Italianos escravizados

Morte de Paola Clemente em um vinhedo agitou o país, mas quase nada mudou

Por Janaína Cesar | Sem categoria • Publicada em 11 de outubro de 2016 - 08:00 • Atualizada em 31 de março de 2020 - 15:52

Pesquisas indicam que 430 mil pessoas trabalham ilegalmente nos campos italianos. Destas, 80% são imigrantes. Foto de Riccardo De Luca

Pesquisas indicam que 430 mil pessoas trabalham ilegalmente nos campos italianos. Destas, 80% são imigrantes. Foto de Riccardo De Luca

Morte de Paola Clemente em um vinhedo agitou o país, mas quase nada mudou

Por Janaína Cesar | Sem categoria • Publicada em 11 de outubro de 2016 - 08:00 • Atualizada em 31 de março de 2020 - 15:52

Para todos valem as mesmas regras: nenhum direito garantido, 12 horas de trabalho diário e um pagamento 60% inferior ao estabelecido por lei. Foto de Riccardo De Luca
Para todos valem as mesmas regras: nenhum direito garantido, 12 horas de trabalho diário e um pagamento 60% inferior ao estabelecido por lei (Foto de Riccardo De Luca)

Na rede de exploração do trabalho agrícola, pouco importa se você é preto ou branco, imigrante ou nativo. A única coisa que conta é o lucro dos capatazes, dos mafiosos e dos produtores. A italiana Paola Clemente, de 49 anos de idade, entrou no jogo e morreu na rede da exploração. Após ter trabalhado um dia inteiro nos vinhedos puglieses por 2 euros a hora, caiu morta no chão.

Pesquisa feita pelo observatório Plácido Risoto revela que existem cerca de 80 zonas espalhadas por todo o país que praticam as mesmas regras de exploração do trabalho e que obrigam pessoas a viver em condições análogas à escravidão.

Paola virou mais um número na estatística governamental sobre a escravidão moderna. Segundo a pesquisa “Agromafie e caporalato “, realizada pelo observatório Plácido Risoto, existem pelo menos 80 zonas espalhadas por todo o país que praticam as mesmas regras de exploração do trabalho e que obrigam pessoas a viver em condições análogas à escravidão. Segundo a pesquisa, 430 mil pessoas trabalham ilegalmente nos campos italianos, destas, 100 mil vivem em condições de exploração e vulnerabilidade.  Do total, 80% são imigrantes.

Para todos valem as mesmas regras: nenhuma tutela e direito garantido, falta de contrato, 12 horas de trabalho diário, remuneração 60% inferior ao estabelecido por lei para trabalho no campo e tudo depende dos capatazes. São eles que estabelecem o valor do transporte, do aluguel da barraca, da comida e da garrafa de água. Não bastasse a exploração econômica, soma-se a violência física e psicológica, como a retenção de documentos.

Leia mais: “Milhares de imigrantes são escravizados“, “Cenas da escravidão do novo milênio” e “Projetos humanitários não oferecem ajuda

A única diferença entre os imigrantes e os italianos é que após um dia de exploração, o italiano volta para sua casa e o imigrante não. Estes últimos são invisíveis e vão viver nos guetos, em barracas de plástico e papelão, em condição de total abandono, às margens da sociedade.   Todos os guetos são ligados aos serviços de capatazes imigrantes e italianos, que dominam a gestão do trabalho. Se no passado eram os italianos que ocupavam o posto, com o fluxo imigratório, a presença de estrangeiros aumentou, e o mercado da informalidade se atualizou com o tempo. Hoje, os capatazes de imigrantes são imigrantes. Paola tinha um capataz branco, italiano como ela, mas isso não mudou em nada seu destino.

Pesquisas indicam que 430 mil pessoas trabalham ilegalmente nos campos italianos. Destas, 80% são imigrantes. Foto de Riccardo De Luca
Pesquisas indicam que 430 mil pessoas trabalham ilegalmente nos campos italianos. Destas, 80% são imigrantes (Foto de Riccardo De Luca)

Centro de Acolhimento

 Em Borgo Mezzanone – que fica próximo ao gueto de Rignano Garganico, na região da Puglia –  a alguns metros da praça central, fica o CARA — Centro de acolhimento criado em uma antiga base da Otan, que deveria funcionar durante o período de emergência do fluxo imigratório em direção ao país. Uma zona militarizada onde vivem 1400 pessoas à espera do tão sonhado visto humanitário.

Atrás do Centro existe outro gueto. Chamam-no de Pista, porque as barracas foram erguidas na pista do antigo aeroporto. É praticamente uma continuidade do CARA. Enquanto os imigrantes esperam pela documentação (visto humanitário), vivem no Centro. Com o documento em mãos, ganham a liberdade, mas sem dinheiro para nada, acabam indo morar no gueto. Da rua não dá para ser visto. Existem dois caminhos para entrar lá: atravessar um buraco feito na rede que fica nos fundos do próprio centro de acolhimento e que serve de ligação entre quem está fora e quem está dentro ou costear a zona militar e suas câmeras de segurança e entrar pelo lado oposto, graças a um pedaço de rede que foi tombado pelos imigrantes.

