidades quilombolas em Vila Bela da Santíssima Trindade (MT) no mestrado e no doutorado, com a população construindo junto o conhecimento, ecoa em suas ações profissionais. “Qualquer população que se vê envolvida em contextos de estudos arqueológicos têm direito a ser informada sobre os objetivos da pesquisa e sempre que possível é preciso avaliar em conjunto possíveis impactos ao patrimônio cultural. Toda comunidade tem uma relação com a materialidade em seu entorno, seja ela ligada a seus ancestrais diretos ou não, pois o patrimônio arqueológico é ressignificado pelas pessoas”, diz ela.
Patrícia destaca a importância da participação de Tata Katuvanjesi para a interpretação dos objetos com os quais estão trabalhando. “Ele tem sido fundamental desde o início, nos primeiros contatos com peças que podem carregar significados mágico-religiosos”, diz. “Boa parte do acervo do MAE é material religioso apreendido pela polícia na primeira metade do século XX, então tem um compromisso da universidade em prestar contas”, conta Maurício.
A presença do sacerdote na iniciativa tem sido potente também para questionar como se faz ciência, explica Maurício. “Ele é talvez nossa bússola no sentido de pensar que o conhecimento se dá de muitas formas, e não somente nessa matriz moderna ocidental no qual fomos formados do que é o pensar, a razão. Há outras epistemologias de saber, sentir.”
O projeto é dividido em fases. A primeira envolveu encontros e visitas a espaços dos quais fazem parte a equipe. “Foi o momento de as pessoas se conhecerem para constituírem o que a gente está chamando de terreiro educativo, esse chão comum”, conta o coordenador. Já na segunda etapa, que acaba de ser concluída, foram construídos grupos de trabalho para fazer a seleção das peças que estarão no kit com base nos acervos do MAE e do Museu Afro Brasil, e para pensar o conteúdo de uma publicação didática associada.
A próxima fase envolve a reprodução desses objetos – são essas réplicas que estarão nas maletas emprestadas para as salas de aula -, feita por artesãos usando material etnográfico. Maurício conta que o conceito do kit pretende trabalhar a figura do orixá Exu para falar sobre encontro de diferentes e sobre a ideia de encruzilhada do ponto de vista educativo. “Esse é um tema muito caro porque tem muita resistência dentro das escolas”, diz ele.
A previsão é que o material esteja disponível para uso pedagógico em 2025, com as primeiras formações de professores.