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Sem direitos: mãe reconstitui morte de filho por tropas federais na Maré
Marcus Vinícius, de 14 anos, foi alvejado na favela com a camisa da escola. A cada 10 assassinatos por ano, 7 são contra negros
Marcus Vinícius, de 14 anos, foi alvejado na favela com a camisa da escola. A cada 10 assassinatos por ano, 7 são contra negros
(Com Fausto Salvadori) – “Quero conhecer a democracia e a justiça”, afirma Bruna Silva. Para ela, em todos os dias dos seus 36 anos de vida, sempre foram apenas palavras. Democracia. Justiça. Direitos. Tudo de se ouvir falar. Nada de se viver. Negra, mulher e favelada, Bruna faz parte da maioria de brasileiros a quem o acesso a algum direito básico sempre foi negado. Nascida em São João de Meriti, viveu a vida toda em uma favela, o Complexo da Maré, um dos maiores da cidade do Rio de Janeiro, na zona norte da capital fluminense. Sua mãe trabalhava de 15 em 15 dias como auxiliar de serviços gerais, a mesma função que Bruna seguiu. Como tinha de trabalhar, só pôde estudar até a terceira série do ensino fundamental. Seu marido é assistente de pedreiro e pai dos seus dois filhos, um menino e uma menina. O menino, Marcus Vinícius, é agora motivo de luta.
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A vida na comunidade sempre foi “um perrengue”, mas Bruna batalhava com gosto, pela alegria de ver os filhos crescerem ao seu lado. Até que, em 20 de julho de 2018, o mesmo Estado que já havia lhe negado tantos direitos determinou que seu filho Marcus Vinicius, aos 14 anos de idade, estava proibido de continuar a viver.
Marcus era estudante, flamenguista e praticava esportes. Estava se programando para começar a trabalhar e ajudar sua família quando “ficasse grande”, o que seria logo. “Meu filho estava todo bobo com o pouco de bigode que estava nascendo”, lembra Bruna. “Naquele momento, era eu quem dava tudo para eles. Meu filho sempre foi íntegro, estudioso, um grude comigo.” Do filho, Bruna guarda muitas lembranças gostosas, feitas de imagens, cores, cheiros: “A parte que eu mais gostava do corpo dele era a panturrilha”.
O menino cursava o sétimo ano da Escola Estadual Vicente Mariano, também na Maré, onde só tirava nota B. Ele vestia uma camiseta do colégio no dia em que foi baleado pelas forças da intervenção federal no Rio de Janeiro, comandadas pelo general do Exército Walter Souza Braga Netto. “Tudo que eu queria era vê-lo crescer, mas o Estado tirou isso de mim”, diz Bruna. “A polícia deveria ter abrigado meu filho e não matado ele, que estava com roupa de escola. O direito dele foi negado.” Marcus Vinícius simboliza nosso personagem sem direito à vida. Ele se soma aos outros sem direitos da nossa série de reportagens: sem direito à moradia adequada, à proteção social, à educação, ao saneamento e à internet.
O direito à vida aparece logo no começo no artigo 5º da Constituição Federal, um dos mais importantes do texto constitucional, por tratar dos direitos e deveres individuais e coletivos. Está lá: a “inviolabilidade do direito à vida” é direito de todos, “sem distinção de qualquer natureza”. A Constituição volta a mencionar o direito à vida em outros dois artigos, 227 e 230, ao afirmar que família, sociedade e Estado têm o dever de garantir esse direito a crianças, adolescentes, jovens e idosos.
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Veja o que já enviamosA inclusão desse direito na Carta Magna, em 1988, foi alvo de chacota por parte do deputado constituinte Roberto Campos (1917-2001), economista e ministro da ditadura militar. “Segundo a Constituição, os impostos são certos, mas há dúvidas quanto à morte, pois o texto garante aos idosos o direito à vida”, disse uma vez. E, em outra, acrescentou: “Lembrar-me-ei de impetrar um mandado de segurança contra o Criador se ele manifestar más intenções na próxima pneumonia”.
