Retrato de um Rio muito desigual onde raça e gênero ampliam disparidades

Os barracos da Rocinha e os prédios de São Conrado: Mapa da Desigualdade revela que diferença na expectativa de vida entre quem mora em São Conrado, um dos mais valorizados da cidade, e quem mora na vizinha Rocinha é de 23 anos (Foto: Luís Souza/AFP)

Mapa da Desigualdade, lançado pela Casa Fluminense, mostra os contrastes - na renda, na saúde, na segurança - da Região Metropolitana do Rio de Janeiro

Por Oscar Valporto | ODS 1ODS 10 • Publicada em 15 de julho de 2020 - 12:37 • Atualizada em 22 de julho de 2020 - 08:45

Os barracos da Rocinha e os prédios de São Conrado: Mapa da Desigualdade revela que diferença na expectativa de vida entre quem mora em São Conrado, um dos mais valorizados da cidade, e quem mora na vizinha Rocinha é de 23 anos (Foto: Luís Souza/AFP)

O salário médio dos empregos formais no município do Rio de Janeiro é o dobro dos vizinhos São João de Meriti, Nilópolis e Belford Roxo.  A renda média dos moradores de Niterói é R$ 3.114 – 4,5 vezes maior que os  R$ 694 dos moradores de Japeri, na Baixada Fluminense. Na média da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), o salário das mulheres negras equivale à metade do de homens brancos.  Os niteroienses vivem, em média, 12 anos a mais que os moradores de Queimados. Na capital, esta disparidade na expectativa de vida entre quem mora em São Conrado, um dos mais valorizados da cidade, e quem mora na vizinha Rocinha é de 23 anos.  O município do Rio é o único da região que teve nota acima da média nacional no IDEB (Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico). Na RMRJ, 79% das vítimas de homicídio por intervenção policial eram negras – quase oito pontos percentuais a mais que a média brasileira. Dos 22 municípios da Região Metropolitana do Rio, em nove, a população inteira não tem esgoto tratado.

Esses dados e muitos outros estão reunidos no Mapa da Desigualdade 2020, lançado nesta quarta (15/7), pela Casa Fluminense – associação civil com foco em políticas públicas para a Região Metropolitana do Rio – com a reunião de 40 indicadores que retratam os desafios socioeconômicos da vida urbana. Esta nova edição do Mapa da Desigualdade – as versões anteriores são de 2015 e 2017 – está organizada em 10 eixos temáticos: habitação, emprego, transporte, segurança, saneamento, saúde, educação, cultura, assistência social e gestão pública.  “Tivemos a preocupação neste mapa em destacar novos aspectos da desigualdade, como o aspecto racial e de gênero. A Região Metropolitana é imensamente desigual e temos desigualdades dentro das desigualdades”, destacou o economista Vitor Mihessen, coordenador da pesquisa, lançada em encontro virtual pelas redes sociais da Casa Fluminense.

Mihessen explicou que o Mapa da Desigualdade reuniu indicadores dos órgãos públicos e, pela primeira vez, usou também bases de dados produzidos pela sociedade civil. “É sempre um desafio conseguir dados atualizados e as próprias prefeituras, em alguns casos, não fornecem informações básicas sobre os municípios”, acrescentou o coordenador da pesquisa. “Apesar da Lei de Acesso à Informação estar em vigor há nove anos, ainda é difícil utilizar essa ferramenta para obter informação e algumas prefeituras na região metropolitana não disponibilizam o Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão (e-SIC) em seus sites”, apontou o pesquisador Guilherme Braga Alves.

Os 40 indicadores do Mapa da Desigualdade 2020 têm os mesmos eixos temáticos da Agenda Rio 2030, conjunto de sugestões de políticas públicas feitas pela Casa Fluminense e sua rede de parceiros – esses projetos, de diagnósticos e propostas, usam como base os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), propostos pelas Nações Unidas. “O nosso objetivo é apresentar as desigualdades para que a gente possa discutir políticas públicas as maneiras de superar essa desigualdade. Nós trouxemos essa questão da desigualdade racial para o mapa porque o racismo estrutural da nossa sociedade tem um impacto tremendo na desigualdade”, explicou o geógrafo Henrique Silveira, coordenador executivo da Casa Fluminense.

Desigualdade racial

Os dados sobre a desigualdade entre a população branca e a população negra começam pela renda: na capital, a diferença entre a remuneração salarial média é de 41,9% – e também a desproporção é grande em Japeri (31,6%) e Duque de Caxias (27,2%). Em metade dos 22 municípios, a diferença da média salarial entre brancos e negros fica entre 10% a 20%. Na Região Metropolitana do Rio, pouco mais da metade (52,78%) da população se declara negra (preta ou parda, conforme os critérios definidos pelo IBGE), um índice um pouco maior que o do Brasil (50,7%).

Essa desigualdade racial é mais trágica em outros indicadores. Os negros são as maiores vítimas da ação violenta da polícia: em municípios como Petrópolis, Cachoeira de Macacu, Guapimirim e Seropédica, todas – 100% – das vítimas de homicídios por intervenção policial eram negras. O índice também é escandalosamente alto em Mesquita (93,8%), Magé (91%), Belford Roxo (89,1%), Niterói (88%) e Rio de Janeiro (81%). Em 2018, foram registrados 1534 homicídios decorrentes de intervenção policial no Estado do Rio de Janeiro. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, isto representa 25% de todos os homicídios cometidos por agentes do estado no Brasil inteiro. Em Niterói, mais de 60% de todas as mortes foram decorrentes de ação de agentes de segurança. O Mapa da Desigualdade 2020 traz ainda mais um dado trágico: de acordo com o Datasus, 42,5% das mortes causadas por atropelamentos ferroviários no Brasil em 2018 ocorreram na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (91 casos) – entre as vítimas, 82,4% eram negros.

