#RioéRua: um passeio machadiano pela Gamboa

Estação Marítima da Gamboa: (hoje Vila Olímpica (Foto Oscar Valporto)

Pegadas e tropeços da história carioca no bairro onde nasceu o escritor

Por Oscar Valporto | ODS 11 • Publicada em 19 de junho de 2018 - 08:44 • Atualizada em 21 de junho de 2018 - 13:32

Estação Marítima da Gamboa: (hoje Vila Olímpica (Foto Oscar Valporto)
Estação Marítima da Gamboa: (hoje Vila Olímpica (Foto Oscar Valporto)
Estação Marítima da Gamboa: (hoje Vila Olímpica (Foto Oscar Valporto)

Ando atracado com Machado de Assis desde o começo do ano quando minha Telma começou a estudar “Machado”, livro de Silviano Santiago que trata, entre muitas coisas, dos últimos anos da vida do escritor. Como o livro é centrado entre 1905 e 1908, Silviano mergulha também nos derradeiros romances que – falha nossa – eu ainda não havia lido: “Esaú e Jacó” e “Memorial de Aires”. O Rio de Janeiro de Machado, nesses romances, vai do Centro, coração da capital do Império e da República, a Botafogo, onde moram os gêmeos protagonistas do primeiro livro, passando pelo Catete, onde mora o conselheiro Aires, personagem de ambos. Bentinho e Capitu se conheceram no Estácio e foram morar na Tijuca. Brás Cubas morreu em sua chácara no Catumbi. Os romances de Machado têm algo de #RioéRua: o bruxo do Cosme Velho – apelido popularizado por poema de Carlos Drummond de Andrade – viveu sempre no Rio, poucas vezes saiu da cidade, nunca viajou ao exterior.

Antes mesmo de terminar os dois romances machadianos, comprei a biografia escrita por Daniel Piza, atraído talvez pela proximidade do aniversário: Machado de Assis nasceu em junho, dia 21, 179 anos atrás. Na Livraria Folha Seca, na mesma Rua do Ouvidor onde funcionou um dia a Livraria Garnier onde Machado batia ponto, abri o livro atrás de referências da infância machadiana. Achei poucas: o escritor nasceu numa chácara do Morro do Livramento, entre os morros da Conceição e da Providência, e, na infância, teria até vendido balas na praia da Gamboa – uma daquelas praias da Baía de Guanabara que acabaram com a ampliação do porto nos primeiros anos do século XX, quando Machado já morava no Cosme Velho.

Moinho Fluminense, um dos prédios mais preservados da região (Foto Oscar Valporto)
Moinho Fluminense, um dos prédios mais preservados da região (Foto Oscar Valporto)

A Gamboa, após décadas de degradação, ganhou vida com o VLT atravessando suas ruas e a inauguração, primeiro, da Cidade do Samba e, depois, do AquaRio. Lembrei que Machado havia inspirado um bar, o Dom, que conheci com a minha andarilha amiga Valquíria, lá no bairro onde nascera: bom pretexto para pegar o bonde – também uma rotina do escritor para ir do Centro ao Cosme Velho um século e meio atrás. A viagem não começa bem porque descubro que o boteco fechou no começo do ano. Mas, na caminhada a partir da Praça da Harmonia, dá para imaginar que, caso tenha retornado à Gamboa depois de deixar o Morro do Livramento lá por volta de 1855, os olhos de Machado teriam visto algumas paisagens semelhantes.

Igreja de Nossa Senhora da Saúde
Igreja de Nossa Senhora da Saúde resiste ao tempo (Foto Oscar Valporto)

A Igreja de Nossa Senhora da Saúde, logo ao lado da estação Utopia/AquaRio do VLT, foi inicialmente uma capela à beira-mar, construída ainda no século XVIII, e reformada em 1898.  Logo ao lado, o Batalhão da PM na Praça da Harmonia foi concluído no ano da morte de Machado: 1908. Do outro lado da praça, está o mais bem conservado imóvel do conjunto de prédios do Moinho Fluminense, primeira fábrica de moagem de trigo do Brasil, inaugurada ali em 1887. As pernas do andarilho o levam ao Centro Cultural José Bonifácio, palacete fundado como escola por Dom Pedro II em 1877 – quem sabe Machado, que tanto admirava o Imperador, não foi convidado para a inauguração? Foi também Pedro II que inaugurou a Estação Marítima da Gamboa: seus dois galpões de 1880 fazem parte da Vila Olímpica, ao lado da Cidade do Samba. Dos tempos do jovem Machado, ainda resistem na Gamboa o Cemitério dos Ingleses – inaugurado ali em 1811 – e o Hospital Nossa Senhora da Saúde, mais conhecido como Hospital da Gamboa, escondido desde 1853 no alto do Morro da Gamboa.

Hospital dos Ingleses, sobras do mtempo de Machado (Foto Oscar Valporto)
Hospital dos Ingleses, sobras do mtempo de Machado (Foto Oscar Valporto)

Fica mais difícil achar vestígios dos tempos de Machado de Assis na Rua do Livramento, no pé do morro onde passou a infância com seu pai, bisneto de escravo, e sua mãe portuguesa dos Açores. Ao olhar para o alto do morro, nada da capela de Nossa Senhora do Livramento, onde Machado foi batizado, ou do palacete onde teria vivido o senador Bento, dono das terras onde vivia a família do escritor, empregados do lugar: só casas antigas descaracterizadas, casebres e uma horrível antena da Embratel. A antiga subida para o morro, nos tempos – meados do século XVIII – de Machado era pela Rua das Escadinhas, ou Becco das Escadinhas do Livramento, como está na placa que encontro no século XXI.  Subo um pouco mas não me arrisco mais – a Providência é logo ali e prefiro evitar perambular por essa vizinhança.

Painel de Nilton Bravo em risco na Gamboa (Foto Oscar Valporto)
Painel de Nilton Bravo no Café e Bar Sulista na Gamboa: sem dinheiro para restauração (Foto Oscar Valporto)

Retorno com fome à Praça da Harmonia para pegar o VLT de volta e acabo me abrigando num boteco que parece honesto e antigo – uma placa de patrimônio carioca lembra do bloco Coração das Meninas desfilava por ali. Entro só para descobrir, entre o honesto carré e a Brahma Extra bem gelada, que as paredes do Café e Bar Sulista ostentam duas pinturas – um tanto maltratadas – de Nilton Bravo, artista maior dos botequins cariocas. Era para ser um final feliz de um passeio pela história do Rio inspirado por Machado de Assis. Como,  nem tudo é perfeito, o proprietário informa que os painéis de Nilton Bravo eram três, mas um deles não resistiu ao tempo e a falta de dinheiro do boteco para restauração – patrimônio histórico ameaçado é um fantasma sempre a assombrar a memória carioca.

#RioéRua

 

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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