A Pista talvez seja o maior exemplo de que os guetos existem por conivência do Estado. As cerca de 500 pessoas que vivem lá têm eletricidade e água potável. E quando alguém adoece e precisa de cuidados médicos, basta atravessar o buraco na rede e ir ao ambulatório no interior do CARA. Tudo é sabido, mas não admitido oficialmente. “Tive um problema de coluna e precisei tomar injeção, um analgésico, fui lá dentro (no CARA) e a doutora me medicou”, diz Fatty Hydara Fanding, de 39 anos de idade, referindo-se às dores causadas pelo excesso de peso que carregou por um dia inteiro.

Durante a última semana de agosto Fatty não recolheu tomates, mas empilhou 170 caixas pesadas em um galpão. Ele preferiu se sentar por causa da dor e, enquanto caminhávamos em direção ao bar de um senhor marroquino aberto ali no gueto para tomarmos um gole de água, ele contava um pouco de sua vida. Vive há nove anos na Itália como refugiado, de fato, escapou do regime sanguinário de Gâmbia, de um governo autoritário que não sabe receber críticas, como as feitas por seu irmão, um famoso jornalista que foi assassinado pelas forças de repressão do país. Fatty escapou para não ser morto. Mas sua família ficou e isso o aterroriza. Quando consegue dinheiro, eles se encontram na Nigéria ou no Senegal, porque acredita que se colocar os pés em seu país será preso.

Atrás do bar, um grupo de jovens construía uma grande barraca com pedaços de madeira encontrados no centro de Mezzanone. “Aqui é assim, você chega e monta tua casa, não tem patrão”, referindo-se à suposta ausência de comando do gueto.

Casa Sankara

Apesar de a Itália caminhar a passos muito lentos em direção à uma legislação que condene penalmente quem trabalha exercendo a função de capataz — só em agosto passado o Senado aprovou um projeto de lei contra a o trabalho ilegal e a exploração dos trabalhadores rurais, que agora depende da votação na Câmara dos Deputados —, parece que após anos de conversas jogadas no ar, dessa vez o gueto de Rignano está com os dias contados.

O mural com o rosto de Thomas Sankara, revolucionário africano, em frente à sede da associação Ghetto Out. Foto de Riccardo De Luca
O mural com o rosto de Thomas Sankara, revolucionário africano, em frente à sede da associação Ghetto Out (Foto de Riccardo De Luca)

Se dependesse da vontade de Michele Emiliano, atual governador da região da Puglia, o grande gueto poderia ter sido destruído já no início deste ano. Em 24 de fevereiro, após ter se certificado que 90% da terra onde está o gueto é de propriedade da região, o governador denunciou a existência de trabalho análogo à escravidão. Em um post no Facebook, escreveu: “O futuro do gueto já está escrito, no outono será desmantelado, a terra vai ser recuperada e os poucos residentes que vivem lá durante todo o ano serão colocados em outro lugar. O plano está pronto, este é o último verão em que veremos a vergonha do gueto”.

Alguns imigrantes talvez sejam mandados para a fazenda Fortore, onde funciona o projeto experimental Casa Sankara, uma alternativa válida de inserção social para os que deixam a ilegalidade do gueto. Ali, o que conta é a liberdade e o direito a uma vida digna, longe da exploração. Em frente a um enorme mural com o rosto de Thomas Sankara, revolucionário africano, Hervè Latyr Faye, 49 anos, presidente da associação Ghetto Out, diz estar orgulhoso do trabalho que faz: “Temos orgulho de falar sobre isso, demos o passo para sair da ilegalidade e entrar na legalidade”.

No total, a região destinou ao projeto 20 hectares de terra produtivas por cinco anos e recuperou um estabelecimento que pode hospedar cerca de 60 pessoas. Tudo já está pronto, só aguardando o fechamento do gueto. Atualmente, 19 imigrantes vivem lá. São senegaleses, marroquinos, egípcios, de Benin e da Costa do Marfim. Lamine Ngueye, 46 anos, do Senegal, é um deles. Chegou a Puglia em 2012 e foi para o gueto porque indicaram aquele lugar. Disseram que havia trabalho. Ao ver o que o esperava, quis voltar para Turim, onde viveu um tempo, mas não tinha dinheiro para a viagem. Então ficou e morou em uma das barracas de plástico por alguns meses. Sujeitou-se aos serviços impostos dos capatazes e recebeu uma miséria pelo tempo trabalhado. “Pensava que tinha sido um erro vir para a Itália. Pretendia voltar para meu país”.

Sua vida mudou quando conheceu Hervè. Saiu do gueto e, apesar da vontade de voltar para seu país, escolheu ficar e lutar para ajudar outros imigrantes que passam pela mesma situação. “Fiz minha escolha, mas não foi fácil, recebi ameaças e agressões físicas. Mas não volto atrás. E não tenho medo. As pessoas devem assumir suas responsabilidades e caminhar. Não voltei para a África por causa de Hervè, um muro de tijolo inquebrável. Ele me deu forças para ingressar nessa luta e me fez acreditar que é possível sim viver em condição digna, mesmo trabalhando no campo.”

Janaína Cesar

Formada pela Universidade São Judas Tadeu (SP), trabalha há 17 anos como jornalista e vive há 15 na Itália, onde fez mestrado em imigração, na Universidade de Veneza. Escreve para Estadão, Opera Mundi, IstoÉ e alguns veículos italianos como GQ, Linkiesta e Il Giornale di Vicenza. Foi gerente de projetos da associação Il Quarto Ponte, uma ONG que trabalha com imigração.

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