Mapa da Desigualdade: inadimplência escancara crise social e econômica do Rio

Feirão para limpar o nome no Rio: índice de inadimplência na Região Metropolitana é de 53,6%, bem acima da média (44%) do Brasil (Foto: Serasa / Divulgação)

Publicação da Casa Fluminense reúne 40 índices para dar visibilidade as faces desiguais da Região Metropolitana, destacando viés racial e de gênero

Por Oscar Valporto | ODS 10 • Publicada em 20 de setembro de 2023 - 07:09 • Atualizada em 21 de novembro de 2023 - 16:54

Feirão para limpar o nome no Rio: índice de inadimplência na Região Metropolitana é de 53,6%, bem acima da média (44%) do Brasil (Foto: Serasa / Divulgação)

Mais da metade da população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (53,6%) está inadimplente, em uma faceta da crise econômica e social enfrentada pela população fluminense, exibida pela quarta edição do Mapa da Desigualdade, que traz 40 indicadores para apresentar como vive a população fluminense: os desafios começam no pré-natal, atravessam direitos básicos como acesso a saneamento e água limpa e desaguam em mortes evitáveis. Como na terceira edição (de 2020), a publicação mostra também como a desigualdade atinge mais as mulheres e os negros – e, mais do que todos, as mulheres negras.

Leu essa? Retrato de um Rio muito desigual em que raça e gênero ampliam disparidades

Para produzir o Mapa da Desigualdade 2023, a Casa Fluminense — organização que há 10 anos debate políticas públicas para a redução das desigualdades no Rio — analisou 23 bases de dados governamentais e empresariais, além de solicitar outros através da Lei de Acesso à Informação, cobrindo os 22 municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ). Os 40 indicadores foram divididos em quatro eixos: justiça econômica, justiça racial, justiça de gênero e justiça climática. “As análises dão visibilidade para a realidade desigual da população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. É a partir do monitoramento sistemático dos indicadores socioeconômicos, que é possível a criação e/ou a reformulação de políticas públicas capazes de reduzir as desigualdades”, destaca o documento.

É uma dado revelador do tamanho da crise econômica na Região Metropolitana e seu agravamento, principalmente nos municípios da Baixada Fluminense

Lucas Martins
Geógrafo e assessor de Informação da Casa Fluminense

Os pesquisadores da instituição não se surpreenderam com o agravamento da crise econômica e social do Rio de Janeiro já que os dados analisados na edição anterior do Mapa da Desigualdade eram de antes da pandemia. Entretanto, as informações apontam para as aspectos particulares da crise da metrópole fluminense. A RMRJ está perdendo habitantes, na contramão do crescimento (pequeno) do estado: só a capital perdeu mais de 100 mil pessoas, uma queda de 1,7%.

Outros oito municípios da Região Metropolitana também tiveram redução da população, liderados por Paracambi (-12,2%), São Gonçalo (-10,3%), Nilópolis (-6,7%), Petrópolis (-5,7%) e Duque de Caxias (-5,5%). Na visão da Casa Fluminense, “o custo de vida, o racismo, a falta de vagas, sobrecargas de aparelhos públicos e a crise climática estão entre os fatores indicados pelo Mapa da Desigualdade 2023 que podem ajudar a compreender não só a redução da população mas também o perfil de quem está sendo mais afetado”.

Rio em primeiro lugar nacional no ranking da inadimplência: Três municípios da Baixada – Nova Iguaçu, Queimados e São João Meriti – com índice acima de 60% (Ilustração: Casa Fluminense)
Rio em primeiro lugar nacional no ranking da inadimplência: Três municípios da Baixada – Nova Iguaçu, Queimados e São João Meriti – com índice acima de 60% (Ilustração: Casa Fluminense)

Nos indicadores de Justiça Econômica, os analistas da Casa destacaram que o Rio de Janeiro ocupava, em junho de 2023, o primeiro lugar do ranking brasileiro de inadimplência. Só na Região Metropolitana, 53,6% da população não consegue pagar suas dívidas (são mais de 5 milhões de pessoas nesta situação) – este índice é maior que o do estado (51,9%) e bem superior ao do Brasil (44%). “É uma dado revelador do tamanho da crise econômica na Região Metropolitana e seu agravamento, principalmente nos municípios da Baixada Fluminense”, destacou o geógrafo Lucas Martins, assessor de Informação da Casa Fluminense no lançamento do Mapa da Desigualdade, nesta terça-feira (19/09), durante o 1º Seminário de Geração Cidadã de Dados, será realizado no Complexo de Favelas da Maré. Três municípios da Baixada – Nova Iguaçu, Queimados e São João Meriti – tinham índice de inadimplência acima de 60%.