Os números revelam que, quando se trata de garantir o direito à vida, o Estado brasileiro tem se mostrado mais próximo das chacotas do economista liberal do que da solenidade do texto constitucional. Além de falhar em garantir a vida, o Estado é, muitas vezes, quem executa a morte. Em 2017, o Brasil registrou uma média de 175 assassinatos por dia, das quais 14 foram cometidas por policiais, segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública).
Morrer de morte matada, no Brasil, é para quem tem a pele preta. A cada 10 assassinatos praticados por ano, 7 são contra a população negra, conforme o Atlas da Violência, publicado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e FBSP. É como se brancos e negros vivessem em países diferentes: entre 2006 e 2016, o homicídio de mulheres negras aumentou 15%, enquanto o das demais mulheres não só deixou de subir, como ainda caiu 8%. Dos mortos pela violência policial, 76,2% são negros.
Marcus Vinícius foi uma dessas vítimas.
Naquele 20 de junho, uma quarta-feira, Vinicius passou na casa de um amigo para irem juntos à escola. Quando viram que já estavam atrasados para entrar na aula, os amigos decidiram voltar. Viram o helicóptero Águia da Polícia Militar rodando sobre os barracos, dando tiros. A Polícia Civil, com o apoio do Exército, realizava uma operação na favela, em busca de suspeitos pela morte do investigador Ellery de Ramos Lemos, ocorrida uma semana antes, na Favela de Acari.
Os dois meninos resolveram esperar um pouco até a situação se acalmar. Depois, foram juntos até a casa de Vinicius. “Eles saíram de onde estavam e caminharam até a minha rua. Meu filho foi morto na rua de casa”, conta Bruna.
“Quando estavam vindo, meu filho viu os blindados. Só que os policiais não estavam dentro, eles estavam a pé. Graças a Deus eu tenho uma testemunha que viu os policiais atirarem. Ela ainda perguntou, dentro da padaria, naquele momento, em quem eles estavam atirando. Mal sabia a moça que era no meu filho. O Estado ia matar duas crianças naquele dia. Meu filho e o amigo dele. Só que, por um movimento brusco, a bala pegou só no Vinicius”, relata Bruna.
A notícia chegou a Bruna por volta das 9h, quando ela se preparava para ir trabalhar. Um vizinho lhe contou que seu filho havia sido baleado. Bruna correu até a UPA (Unidade de Pronto-Atendimento) da Maré e encontrou o filho ainda lúcido, sobre a cama.
“Levei um tiro, mãe. A polícia não viu que eu era estudante?”, ouviu Vinícius perguntar.
“Os policiais dificultaram o socorro do meu filho, mandaram a ambulância voltar. Cheguei na UPA e meu filho pediu água. Disse para ele que tinha que ficar sem falar, como nos filmes: quando alguém se machuca não pode beber água. Meu filho precisou de quatro bolsas de sangue para estancar a hemorragia que sofreu”, relembra Bruna. Da UPA, o menino foi transferido para o Hospital Getúlio Vargas. Os tiros feriram Vinicius no baço, que teve de ser retirado.
Bruna deixou o hospital para buscar roupas para seu filho em casa. Ao voltar, recebeu a notícia da pior maneira. “Quando estava voltando, uma vizinha veio me abraçar falando que sentia muito. Foi aí que eu vi que o hospital soltou primeiro para a televisão do que para mim que meu filho tinha morrido. Isso é um descaso”, diz.
“A consequência disso é uma família dilacerada. Eu nunca pensei que meu filho fosse morrer desse jeito. Ele tinha 14 anos mas era um sujeito homem. De família, de caráter. Hoje, eu e minha casa somos tristes. Minha mãe se entrega em vida porque ajudou a criar ele. Aqui, se você olhar bem, não tem ninguém feliz“, declara Bruna.
