Uma vitória silenciosa

Clarissa repete o clássico gesto de Usain Bolt, recordista dos 100 e dos 200 metros no atletismo. Foto de Carla Zacconi

Apresentadora de TV surda dribla trajetória de solidão e brilha nos bastidores da Rio 2016

Por Carla Zacconi | ODS 1 • Publicada em 19 de agosto de 2016 - 14:03 • Atualizada em 19 de agosto de 2016 - 21:20

Clarissa repete o clássico gesto de Usain Bolt, recordista dos 100 e dos 200 metros no atletismo. Foto de Carla Zacconi
Clarissa repete o clássico gesto de Usain Bolt, recordista dos 100 e dos 200 metros no atletismo. Foto de Carla Zacconi
Clarissa repete o clássico gesto de Usain Bolt, recordista dos 100 e dos 200 metros no atletismo. Foto de Carla Zacconi

Surda desde os dois anos de idade, Clarissa Guerretta, 37 anos, percorreu uma longa e solitária jornada até assumir esta condição, há apenas 10 anos. De lá para cá, tudo mudou na vida da moça, que se formou em duas universidades, casou-se, teve um filho e tornou-se uma das estrelas da programação esportiva da TV INES, emissora na Web criada pelo Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) e pela Associação de Comunicação Educativa Roquette-Pinto (Acerp).

Sabia que era surda, mas não aceitava isso. Acho que não queria ser discriminada, queria ser igual a todos os ouvintes.

Desde o início das Olimpíadas Rio 2016, Clarissa e sua equipe – em média oito pessoas, entre cinegrafistas, profissionais de luz e som e intérpretes – vão diariamente ao Rio Media Center, na Cidade Nova. No espaço, repleto de jornalistas, onde línguas de todo o planeta são ouvidas, é Clarissa quem, sem emitir um som, mais chama a atenção. Com gestos rápidos e precisos, ela usa a Língua Brasileira de Sinais (Libras) para levar a deficientes auditivos de todo o Brasil as principais notícias dos jogos.

Não é a primeira vez que Clarissa se destaca em uma competição esportiva internacional. Ela estreou na Copa de 2014, na qual, em uma entrevista coletiva à imprensa, desconsertou o técnico Felipão lançando para ele uma pergunta em Libras. A intérprete que acompanhava Clarissa traduziu a pergunta feita ao técnico para o português oral. Mas após ter despertado o interesse de repórteres de todo o mundo, o caminho de Clarissa para o sucesso começava ali.

Isolamento

 Natural de Aracaju, Clarissa nasceu ‘ouvinte’, expressão com a qual os deficientes auditivos se referem aos que ouvem e falam. Mas aos dois anos, contraiu meningite, quase morreu e ficou com a surdez como sequela. Talvez por ter nascido ouvinte, durante a infância Clarissa não se aproximava de outras crianças surdas nas escolas comuns ou especiais que frequentou.

“Sabia que era surda, mas não aceitava isso. Acho que não queria ser discriminada, queria ser igual a todos os ouvintes”, explica.

Na confusão da infância, Clarissa não conquistou nem amigos ouvintes, nem surdos. Era total solidão. Se, de um lado, fugia das crianças surdas, de outro, os pais dos ouvintes temiam que os filhos, em contato com os deficientes auditivos, não aprendessem bem o português.

“Eu não era feliz, me sentia sozinha, tinha depressão, estava perdida. Dependia muito da leitura de lábios, mas isso não funcionava tão bem”, acrescenta.

Já adulta, Clarissa decidiu procurar a Associação de Pais e Amigos de Deficientes Auditivos (Apada), em Niterói, onde começou a aprender Libras. Na mesma época, se preparava para uma cirurgia de implante coclear. Diferente dos aparelhos auditivos externos, que amplificam os sons, mas não resolvem casos graves de surdez, o implante é um dispositivo eletrônico capaz de substituir as funções das células do ouvido.

