O declínio do Império Americano

Com democracia combalida, baixaria domina eleição nos EUA. País ainda perde poder no cenário internacional

Por José Eustáquio Diniz Alves | Artigo • Publicada em 18 de outubro de 2016 - 16:07 • Atualizada em 20 de outubro de 2016 - 00:48

Simbolo de Wall Street. Foto de Spencer Platt/ Getty Images North American
O touro, símbolo do poder de Wall Street, perde força em meio a uma crise econômica prolongada. Foto de Spencer Platt/ Getty Images North American

O poder e a grandeza dos Estados Unidos da América (EUA) estão na diversidade de sua composição demográfica, na liberdade, na busca pela igualdade, numa sociedade civil ativa e empreendedora, na ética do trabalho, na mobilidade social ascendente e no respeito às instituições democráticas, observou Alexis de Tocqueville, em 1835, no livro “Da democracia na América”.

Mas os EUA ainda eram um país escravocrata e com um Produto Interno Bruto (PIB) menor do que o da França e o do Reino Unido quando Abraham Lincoln foi eleito presidente, em 1861. Todavia, logo depois da Guerra Civil (1861-1865) e da conquista do Oeste, os EUA iniciaram uma corrida bem-sucedida para se tornarem a primeira potência econômica do mundo. Após a vitória na Segunda Guerra, a economia americana estava no auge e se manteve no topo do mundo nos chamados 30 anos gloriosos (1945-1974), período de grande geração de riqueza, com desconcentração da renda, melhora das contas do governo e aumento do bem-estar de uma enorme classe média.

Poder em queda livre

Mas o cenário favorável mudou e as condições econômicas, sociais e ambientais deixaram de trazer tantos benefícios nacionais, na medida em que crescia a concorrência internacional e a disputa por novos mercados. A economia americana representava cerca de 27% do PIB mundial em 1950, caiu para 22% em 1980, ficou em 15,8% em 2015 e deve cair a 14,6% em 2021. O PIB da China era de 2,3% em 1980, passou para 17% da economia global em 2015 e deve ficar em torno de 20% em 2021, segundo dados (em poder de paridade de compra) do Fundo Monetário Internacional. Portanto, a China já ultrapassou os EUA no volume da economia.

O quadro não é diferente no comércio mundial. O último ano no qual os EUA tiveram saldo positivo na balança comercial foi em 1975, quando as exportações americanas representavam 16% do total global. De lá para cá o déficit comercial tem atingido números consideráveis. No segundo governo George W. Bush, de 2005 a 2008, o déficit comercial dos EUA chegou a quase US$ 900 bilhões anuais e a participação das exportações americanas no comércio mundial caiu para 8% (metade da percentagem de 1975). Em 2015, penúltimo ano do governo Obama, o déficit comercial ficou em US$ 800 bilhões, o que deve se repetir em 2016.

A China – antípoda em termos geográfico e econômico – tinha uma participação de somente 1% no comércio internacional em 1950 e chegou a 14% em 2015. Até o final do século XX, o saldo comercial da China era próximo de zero, mas ultrapassou US$ 200 bilhões em 2007 e alcançou a impressionante cifra de US$ 600 bilhões em 2015. Nenhum país em nenhuma época conseguiu um superávit comercial tão grande. O bom desempenho econômico e comercial da China faz crescerem as pressões protecionistas nos Estados Unidos e as reclamações pela perda de postos de trabalho e pela diminuição da influência econômica, militar e cultural no mundo.

Ironicamente, os EUA perderam até o posto de maior poluidor global. Em 2012, a Pegada Ecológica dos EUA era de 2.610 bilhões de hectares globais (gha) para uma biocapacidade total de 1.194 bilhões de gha, um déficit de 120%. A Pegada Ecológica da China era de 4.759 bilhões de gha para uma biocapacidade total de 1.324 bilhões de gha, um déficit de 260%. Em 2014, as 2 emissões de dióxido de carbono dos EUA foram de 5.561 milhões de toneladas métricas (MtCO₂), enquanto na China foram de 9.680 milhões de MtCO₂.

Nas décadas de 1950 e 1960 a economia dos EUA crescia, em média, acima de 4% ao ano e manteve este desempenho até 1973. Com a crise do petróleo, o crescimento médio caiu para a casa dos 3% ao ano e estava aproximadamente nesse nível antes da crise de 2008. Porém, a recuperação recente (no governo Obama) tem ficado abaixo de 2% ao ano.