Para a mãe de Vinicius, o Estado tirou a vida de um menino negro de 14 anos, de mochila e uniforme escolar, porque as favelas são um território sem direitos, onde democracia e justiça são só palavras. “A gente vive em um país onde não há democracia. Essa democracia que eles falam que existe eu não vejo acontecer para quem é da favela. Essa democracia é para a galera do asfalto, da Zona Sul. Nós, pobres, não temos direito”, diz.
O desrespeito massivo pelo direito à vida das populações pretas e pobres das periferias brasileiras não pode ser explicado como um desvio, uma prática isolada de “alguns maus policiais”, como os governos costumam argumentar. “Não é desvio, é projeto. A letalidade policial, assim como o encarceramento em massa, são parte de uma política genocida do Estado contra corpos desumanizados”, analisa a advogada, ativista e pesquisadora Dina Alves, coordenadora do Departamento de Justiça e Segurança Pública do Ibccrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais). Não há fato isolado capaz de dar conta de 14 mortes nas mãos da polícia todos os dias, nem de explicar por que os policiais miram tanto na pele negra. Para a pesquisadora, “o Estado brasileiro tem um projeto de nação de antinegritude porque nunca aceitou as populações negra e indígena como humanas”.
Dina afirma que, quando o disparo de um policial militar arranca a vida de um menino negro como Marcus Vinícius, a morte é apenas a culminação de um longo processo de desumanização a que esse menino foi submetido, “um processo que começa muito antes, o de negar a esse corpo uma série de direitos”.
As vítimas da necropolítica
Assim, a morte de Marcus Vinícius e tantos outros meninos negros fariam parte de uma típica ação da necropolítica – conceito do filósofo camaronense Achille Mbembe, que dá nome a um ensaio de 2003 (publicado como livro no Brasil em 2018, pela editora N-1). Mbembe, para quem “matar ou deixar viver constituem os limites da soberania”, afirma, em Necropolítica, que o racismo é uma tecnologia criada para garantir o direito soberano de matar, seja nas senzalas do período escravocrata, nos campos de concentração nazistas, no apartheid sul-africano ou na dominação israelense sobre a Palestina. “Na economia do poder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado”, afirma Mbembe. Ao negar a humanidade de determinados grupos, o racismo permite realizar todo tipo de violência contra esses corpos desumanizados – de espancamentos a massacres.
As forças da intervenção federal, segundo Bruna, buscavam “vingança” pela morte do investigador Ellery de Ramos Lemos, em Acari. “O Estado mata criança porque acha que criança da favela não estuda. Elas estudam, sim, e os pais dão um duro danado para criar os filhos aqui dentro. Moramos aqui porque não temos opção, somos pobres. Eles mataram meu filho por vingança. Derramaram sangue de uma criança inocente.”
Mortes de pessoas brancas são capazes de provocar cataclismas que mobilizam a mídia e os governantes, fazem os legisladores se movimentar a toque de caixa e provocam alterações até nos sistemas penal, prisional e socioeducativo. Em 1994, a morte da atriz Daniela Perez levou a uma mudança na Lei de Crimes Hediondos, que retirou a progressão de pena para os autores de homicídio qualificado. O assassinato da jovem Liana Friedenbach fez o governo de São Paulo construir, em 2006, uma Unidade Experimental de Saúde para abrigar o seu assassino, Roberto Aparecido Alves Cardoso, o Champinha, e o crime se tornou um símbolo para os que lutam pela redução da maioridade penal (embora o próprio pai de Liana seja contra a redução e reconheça que mortes como a de sua filha infelizmente são comuns: “Morrem ‘Lianas’ todos os dias, mas não são filhas da classe média”, já declarou). E, em 2015, a morte do médico Jaime Gold, assassinado a facadas enquanto pedalava pela Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, fez o governo carioca proibir o porte de armas brancas e criar um Sistema Estadual de Prevenção ao Roubo ou Furto e ao Comércio Ilegal de Bicicletas no Estado do Rio de Janeiro.