Fica claramente demonstrado, mais uma vez, que o público mais vulnerável entre os mais vulneráveis é o das mulheres negras

Cláudia Cruz
Cientista social e coordenadora de Informação da Casa Fluminense

Em outra faceta do aumento da pobreza no Grande Rio, dos 22 municípios da metrópole, 15 municípios ultrapassam o limite de 5 mil famílias cadastradas por unidade nos CRAS (Centros de Referência em Assistência Social), que atende os mais vulneráveis. “A sobrecarga em toda a região dobrou em comparação com o Mapa da Desigualdade de 2020. Em Duque de Caxias, Nova Iguaçu e Rio de Janeiro o número de famílias cadastradas é quatro vezes superior à capacidade estabelecida” pelo governo.

No seminário, a cientista social Claudia Cruz, coordenadora de Informação da Casa Fluminense, lembrou que o Mapa da Desigualdade, principalmente a partir de sua terceira edição, em 2020, vem buscando aprofundar os dados raciais e de gênero. “Fica claramente demonstrado, mais uma vez, que o público mais vulnerável entre os mais vulneráveis é o das mulheres negras”, enfatizou.

Das 239 mil pessoas que vivem em domicílios improvisados na Região Metropolitana do Rio, 172 mil (quase 70%) são negras (Ilustração: Casa Fluminense)
Das 239 mil pessoas que vivem em domicílios improvisados na Região Metropolitana do Rio, 172 mil (quase 70%) são negras (Ilustração: Casa Fluminense)

O viés racial, como o de gênero, salta aos olhos nos indicadores do Mapa da Desigualdade. A população negra representa a maioria da população em domicílios particulares improvisados em todos os municípios da Região Metropolitana: são, pelo menos, 239 mil pessoas vivendo nesses domicílios na metrópole; dessas, 172 mil são negras. E as mulheres negras são uma maioria dentro da maioria: em 18 dos 22 municípios da metrópole, elas representam pelo menos 70% do total.

O Mapa aponta ainda a desigualdade em relação aos salários. De acordo com a publicação, as mulheres ganham menos do que os homens em 16 dos 22 municípios da RMRJ. Um homem branco recebe, em média, R$ 4.907, enquanto uma mulher preta recebe R$ 2.194, uma diferença de R$ 2.713 de remuneração média no emprego formal na região metropolitana do Rio. Na capital, essa diferença é ainda maior, chegando a R$ 3.449. De 2018 a 2021, houve aumento na disparidade salarial entre brancos e negro (de qualquer gênero) em 15 municípios.

Diferença salarial entre homens e mulheres na Região Metropolitana do Rio (Ilustração: Casa Fluminense)
Diferença salarial entre homens e mulheres na Região Metropolitana do Rio (Ilustração: Casa Fluminense)

Na apresentação da publicação, os representantes da Casa Fluminense relataram também os desafios enfrentados para a confecção do mapa, dos atrasos nos dados do Censo e a fragilidades dos dados disponíveis sobre as periferias. O geógrafo Lucas Martins ressaltou um problema comum às 23 bases de dados consultadas: nenhuma delas trazia informações sobre marcadores sociais básicos, gênero e sexualidade. Presente ao seminário, Wescla Vasconcelos, articuladora geral do Fórum Estadual de Travestis e Transexuais do Rio de Janeiro, destacou o impacto negativo dessa lacuna. “É preciso que os formulários oficiais contemplem identidade de gênero e orientação sexual para dar visibilidade a todos os grupos da sociedade. Os dados atualmente dados só conseguem identificar as pessoas cis”, afirmou Wescla.

O Mapa da Desigualdade está disponível no site da Casa Fluminense: esta nova edição traz como inovação a possibilidade de navegação pelos dados por meio da plataforma ArcGis Online, em que os usuários terão acesso aos dados absolutos, mapas interativos e tabelas disponíveis para download.

Seguem alguns indicadores das quatro justiças que dividem o Mapa da Desigualdade

Justiça Econômica

– Em doze municípios da RMRJ, o índice de residências com coleta e tratamento de esgoto está abaixo de 5%. Em comparação com o último Mapa da Desigualdade, o número de municípios sem coleta e tratamento de esgoto subiu de oito para nove. Somente Niterói atingiu 100% de sua população com tratamento de esgoto

– De 2020 a 2023, 12 municípios aumentaram suas tarifas de ônibus: o maior aumento nesse período foi em Guapimirim, de R$ 1,20. Os municípios de Maricá, Paracambi e Tanguá oferecem linhas de ônibus municipais a custo zero

– Somente em 2022, foram registrados na região metropolitana 3.584 tiroteios e 51 chacinas, 41 delas em decorrência a operações policiais. A capital do Rio é a recordista nos dois tipos de ocorrência. O governo Cláudio Castro é responsável por 3 das 5 chacinas mais letais da história do estado

– Dos 22 municípios da RMRJ, sete têm cobertura da atenção básica de saúde abaixo de 50% e apenas três possuem 100% da população coberta: Magé, Maricá e Tanguá

