Jogos Paralímpicos: superação é o c@r#&ho!!!

Yeltsin Jacques (à esquerda), com o guia Carlos Antonio dos Santos, vence os 1.500m rasos, conquistando o 100º ouro do Brasil em Paralimpíadas (Foto Ilya Pitalev/Sputnik/AFP)

Em artigo, jornalista conta como o Brasil enterrou a narrativa que reduzia atletas incríveis a alvos da piedade dos espectadores, combatendo o capacitismo e outros preconceitos em relação às pessoas com deficiência

Por Diogo Mourão | ODS 10 • Publicada em 2 de setembro de 2021 - 09:33 • Atualizada em 6 de setembro de 2021 - 11:04

Yeltsin Jacques (à esquerda), com o guia Carlos Antonio dos Santos, vence os 1.500m rasos, conquistando o 100º ouro do Brasil em Paralimpíadas (Foto Ilya Pitalev/Sputnik/AFP)

De quatro em quatro anos, o Brasil visita o sentimento olímpico. Agora mesmo, em 2021, a TV mostrou horas e mais horas de competições – e nunca antes na história dos Jogos as redes sociais foram tão usadas por esportes e seus personagens. Passamos a entender de vôlei, natação, ginástica olímpica e agora até skate e surfe. De quatro em quatro anos também, o Brasil se lembra que existem as Paralimpíadas e se espanta ao redescobrir-se uma potência no esporte adaptado. Os Jogos de Tóquio-2020, porém, estão trazendo uma novidade positiva não apenas para o esporte paralímpico, mas para as pessoas com deficiência em geral, também potencializada pelo alcance das redes sociais.

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Nada melhor do que um evento global, com estimativa de audiência acima de 3 bilhões de pessoas, para combater o capacitismo e falar de inclusão. E o tema ganhou força. Nos dias que antecederam a abertura das Paralimpíadas, vimos muitas mensagens de atletas, de celebridades/influencers e na imprensa enfatizando vários pontos desta luta, na qual ainda somos obrigados a lembrar o básico: antes da deficiência, vem o ser humano. Logo, não se fala mais o “deficiente”, mas sim pessoa com deficiência; a deficiência não define a pessoa, é apenas mais uma de suas características. (Serviço: para não escorregar, segue um guiazinho animado que a medalhista paralímpica Verônica Hipólito postou em seu Instagram).

No meio de vários exemplos de expressões a serem evitadas, por se tratar de Paralimpíadas e esportes, o debate pré-Jogos incluiu a palavra superação, sempre usada ao falar do paradesporto. Evitem. Os atletas se cansaram de serem chamados de “exemplo de superação”. Afinal, superação faz parte da vida de qualquer esportista de elite, seja paralímpico ou convencional, como Rebeca Andrade, Ítalo Ferreira ou Douglas Souza. É sobre isso que os grandes nomes paralímpicos gostariam de falar.

“De todas as matérias que fizeram sobre mim, quase 90% são sobre superação. Sempre com esse viés inconsciente: ‘Só de ela ser atleta já superou a deficiência, é uma guerreira’. Não é só isso. Vamos além? O que vem antes: a deficiência ou a pessoa? É a pessoa. Vamos pensar numa pessoa performando, pondo em prática o que treina e se aperfeiçoa diariamente”, ensina a medalhista paralímpica e ativista LBGTQI+ Edênia Garcia, no GE.

“Não, não somos deficientes praticando esportes: somos atletas de alto rendimento”, costuma repetir Verônica Hipólito, que viralizou com outra frase, na sua jornada como comentarista dos Jogos de Tóquio para o Grupo Globo: “Especial é aquela pessoa que você convida para uma pizza, uma cerveja”.

De todas as minorias, a das pessoas com deficiência ainda tem a menor visibilidade, a menos ouvida e vista. Fala-se muito pouco sobre a falta de inclusão no mundo (imaginem no Brasil) e o esporte pode e deve ser ferramenta para a luta difícil e, sabemos, longa. A ONU estima que 15% da população mundial têm algum tipo de deficiência – um bilhão de pessoas. Se adaptarmos os números seguindo o percentual da ONU, teríamos no Brasil cerca de 30 milhões de seres humanos nessa condição.