A equipe de trabalha com Clarissa inclui cinegrafistas, profissionais de luz e som e intérpretes. Foto de Carla Zacconi
A equipe de trabalha com Clarissa inclui cinegrafistas, profissionais de luz e som e intérpretes. Foto de Carla Zacconi

“Me apaixonei pela Libras e me aceitei como surda. Vi que este era meu mundo, que esta minoria linguística era enfim minha língua. Não quis mais fazer o implante. Implante para que, se já agora tenho minha língua?”, argumenta a bela Clarissa, que se apresenta na TV com cabelos, unhas e maquiagem impecáveis.

A guinada na vida abriu perspectivas profissionais e pessoais a Clarissa, que se casou com Ronaldo Guerretta, também deficiente auditivo. O filho do casal, Aquiles, de 10 anos, é ouvinte e convive bem com as formas de comunicação adotadas pelos pais.

Me apaixonei pela Libras e me aceitei como surda. Vi que este era meu mundo, que esta minoria linguística era enfim minha língua. Não quis mais fazer o implante. Implante para que, se já agora tenho minha língua?

Clarissa graduou-se em Letras/Libras na Universidade Federal de Santa Catarina, onde aprendeu a fazer tradução Libras/Português e Português/Libras. Fez ainda pós-graduação em Tradução e Interpretação de Libras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Agora, é professora do curso de graduação de Tradução e Interpretação em Libras da UFRJ. Neste curso, ela e outros quatro professores ensinam duas turmas com 110 alunos, dos quais não mais de 15 são surdos. Com a valorização da inclusão social, a formação em Libras vem se tornando uma alternativa de empregabilidade aos ouvintes. Começam a surgir opções de trabalho em museus, palestras e eventos.

Censo

 O caso de Clarissa é uma experiência de sucesso que pode não ser comum ao universo de deficientes auditivos no Brasil. Segundo a TV INES, há no Brasil 9,7 milhões de pessoas com algum grau de deficiência auditiva, sendo dois milhões com surdez profunda, que dificulta assimilar informações na mídia. Segundo o Censo 2010 do IBGE, 95% dos surdos vivem em famílias de ouvintes. Sua integração à sociedade é a meta da emissora.

A Libras é reconhecida como meio legal de comunicação e expressão pela Lei 10.436, de 24 de abril de 2002. Engana-se quem pensa que tratar-se de um conjunto rudimentar de sinais e gestos. A língua tem palavras e gramática próprias e distintos do português. Outros países têm sua língua local para surdos, havendo ainda uma língua Internacional – Clarissa, além de Libras, domina a língua Americana e a Internacional.

A gravação dos programas da TV INES, como o Super Ação, de esportes, tem uma logística complexa. Um membro da equipe escreve o texto (em português) em letras grandes em um tablet. O texto vai para uma espécie de teleprompter, que Clarissa vai lendo em silêncio e treinando a tradução para Libras. Enquanto isso, uma tradutora faz o papel de locutora em português oral para que, no final da gravação, um editor possa casar Libras / legendas escritas em português / falas em português. Com muita simpatia e forte presença em cena, o que inclui a expressão corporal sincronizada com a língua, Clarissa encara este ritual com segurança e serenidade.

Com programação 24 horas, a TV INES é veiculada na Internet e nasceu há três anos. Neste período, já tiveram um milhão de visitas e cinco milhões de minutos de transmissão online. A programação é distribuída via satélite para parabólicas, TVs a cabo e DTH e também pode ser vista em TVs conectadas (smart TV), computadores, celulares e tablets.

Todos os apresentadores são surdos, mas a programação é bilíngue (Libras e português). Por isso, além das Libras, todos os programas têm legendas escritas e locução em português. Afinal, os surdos são o principal cliente da TV, mas seguindo o slogan da emissora – “TV INES, Acessível Sempre” – ali os ouvintes também têm vez.

Carla Zacconi

Carioca, trabalhou em O Globo, Folha de S.Paulo e Jornal do Brasil. Assessorou empresas como Light, White Martins, Senac, Merryll Lynch e bancos Pactual e Brascan. Foi editora-chefe da revista e site Brasil Energy. Cresceu ao lado da avó surda, a Vovó Xandica, com quem, na ausência de Libras, aprendeu a se comunicar por mímicas e movimentos labiais.

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