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Kaê Guajajara no The Town: ‘é como abrir trilha na mata fechada’

Primeira mulher indígena a se apresentar no festival, cantora leva ao palco espetáculo baseado no álbum Forest Club

O The Town 2025 inicia nesta sexta-feira (12/09) o segundo final de semana do festival, e quem abre o Palco Factory é a primeira cantora indígena do evento: Kaê Guajajara. Aos 32 anos, Kaê é uma artista multifacetada — cantora, compositora, atriz, autora e ativista. Nascida em uma aldeia em Mirinzal, no Maranhão, e criada no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, ela carrega em sua música a fusão desses dois mundos: as raízes ancestrais da floresta e a vivência urbana da favela.
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Kaê Guajajara é artista da Música Popular Originária (MPO), que mistura sonoridades indígenas com gêneros contemporâneos como funk, eletrônica e pop. Suas composições enaltecem a natureza e abordam temas que vão além da sobrevivência e violência, celebrando também a alegria e outras formas de viver e resistir. Como no álbum Forest Club, seu terceiro álbum de estúdio com 18 faixas, que traz colaborações com nomes como Dino d’Santiago, Gaby Amarantos e Rincon Sapiência, e baseia o show no The Town.
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Veja o que já enviamosNesta apresentação, a artista marca presença como a primeira e única mulher indígena a se apresentar no festival, que está em sua segunda edição. No show, também sobem ao palco bailarinos indígenas, trans e negros, e como ato de protesto, o figurino de Kaê possui um tecido que “escorre” pelo seu corpo, simbolizando a floresta que queima e se desfaz. O #Colabora conversou com a cantora sobre sua identidade, trajetória artística, a importância de sua representatividade e o conceito de seu trabalho. Confira a entrevista:
#Colabora: Você nasceu em Mirinzal, no Maranhão, e cresceu na Maré, no Rio de Janeiro. Como essas duas experiências se encontram na sua música e na sua visão de mundo?
Kaê Guajajara: Sinto que carrego esses dois territórios no meu corpo, na minha voz. Porque o Maranhão me conecta com as minhas raízes, com a ancestralidade, com a força da floresta. Já a Maré me ensinou a sobreviver na cidade, a resistir, a criar caminhos mesmo quando tudo parecia não ter mais jeito e que não ia ter como sobreviver. A minha música une os dois mundos e constrói uma ponte entres eles. De um lado vem essa memória: os cantos, os tambores. Do outro lado vem essa vivência na favela, o pop, o movimento urbano. Minha visão de mundo nasce desse encontro, porque acredito que não existe separação entre a floresta e a cidade, entre o passado e o futuro. Tudo se atravessa. Por isso que eu canto, para lembrar que a gente é continuidade, resistência e invenção. Ao mesmo tempo, a gente também pode criar nossos próprios caminhos e não o caminho que esperam para gente.
#Colabora: Poderia contar um pouco da sua trajetória no mundo da música? Quando e como escolheu ser cantora?
Kaê Guajajara: Minha trajetória com a música começou antes mesmo de eu escolher ser cantora. A música já me escolhia, porque desde criança eu já via minha família cantar, principalmente a minha mãe. Já ouvia muitos sons da floresta, que são como música para a gente. E depois na Maré, com o funk, o rap, a batida que foi se mostrando aonde eu cresci. Esses universos sempre conversaram dentro de mim. E no início eu não pensava em seguir uma carreira, mas cantar para mim era uma forma de existir, de afirmar a minha própria história e não deixar ela ser apagada. Fui percebendo que a minha voz poderia atravessar fronteiras e tocar pessoas que talvez nunca tivessem escutado uma mulher indígena falar de si mesma, do seu povo e também dançar pop. Então, escolher ser cantora hoje, na verdade, foi escolher resistir e sonhar ao mesmo tempo, porque a música é um instrumento de luta, só que também de afeto e de celebração.
#Colabora: O que significa, para você, ser uma artista indígena ocupando grandes palcos e festivais que historicamente pouco abriram espaço para vozes originárias?
Kaê Guajajara: Para mim, estar nesses palcos é como abrir uma trilha no meio de uma mata fechada. Não é só sobre mim, é também sobre todas as outras que virão depois. Cada vez que piso num festival, sinto que eu não estou sozinha. Carrego o meu povo, minhas ancestrais, as minhas raízes, todos os territórios que passei, dentro de mim.
Historicamente, esses espaços sempre foram negados para as vozes indígenas, como se a gente não tivesse o direito de cantar a nossa própria história. É um ato político de falar que nós estamos aqui e que agora eles vão ouvir a potência que somos. Ao mesmo tempo, é uma celebração muito grande.
É como dançar no meio de uma contradição, pegar uma coisa que era dor e conseguir celebrar e ver que a vida não é somente a parte de sobreviver, mas de viver. Quando a gente ouve o público cantando junto, sinto como se a floresta estivesse cantando e pulsando no coração da cidade junto. É muito enriquecedor.
#Colabora: Quais os maiores desafios e também as maiores potências de levar a identidade indígena para o centro da cena musical contemporânea?
Kaê Guajajara: São muitos desafios, e o primeiro é enfrentar o preconceito, o estereótipo. Ainda existe uma visão limitada do que é ser indígena, como se a gente tivesse que caber numa caixinha do passado. Quando trago a minha identidade para o pop, para os palcos urbanos, muitas vezes me perguntam se isso é o indígena de verdade. Esse questionamento é constante e desgastante, porque a nossa identidade não precisa de uma validação do público para existir. Ela é viva hoje e a gente pode falar por si só. Outro desafio é a falta de espaço e estrutura, a cena musical contemporânea hoje ainda abre poucos espaços para as vozes indígenas, e quando abre, muitas vezes quer colocar a gente somente como uma representação e não como protagonistas e criadores de tendências.
Junto desses desafios existem essas potências enormes, como mostrar que a música indígena dialoga com pop, eletrônico, rap e a gente pode cantar qualquer coisa sem perder a nossa raiz. A gente quer ocupar o centro não só para cantar, mas para transformar a forma como o público enxerga não só a gente como o organismo vivo que é a Terra.
#Colabora: Seu show no The Town leva ao palco pessoas indígenas, trans e negras. O que significa para você ver esses grupos ocupando esse espaço?
Kaê Guajajara: Significa ver a história sendo escrita ao vivo, no corpo, no movimento. Quando eu coloco no palco corpos indígenas, corpos trans negros, eu não estou só convidando essas pessoas para dançarem comigo. Estou afirmando que esses corpos são potência, são beleza, são futuro também. Na história a gente foi silenciado, apagado, jogado na margem. Então, ver esses corpos ocupando o centro da cena é devolver para eles o lugar que sempre foi de direito — o lugar da criação e da celebração. Pessoalmente, é também um gesto de cura. Cada passo de dança, cada canto, cada gesto ali no palco é uma declaração de que a gente está vivo, de que somos muitos, e que não queremos mais ficar invisíveis.