Acho que agora podemos falar de exemplos – e não o tal da “superação”. Da mesma forma que a presença de Maju Coutinho como apresentadora de programas na Globo tem enorme importância para meninas negras, a sociedade precisa tornar visíveis as pessoas com deficiência, para elas ocuparem os espaços que merecem. O esporte adaptado não tem (ainda) esse poder. Mas contribui ajudando a quebrar paradigmas. “Estamos aqui para falar de eficiência, não de deficiência”, repetia exaustivamente Sir Phill Craven, ex-presidente do Comitê Paralímpico Internacional (IPC), às vésperas da Rio-2016.

Cinco anos depois, Verônica Hipólito reforçou a mensagem do britânico, com um jeitinho mais brasileiro de falar, em seu Twitter: “Não olhe para a deficiência, olhe para a EFICIÊNCIA. A potencialidade! Sem usar o “que superaçãããoooo” só por ver alguém sem perna, braço, cadeirante, cego/baixa visão ou com paralisia. A gente treina pra carambaaa para estar lá!”

Gabriel Santos, o Gabrielzinho: deficiência severa, dois ouros e uma prata na natação. Foto Takumi Harada/The Yomiuri Shimbun/AFP
Gabriel Santos, o Gabrielzinho: deficiência severa, dois ouros e uma prata na natação (Foto: Takumi Harada/The Yomiuri Shimbun/AFP)

Como vemos, o discurso que tenta desassociar o coitadismo do paralimpismo não nasceu agora, vem de anos e também passa pela evolução do esporte para pessoas com deficiência. A cada edição de Paralimpíadas, mundiais, Parapan-americanos e mesmo nas competições regionais a competitividade aumenta, juntamente com a necessidade de entrega, dedicação e treino.

O esporte para pessoas com deficiência é muito novo, surgiu no pós-guerra, no final dos anos 1940, na Inglaterra, basicamente para tentar dar uma vida melhor para os muitos soldados que voltaram para casa com lesões. O trabalho era comandado pelo médico Ludwig Guttman, que em 1948 organizou uma competição em Stoke Mandeville. Quatro anos depois, holandeses se juntaram ao grupo inglês, no que se considera o início do Movimento Paralímpico Internacional. Os primeiros Jogos Paralímpicos aconteceram em Roma-1960 e, desde Seul-1988, passaram a ser disputados logo na sequência das Olimpíadas para atletas convencionais, sob a organização do mesmo comitê.

Feito o recorte histórico mundial, voltamos para o Brasil. Apesar de alguns pódios e participações anteriores, foi a partir dos anos 2000, com destaque para Atenas-2004, que o esporte paralímpico começou a ganhar muitas medalhas e mais atenção por aqui. Foi quando surgiram Clodoaldo Silva e Ádria dos Santos, primeiros grandes nomes do país. As mensagens também foram mudando, como no restante da sociedade, mas na base de tudo está a visibilidade das pessoas com deficiência. E visibilidade não apenas de suas capacidades como atletas, mas também nas ruas, em lugares públicos. Até 10, 15 anos atrás, a pessoa com deficiência mal saía de casa e é lógico que isso também se deve muito, mas muito mesmo, a enorme falta de acessibilidade brasileira.

Quando assumi a direção de marketing e comunicação do Comitê Paralímpico, em 2018, numa das primeiras reuniões conjuntas das equipes que até então trabalhavam separadamente, conversávamos sobre o tema, de que não dava mais para aceitar reportagens falando de superação, de exemplo de superação. Foi quando falei que chegara a hora do basta: superação é o caralho! A forma veemente chamava a trabalhar nova mensagem, obviamente mais polida. Mesmo de longe (deixei o CPB em 2019), constato que o conceito foi bem assimilado – conseguimos fugir de pautas piegas, que deixavam sempre o lado de atleta, do trabalho árduo, em segundo plano.

Por isso a importância de aproveitar o exemplo dos atletas paralímpicos como efeito transformador na vida das pessoas com deficiência, mostrando que elas também são capazes de fazer coisas incríveis. Em época de Jogos, a voz deles ganha mais relevância e pode atingir mais pessoas. Toda a sociedade ganha junto.

Assim, repita a mensagem que chega de Tóquio-2020: superação é o caralho!!!

Diogo Mourão

Jornalista, tem mais de 30 anos de estrada, sempre na área de esportes, tanto na imprensa quanto em agências de comunicação e relações públicas. Por dez anos atuou com o Movimento Paralímpico.

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