Quando os mortos têm a pele preta o impacto é muito diferente, mesmo que a vítima seja uma criança. As pessoas podem até comemorar. Foi o que fez um grupo de moradores do bairro rico do Morumbi, na zona sul de São Paulo, que, em 11 de junho de 2016, organizou uma marcha de agradecimento aos policiais militares que haviam atirado na cabeça de Ítalo Ferreira de Jesus Siqueira, um menino negro de 10 anos de idade.
Mesmo que não comemorem, as pessoas podem apenas ignorar. No Rio, a intervenção federal prosseguiu normalmente após a morte de Marcus Vinícius, como se nada tivesse acontecido. Na cerimônia em que celebrou o encerramento da intervenção, em 27 de dezembro do ano passado, o general interventor Walter Souza Braga Netto e o secretário de Segurança Pública fluminense, general Richard Fernandez Nunes, receberam uma medalha cada um e se cumprimentaram pelo trabalho bem feito.
Braga Netto disse que a intervenção “atingiu todos os objetivos propostos” e se gabou: “cumprimos a missão”. Tanta comemoração dizia respeito à diminuição nas ocorrências de roubo de carga, que, com a intervenção, diminuíram 14% em relação ao mesmo período do ano anterior, conforme o Observatório da Intervenção, coordenado pela faculdade Cândido Mendes. No que dizia respeito ao direito à vida, não havia tanto para celebrar: um recuo de 5,5% nos homicídios, acompanhado de um aumento de 40% no número de mortos pela polícia.
Ninguém mencionou o nome de Marcus Vinícius na cerimônia em que os dois generais receberam suas medalhas.
“A pergunta que eu é faço é: negro é gente? Soa como uma pergunta simples, mas é algo que devemos perguntar sempre. Negro é gente?”, provoca a pesquisadora Dina Alves. “Tudo isso me dá uma angústia muito grande. Quando a população negra vai às ruas reivindicar direitos civis, lutar por transporte público, água, saúde, todas essas bandeiras, até que ponto é um avanço, se nós ainda estamos numa luta para sermos reconhecidos como gente?”, pergunta.
Hoje, Bruna Silva se dedica a lutar para que os negros sejam aceitos como sua gente. Ela guarda até hoje o uniforme escolar de Marcus, uma camiseta branca, com as listras azuis da escola e uma mancha na altura do peito, de formato irregular e marrom: a cor do sangue quando seca. O uniforme manchado virou uma bandeira de luta que ela levanta aonde vai em sinal de protesto. “Eles ainda vão ouvir muito o nome do meu filho, Marcus Vinicius. A polícia não pode matar a gente assim, não. Nossos filhos têm voz”, promete.
“A minha dor virou luta. Eu estou denunciando tudo que a polícia faz aqui dentro da favela. Já trouxe o Ministério Público, que escutou mais de 500 histórias de moradores. Sou perseguida dentro do lugar que eu moro, não posso ir sozinha pegar ônibus porque estou sendo vigiada. Tenho que estar sempre com alguém. Mas isso não vai me parar, vou continuar pedindo para os moradores denunciarem abusos”, diz.
Se a camiseta ensanguentada do filho é sua bandeira, sua inspiração leva o nome da vereadora assassinada Marielle Franco. “Sou grata a Marielle Franco, que me ensinou o que é lutar pelos direitos humanos que nem uma leoa. A gente, para ter voz, tem que brigar.”
A luta de Bruna Silva, agora, é pelo filho que se foi e pela filha que ficou. “Eu luto para que, agora, minha única filha, tenha o direito de ir e vir. O que faltou ao irmão, naquele dia 20 de junho, ela tem que ter.”
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Jornalista com interesse em Direitos Humanos, Segurança Pública e Cultura. Já passou pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), Jornal O DIA e TV Bandeirantes. Como freelancer já colaborou com reportagens para Folha de São Paulo, Al Jazeera, Ponte Jornalismo, Agência Pública e The Intercept Brasil.