#Colabora: O figurino que você escolheu para a apresentação compara o tecido que escorre à destruição da floresta. Como a moda se torna parte do seu manifesto artístico?
Kaê Guajajara: A moda para mim é mais do que uma estética, ela é também narrativa. Cada figurino que eu escolho carrega uma mensagem, um território e uma denúncia. No The Town, esse tecido que parece derreter no meu corpo, ele é uma imagem viva da floresta queimando, da destruição que tenta engolir a gente todo dia. Eu quis que o público tivesse essa sensação de sentir na pele, dizendo através do olhar o que muitas vezes a sociedade prefere não ver. A moda se torna parte do meu manifesto, porque ela fala sem precisar de palavras e amplifica o que a música diz. Quando visto o figurino, eu não estou só vestindo a roupa, mas transformando o meu corpo numa tela junto com o palco. Acho que é também um jeito de mostrar que ser indígena não é ficar preso ao passado, mas criar novas linguagens.
#Colabora: Em suas músicas, a ancestralidade aparece em diálogo com o presente. Como você encontra esse equilíbrio entre tradição e inovação?
Kaê Guajajara: Acho que a ancestralidade é como um rio que nunca deixa de correr. Ela carrega memória, canto, espíritos e histórias que me atravessam demais. E a inovação é como uma correnteza que se abre para novos caminhos. E então vão criando essas formas inesperadas de seguir em frente. O equilíbrio entre os dois mundos não é algo que busco racionalmente, ele simplesmente acontece porque sou feita desses mundos. Então, quando canto, sinto que a minha voz é uma ponte que de um lado vem uma tradição que sustenta e do outro esse presente que me provoca criar. A música nesse sentido é um ritual e é também um futuro. É a prova de que nada morre, tudo se transforma.
#Colabora: Você é a primeira mulher indígena a se apresentar no The Town. Para você, qual é o peso desse marco?
Kaê Guajajara: Ser a primeira mulher indígena no The Town tem um peso que vai muito além da minha trajetória pessoal. É como abrir uma porta que por muito tempo esteve fechada para gente. Eu sinto o peso histórico de representar, não só a mim mesma, mas tantas outras mulheres indígenas que vieram antes de mim, que lutaram, cantaram e não tiveram a chance de estar nesses palcos. Ao mesmo tempo, é também um marco íntimo e afetivo.
Me faz lembrar de quando eu era criança, que sonhava em cantar, mas que muitas vezes duvidava se ia ver espaços para minha voz em palcos tão grandes. Então hoje estar no The Town é dizer para essa menininha e a tantas outras que sim, é possível. O peso é de responsabilidade, mas também dessa celebração. Que quando eu pisar naquele palco eu não vou pisar sozinha, vou levar comigo a força da floresta, da favela, do meu povo, das minhas ancestrais. Então, vai ser um grito coletivo que ecoa dentro de mim, que vai poder agora ecoar para o The Town.

Estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Gonçalense, ou papa-goiaba, apaixonada pelas possibilidades de se contar histórias na área da comunicação. Foi estagiária na Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal e da UFF. Amante da sétima arte e crítica amadora do universo geek.