Sombra da escravidão ainda paira sobre o mercado financeiro global

Manifestantes derrubam a estátua do traficante de escravos Edward Colston em Bristol: mundo das finanças mantém lógica de tratar a vida de seres humanos como mercadoria (Foto: Giulia Spadafora/NurPhoto/AFP)

Uso de corpos humanos como mercadorias financeiras, instrumento dos comerciantes britânicos do século 18 persiste na Wall Street do século 21

Por The Conversation | ODS 1ODS 10 • Publicada em 1 de setembro de 2020 - 09:04 • Atualizada em 4 de setembro de 2020 - 11:30

Manifestantes derrubam a estátua do traficante de escravos Edward Colston em Bristol: mundo das finanças mantém lógica de tratar a vida de seres humanos como mercadoria (Foto: Giulia Spadafora/NurPhoto/AFP)

Philip Roscoe*

Quando o julgamento do sórdido massacre de Zong começou em 1783, o caso revelou a relação tóxica entre finanças e escravidão. Foi uma cobrança de seguro incomum e angustiante – relativo ao assassinato de 133 escravizados, jogados ao mar do navio negreiro inglês Zong. O julgamento não tratou do massacre; foi sobre o pagamento da apólice de seguro. O comércio de escravos foi pioneiro em um novo tipo de financiamento, garantido pelos corpos dos cativos impotentes. Hoje, os misteriosos produtos das altas finanças os pobres e problemáticos como oportunidades de lucro para os que já são ricos, ainda carregam essa profunda injustiça.

Os Gregsons, proponentes da reclamação pelo seguro no julgamento de Zong, eram príncipes mercadores de Liverpool do século 18, uma cidade que cresceu rapidamente e se tornou uma das principais capitais comerciais do mundo. O grandioso edifício do Liverpool Exchange, inaugurado em 1754, orgulhava-se do sucesso comercial da cidade e da fonte de seu dinheiro: seus frisos eram decorados com esculturas de cabeças africanas.

Mas a riqueza de Liverpool também resultou de suas inovações nas finanças. Os grandes mercadores de escravos também eram banqueiros e seguradores, pioneiros no que hoje chamamos de financeirização – eles transformavam vidas humanas em oportunidades de lucro. Do ponto de vista dos mercadores, o comércio atlântico era lento, pouco confiável e arriscado. Os navios estavam ameaçados por doenças, pelo mau tempo e pela constante ameaça de insurreição a bordo. Para acelerar o fluxo de dinheiro, os comerciantes começaram a emitir notas de crédito que podiam viajar com rapidez e segurança através do oceano.

Os escravizados eram comprados nas colônias africanas da Grã-Bretanha e transportados para as Américas, onde eram vendidos em leilão. O agente do comerciante pegava o dinheiro recebido e, em vez de investi-lo em commodities como açúcar ou algodão para ser enviado de volta a Liverpool, eles enviavam uma letra de câmbio – uma nota de crédito no valor, mais juros – através do Atlântico. A letra de câmbio podia ser sacada com desconto em uma das muitas casas bancárias da cidade ou substituída por outra, também com desconto, para ser despachada para a África em pagamento por mais bens móveis. O crédito fluiu de forma rápida, limpa e lucrativa.

Esta evolução do crédito privado não teve origem em Liverpool. Ele sustentou as dinastias bancárias florentinas do século 15 e deu origem ao dinheiro como o conhecemos agora. A novidade obscena do sistema bancário dos escravagistas britânicos era que esse valor financeiro era garantido por corpos humanos.

As mesmas práticas continuaram nas plantations – latifúndios de monocultura com mão-de-obra escrava nas Américas – onde os corpos dos negros escravizados eram usados ​​como garantia em empréstimos que permitiam a expansão das propriedades e a aquisição de corpos ainda mais produtivos. Os escravos foram explorados duas vezes: sua liberdade e trabalho roubados, seu “valor econômico” capturado e alavancado por instrumentos financeiros de ponta.

Os comerciantes de Liverpool também foram os pioneiros no uso do seguro como meio de garantir o valor financeiro de suas mercadorias. Os escravistas há muito reconheceram que a única maneira de sobreviver às perdas totais ocasionais que as expedições incorriam era se reunir em sindicatos e dividir o risco. Então, quando o capitão do Zong percebeu que era improvável conseguir desembarcar sua carga de escravos doentes e desnutridos, ele ordenou que 133 almas fossem jogadas ao mar. A perversa lógica legal era que, caso precisasse se livrar da carga para salvar o navio, ela estaria coberta pelo seguro.

Esses corpos-como-mercadorias-financeiras tinham apenas valor especulativo. O seguro tornou-o real e rentável. Isso era verdade no século 18 em Liverpool e permanece assim na Wall Street do século 21.

Do seguro por escravos às hipotecas

Desde então, a financeirização assumiu muitas formas, mas seus elementos básicos permanecem os mesmos. A financeirização – processo do capitalismo pelo qual todas as relações econômicas passam pela intermediação bancária – baseia-se em relações de poder desiguais que capturam obrigações individuais futuras e as tornam vendáveis. Os contratos subjacentes à crise de crédito de 2008, por exemplo, transformaram os pagamentos futuros de hipotecas em títulos financeiros negociáveis ​​com valor presente real.

Para aqueles que emitem os títulos, o lucro é isento de riscos. O risco era assumido predominantemente por americanos pobres, cujas classificações de crédito adversas e falta de habilidade financeira os tornavam uma presa fácil para os emissores de hipotecas construídas de modo a prendê-los à escravidão econômica. Essas pessoas eram – em sua grande maioria – negras, latinas ou migrantes.

O seguro desempenhou um papel aqui, solidificando o valor especulativo dos investimentos em benefício dos comerciantes. E, quando a bolha finalmente estourou, os governos intervieram para manter esse sistema: o Federal Reserve (Banco Central) dos EUA apoiou a gigantesca seguradora AIG no valor de US $ 182 bilhões (£ 139 bilhões), enquanto muitas pessoas perderam suas casas.

O resgate da crise de crédito é assustadoramente uma reminiscência de outro. Na época da abolição, a propriedade de escravos estava tão arraigada na sociedade britânica que o governo foi forçado a compensar os proprietários individuais pela perda de seu capital – isso exigiu um enorme empréstimo que os contribuintes só terminaram de pagar em 2015.

Não estou dizendo que os banqueiros hoje são como traficantes de escravos. Mas estou dizendo que as finanças contemporâneas ainda estão crivadas de regimes de dominação e exploração em ação.

Considere o filantrocapitalismo contemporâneo, em que as finanças buscam fazer o bem e, ao mesmo tempo, beneficiar os investidores. Novos instrumentos financeiros posicionam os problemas sociais como uma oportunidade de lucro. Os corpos de prisioneiros, por exemplo, são utilizados em esquemas para prevenir a reincidência com a reforma do caráter como gatilho para pagamentos de investimentos.

Esquemas como esse tornam os problemas sociais responsabilidade dos indivíduos e ignoram as relações estruturais de austeridade que estão por trás deles. O mercado financeiro ganha duas vezes: é elogiado por resolver os mesmos problemas que se beneficiou ao criar.

Cuidado com os financistas que trazem presentes. Empréstimos estudantis, títulos hipotecários, títulos de impacto social e até mesmo investimentos em biodiversidade – todos os rendimentos provenientes das atividades futuras capturadas de indivíduos relativamente impotentes trazem a sombra do comércio atlântico dos escravizados.

*Diretor da Escola de Administração da Universidade de Saint Andrews (Escócia)

(Tradução de Oscar Valporto)

The Conversation

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