Em 21 dos 22 municípios da região metropolitana brancos ganham mais que negros; de 2018 a 2021, houve aumento na disparidade salarial em 15 municípios (Ilustração: Casa Fluminense)
Em 21 dos 22 municípios da região metropolitana brancos ganham mais que negros; de 2018 a 2021, houve aumento na disparidade salarial em 15 municípios (Ilustração: Casa Fluminense)

Justiça Racial

– Na RMRJ, houve 1.126 mortes nos transportes, sendo que em 746 desses casos as vítimas eram pretas ou pardas. Em 16 das 22 cidades o percentual de pessoas negras mortas no transporte é igual ou superior a 60%, com destaque para a capital, onde o percentual de negros mortos chegou a 68%, sendo a população negra 48% da total do município ( Censo 2010)

– Das 1.169 mortes por intervenção de agente do estado na região metropolitana, em 919 as vítimas eram negras. Em 14 municípios da RMRJ, mais de 80% das pessoas assassinadas pelo estado eram negras, chegando a 100% em cinco municípios. Entre os anos de 2019 e 2022, o cenário se agravou em 10 municípios

– Em Niterói, Petrópolis, Rio de Janeiro e Tanguá a população negra morre, em média, 10 anos mais cedo do que a população branca. Dos 22 municípios da RMRJ, as pessoas negras morrem mais cedo em Japeri, com média de 59 anos – o único município que a média não chega aos 60 anos

– De acordo com o Censo 2022, no estado do Rio existem três territórios indígenas e 21 territórios quilombolas. Na RMRJ há população indígena em todos os 22 municípios, mas em 11 deles não há população quilombola residente

As mulheres negras são a maioria da população vivendo em casas improvisadas. Em 18 dos 22 municípios da metrópole, elas representam pelo menos 70% do total; homens brancos são a minoria nessa mesma situação em toda a RMRJ (Ilustração: Casa Fluminense)
As mulheres negras são a maioria da população vivendo em casas improvisadas. Em 18 dos 22 municípios da metrópole, elas representam pelo menos 70% do total; homens brancos são a minoria nessa mesma situação em toda a RMRJ (Ilustração: Casa Fluminense)

Justiça de Gênero

– Na Região Metropolitana do Rio, são 2,2 milhões de mulheres em pobreza ou extrema pobreza. Dessas, cerca de 1,6 milhão é negra. Em 14 municípios o percentual de mulheres negras nessas condições é superior a 70%. As situações mais agudas de pobreza estão entre a população negra e as mães chefes de família, logo as mulheres negras são as mais atingidas. São elas também a maioria no trabalho doméstico e informal

– As mulheres negras são as maiores vítimas de violência sexual do transporte público na metrópole. Em 2022, foram registrados 163 casos, 78% ocorreram no interior de ônibus

– Na RMRJ, um quarto das gestantes não realizou o número mínimo de consultas pré-natal estabelecida do Ministério da Saúde. Os piores índices são de Japeri e Tanguá, onde o percentual mais do que duplicou entre os anos de 2018 e 2022

– De 2018 a 2021, o percentual de matrículas em creches caiu de 26,9% para 24,4% no estado, ou seja, menos de quarto das crianças de até 3 anos estavam na creche em 2021. Além do impacto no desenvolvimento das crianças, a falta de vagas dificulta as mães a acessarem o mercado de trabalho. Segundo dados da PNAD (2022), no estado as mulheres dedicam 8 horas por semana a mais do que os homens aos afazeres domésticos e/ou às tarefas de cuidado

Mapa da Desigualdade da Casa Fluminense: 40 indicadores, 23 bases de dados (Arte: Kaléu Menezes / Casa Fluminense)
Mapa da Desigualdade da Casa Fluminense: 40 indicadores, 23 bases de dados (Arte: Kaléu Menezes / Casa Fluminense)

Justiça climática

– Cerca de 48 mil casas foram danificadas ou destruídas por conta de eventos relacionados às fortes chuvas no estado, resultando em um prejuízo de mais de R$ 200 milhões para as vítimas.

– Foram registradas 2.257 denúncias de crimes ambientais com potencial de impacto aos ecossistemas e recursos naturais do estado do Rio. Cerca de 70% ocorreram na RMRJ. A maioria das denúncias foi de desmatamento, com 719 notificações, seguido de 501 acusações de poda ilegal e corte de árvore, 362 de poluição

– Mais de 2 milhões de pessoas foram afetadas por eventos climáticos relacionados às fortes chuvas nos anos de 2021 e 2022 no estado. A região metropolitana concentrou 81% desses casos, mesmo com a ausência de registros em 8 municípios

– Em 20 dos 22 municípios da RMRJ, há pelo menos uma escola pública sem água, energia, esgoto e/ou alimentação. Em Nilópolis, cerca de 14% das escolas públicas não têm pelo menos um desses serviços básicos.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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