Essa desigualdade racial aparece em outros indicadores como na saúde. Em Niterói, a população negra morre 13 anos mais cedo quando comparada com a população branca: essa diferença também chega a 10 anos na capital, Paracambi, Japeri, Queimados, Itaboraí e Rio Bonito.  Na representação legislativa, a população negra está sub representada em quase todas as Câmaras Municipais: são apenas 6,7% em Petrópolis, 11,8% em Itaguaí, 23,1% em Cachoeiras de Macacu, 23,5% em Magé, 29,4% no legislativo da capital. Em Itaguaí, particularmente, onde 60% dos habitantes são pessoas negras, há apenas dois vereadores negros entre os 17 membros do legislativo.

Desigualdade de gênero

Na questão de gênero, a desigualdade também começa pela renda: em toda a Região Metropolitana, apenas em Maricá e em Queimados, as mulheres têm médias salariais maiores que os homens. Essa superioridade salarial masculina chega a 33,6% a mais em Itaguai, 22% a mais em Duque de Caxias, 21,2 em Itaboraí, 20,2% em Magé, 19,9% em Belford Roxo. “Essa questão do sexismo e do racismo fica mais evidente quando analisamos que, na mesma região, o salário das mulheres negras equivale à metade da remuneração recebida pelos homens brancos desempenhando a mesma atividade econômica”, destacou a consultora Paula Moura.

A sub representação no legislativo se repete em relação ao gênero: em oito municípios, não há representante feminina na Câmara dos Vereadores; em outros nove, as mulheres representam menos de 10% do legislativo municipal. A cidade com maior representação feminina na Câmara é Belford Roxo, com 20%; no Rio de Janeiro, onde a vereadora negra Marielle Franco foi assassinada, a porcentagem de mulheres na Câmara é de 13,7%.

A violência contra a mulher é um dos poucos dados onde há pouca diferença entre os municípios: as taxas por mil mulheres variam de 8,7 em São Gonçalo – segunda cidade mais populosa do estado, ou seja, um número absoluto alto – a 20,5 em Paracambi. Dos 22 municípios da Região Metropolitana, apenas sete têm delegacias especializadas de atendimento à mulher.

O Mapa da Desigualdade 2020 também trouxe os dados sobre os casos registrados de violências sexuais no transporte público, por grupo de 100 mil mulheres: as taxas chegam a 113,2 em Guapimirim, 113,7 em Tanguá, 110,9 em Magé, 104,3 em Petrópolis; na capital, a taxa de casos de violência sexual no transporte fica em 57.1, abaixo da média de 65,7 da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

Coordenador-executivo da Casa Fluminense, Henrique Silveira destacou ainda que as soluções urbanas são de longa prazo mas, para alcançá-las, é preciso começar já. “São desafios enormes na mobilidade, na segurança pública, no saneamento. Nossos mapas são para ajudar o debate, principalmente num ano de eleições municipais. Precisamos dar um giro na política, na pauta da política e no protagonismo da política. É preciso ter foco na solução, na política pública: como financia, como há controle. E é preciso uma renovação popular: com mais jovens, mais mulheres, mais negris”, afirmou Silveira.

Confiram mapas dos 10 eixos temáticos:

1. Habitação: a renda média salarial começa alta – entre as pessoas que moram no litoral e vai diminuindo conforme avança para a periferia e para a Baixada Fluminense

2.  Emprego: o índice de empregos formais por 100 habitantes mostra a maioria da informalidade – e a informalidade avança para a Baixada.

3. Transporte: parte significativa da população gasta cerca de um terço de sua renda no transporte, geralmente de baixa qualidade

4. Segurança: A grande maioria – 17 de 22 – dos municípios da Região Metropolitana tem taxa de mortes violentas por 100 mil, maior que a média brasileira (27,5). Em Itaguaí, Japeri e Queimados, a taxa de crimes violentos é duas vezes maior.

5. Saneamento: Segundo o INEA, das 437 estações de tratamento de esgoto na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, 134 estão inoperantes.

6. Saúde: Não havia leitos hospitalares em Japeri em dezembro de 2019, antes da pandemia chegar. Comparando os municípios com leitos, a desigualdade entre o melhor (Cachoeiras de Macacu) e o pior (São João de Meriti) município é de 8,4 vezes.

7. Educação: Municípios da Baixada Fluminense têm baixíssimo percentual de crianças em creche

8. Cultura: Segundo o IBGE, moradores de 20,3% dos domicílios na Região Metropolitana do Rio acessam à internet somente através de redes móveis.

9. Assistência social:  Entre maio e dezembro de 2019, o número de famílias beneficiárias do Bolsa Família no Estado do Rio caiu 9,35%, de 903 mil para 818 mil famílias. 

10. Gestão pública: O mapa do orçamento per capita mostra como as cidades de Niterói e Maricá vêm sendo beneficiadas pelos royalties do petróleo

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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