Carnaval 2023: Beija-Flor mostra força dos desfiles politizados

Beija-Flor com suas faixas de protesto e a alegoria com a confecção de uma nova bandeira do Brasil: sucesso da escola mostra força de desfile politizado (Foto: Ismar Ingber / Riotur)

Escola de samba de Nilópolis conquista público e especialistas com enredo sobre excluídos que exalta mulheres, negros, indígenas e comunidade LGBTQIA+

Por Oscar Valporto | ODS 10 • Publicada em 21 de fevereiro de 2023 - 15:05 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 14:21

Beija-Flor com suas faixas de protesto e a alegoria com a confecção de uma nova bandeira do Brasil: sucesso da escola mostra força de desfile politizado (Foto: Ismar Ingber / Riotur)

Era esperado um desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro pautado pela volta dos temas da cultura popular brasileira após os últimos carnavais terem sido dominados pela crítica e o protesto nos tempos de Jair Bolsonaro (no Brasil) e Marcelo Crivella (no Rio). E assim foi. Mas o desfile da Beija-Flor de Nilópolis, um verdadeiro grito dos excluídos, com alas desfilando como se fossem passeatas, mostrou que o tom crítico veio para ficar e ganhou corações e mentes: a escola saiu da Passarela do Samba com o público gritando “é campeã” e colecionou elogios dos especialistas em samba. No voto do júri oficial, a Beija-Flor ficou em quarto lugar e voltará a desfilar no sábado das campeãs (25/02).*

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Talvez a evolução em ritmo de passeata no meio do desfile, determinada também pelos gigantescos carros-alegóricos, e começo de incêndio no maior de todos talvez tenham prejudicado a nota final, mas a aposta da Beija-Flor tinha tudo para dar samba e título – a vitória anterior, em 2018, da agremiação de Nilópolis também foi com um enredo politizado: “Monstro é aquele que não sabe amar. Os filhos abandonados da pátria que os pariu”, que traçava um paralelo entre o romance Frankenstein e as mazelas brasileiras.

Em 2023, a inspiração política foi o bicentenário da Independência – assim comemorado na Bahia onde a a participação de mulheres, negros e índios foi fundamental para expulsar em definitivo os portugueses.  “Enaltecer as lutas coletivas é também trazer à tona o nosso protagonismo em nossas próprias conquistas”, disse a jornalistas o carnavalesco André Rodrigues, que assina o enredo de 2023 – “Brava Gente! O grito dos excluídos no bicentenário da Independência” – com o campeoníssimo Alexandre Louzada, ainda na concentração. A Beija-Flor foi eleita a melhor escola do Grupo Especial pelo júri de especialistas do Estandarte de Ouro, tradicional premiação feita pelo jornal O Globo.

Ala de indígenas com o "Não ao Marco Temporal": desfile panfletário da Beija-Flor pelos excluídos (Foto: Tata Barreto / Riotur)
Ala de indígenas com o “Não ao Marco Temporal”: desfile panfletário da Beija-Flor pelos excluídos (Foto: Tata Barreto / Riotur)

Críticas à fome e à desigualdade, à violência contra a mulher, aos ataques aos povos indígenas, ao racismo e à homofobia estavam nas faixas e nas alas no quarto setor do desfile – Brava Gente por um Novo Nascimento – em tom quase panfletário. “Contra a fome e a miséria e pela vida”, “Haverá espetáculo mais bonito do que ter o que comer?”, “Contra a precarização do trabalho”, “Emprego, salário justo e previdência”, “Brasil, terra indígena”, “Não ao Marco Temporal”, “Revolução povo negro”, “Negro é gente”, “Respeito à diversidade e liberdade de direitos”, “Em luta pela liberdade de existência: as faixas marcaram o desfile da Beija-Flor com alas representando os famintos, os negros, os povos indígenas e a comunidade LGBTQIA+ e todas as cores do arco-íris.

As mulheres tiveram destaque maior ainda por inspiração das heroínas da Independência da Bahia: a escravizada Maria Felipa, a religiosa Joana Angélica e a a combatente Maria Quitéria. Depois das alas dos excluídos, a alegoria “Por um novo nascimento” tinha os dizeres “Mátria Soberana” e a imagem de uma uma mulher negra – “que compõe o grupo mais marginalizado em nossa pirâmide social, pelas opressões de raça e gênero”, como lembra a descrição do enredo – costurando uma nova bandeira do Brasil. Alegorias da Beija-Flor de Nilópolis lembraram também o Dois de Julho – “a guerra que libertou a Bahia e separou em definitivo o Brasil de Portugal foi protagonizada por indígenas, negros – livres e escravizados – e mulheres, lembra o enredo – a ditadura civil/militar, que apareceu no carro “O chumbo da autocracia”.

Ala da Beija-Flor com todas as cores da comunidade LGTQIA+ para defender a diversidade: força dos enredos politizados na Passarela do Samba (Foto: Tata Barreto / Riotur)
Ala da Beija-Flor com todas as cores da comunidade LGTQIA+ para defender a diversidade: força dos enredos politizados na Passarela do Samba (Foto: Tata Barreto / Riotur)

A Independência da Bahia – é assim que os baianos celebram o Dois de Julho – e suas lutas já tinham aparecido no enredo da Unidos da Tijuca sobre a Baía de Todos os Santos. “Nesse eterno dois de julho / Sou caboclo rebelado / Terra que banho de luta / Pau Brasil, barril dobrado”, diz a letra do refrão do samba-enredo (barril dobrado em baianês é coisa muito perigosa ou muito boa). “Enredos do carnaval sempre tiveram aspectos críticos desde a volta da democracia. Pode variar a cada ano, mas é uma tendência permanente”, disse, ainda no domingo, Jack Vasconcelos, carnavalesco da Unidos da Tijuca, que, em 2018, levou a Paraíso do Tuiuti à sua melhor colocação – vice-campeã – no Grupo Especial com o enredo “Meu Deus, Meu Deus, está extinta a Escravidão”, que falava de racismo e modernas escravidões.

Nós sabemos fazer Carnaval. É nosso ofício. Que seja através dele, então, que a gente proteste. Esperamos, assim, contribuir para o despertar do gigante que somos nós mesmos

Joãsinho Trinta
Carnavalesco (falecido em 2011) em texto de 1989

E, no domingo, o mais politizado desfile foi com o delirante enredo do Salgueiro, que começava no pecado original para defender a liberdade de expressão e a igualdade e combater todos os tipos de preconceito. que homenageou o mesmo Joãosinho Trinta, também inspiração para os carnavalescos da Beija-Flor. “Basta! De violência e opressão / Chega de intolerância”, dizem versos do samba do Salgueiro. “Joãosinho Trinta era um questionador e defensor intransigente da liberdade de expressão. O carnaval de 1989 fez história mas ele sempre deu protagonismo aos excluídos”, disse o carnavalesco salgueirense Edson Pereira.

Joãosinho começou sua carreira vitoriosa no Salgueiro mas consagrou-se na Beija-Flor onde conquistou cinco títulos. Seu carnaval mais lembrado, entretanto, é o de 1989, quando o enredo Ratos e urubus, larguem minha fantasia” levou para a avenida uma multidão de componentes desfilando com farrapos e lixo e uma imagem do Cristo Redentor – que teve seu usado vetado pela Igreja – coberta por um gigantesco saco preto com os dizeres “Mesmo proibido, olhai por nós” – a escola de Nilópolis ficou em segundo lugar. “Sempre que a Beija-Flor falar de excluídos vai reverenciar Joãosinho Trinta”, afirmou André Rodrigues aos jornalistas na Passarela do Samba.

E não por acaso que é uma frase de Joãosinho Trinta sobre o carnaval de 1989 que abre o histórico do enredo da Beija-Flor no Abre-Alas de 2023, livro entregue aos jurados onde as escolas detalham seus desfiles. “A ideia deste enredo não surgiu como inspiração. Ele foi provocado pela percepção da enorme quantidade de sujeira, de lixo que nos cerca e nos está sufocando. (…) É obrigação de todos nós participar deste trabalho. Cada um deve agir à sua maneira. No nosso caso, nós sabemos fazer Carnaval. É nosso ofício. Que seja através dele, então, que a gente proteste. Esperamos, assim, contribuir para o despertar do gigante que somos nós mesmos”.

*Atualizada às 19h51 de 22/02 para informar o resultado oficial do desfile das escolas do Grupo Especial

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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