Crise sem fim

Consequentemente, o nível de emprego não se recupera no ritmo desejado. Embora as estatísticas do desemprego estejam baixas, o nível da ocupação não aumentou. A taxa de atividade – que mede o percentual de pessoas que fazem parte da população economicamente ativa – era de 67% no ano 2000, caiu para 66% antes da crise do banco Lehman Brothers (2008) e está em torno de 63%, o nível mais baixo das últimas 4 décadas. Esta situação tende a piorar em função do envelhecimento populacional (fim do bônus demográfico) e do grande número de pessoas da geração baby-boom (nascidos entre 1950 e 1965) que chega à idade de aposentadoria.

Mas o quadro se torna mais dramático quando os indicadores mostram que a crise no mercado de trabalho não é compensada por um aumento da produtividade. Entre 1947 e 1973, a produção por hora (a medida padrão de produtividade do trabalho) crescia a uma taxa anual de cerca de 3% ao ano, segundo dados do Bureau of Labor Statistics. Entre 1974 e 1995, a taxa caiu para 1,5% ao ano e, desde 2010, tem sido ainda menor, cerca de 0,5% ao ano. Nos doze meses encerrados em junho de 2016, a taxa de produtividade por hora foi negativa em 0,5%.

A diminuição da taxa de atividade e a queda da produtividade, como era de se esperar, provocam um aumento da pobreza. O número de pobres nos EUA passou de cerca de 32 milhões de pessoas, em 2000, para cerca de 47 milhões em 2014. Estudo recente da consultoria McKinsey constata que, entre 2005 e 2014, os rendimentos reais ficaram estáveis ou caíram para 81% das famílias americanas. Ou seja, houve um empobrecimento da classe média. O salário real de um trabalhador norte-americano hoje é menor do que era há 35 anos, embora o número de multimilionários tenha aumentado quatro vezes. O crescimento da economia, desde os anos 1980, tem beneficiado as pessoas do topo do 1% mais afluente, tornando os EUA o país mais desigual entre aqueles que fazem parte do restrito clube das nações mais ricas do mundo.

Para complicar ainda mais a situação, o baixo crescimento econômico, além de não gerar renda nem postos de trabalho na rapidez e na quantidade requeridas, não consegue gerar as receitas necessárias para pagar as despesas do governo. O déficit público previsto para 2016 é de 2,9% do PIB. Porém, a projeção é que o déficit público suba para 8,8% do PIB em 2046, pois as despesas com os programas de saúde, com a seguridade social e com a rolagem da dívida vão crescer consideravelmente, segundo projeções do Congressional Budget Office (CBO). A dívida pública dos EUA, que estava em torno 30% do PIB em meados da década de 1970, subiu para 80% do PIB atualmente e o CBO tem projeções que apontam para uma dívida que pode variar entre 93% e 196% do PIB em 2046, dependendo dos fatores  demográficos, do crescimento da força de trabalho, da produtividade, da taxa de juros, etc. O Comitê de Orçamento do Congresso (CBO) alerta aos políticos e aos partidos para levarem a sério estes números e para que sejam feitas propostas para evitar a falência da economia americana.

Democracia combalida

As eleições de 2016 seriam um bom momento para as candidaturas presidenciais discutirem os diagnósticos dos problemas americanos e para apresentarem alternativas para a recuperação da saúde econômica, social e ambiental do país. Mas a democracia americana também está doente. Por um lado, a sociedade está muito dividida e confrontada e, por outro, já não existem lideranças com a capacidade de mobilização e inspiração da nação como nas presidências de Thomas Jefferson (1801-1809), Abraham Lincoln (1861-1865) e Franklin Roosevelt (1933-1945).

Donald Trump e Hillary Clinton são os dois candidatos com os maiores níveis de rejeição da história americana. No início de outubro, o site Real Clear Politics mostrava Trump com taxa de aprovação de 37% e taxa de rejeição de 59%. Hillary com taxa de aprovação de 42% e de rejeição de 55%. Provavelmente, vencerá a alternativa menos rejeitada. Todavia, por incrível que pareça, a rejeição do Congresso é ainda maior, com taxa de aprovação de 12% e taxa de desaprovação de 78%. Portanto, a democracia americana está em crise e com déficit de legitimidade.

Diante de um evidente declínio relativo, o lema central da campanha de Trump é “Fazer a América Grande Novamente” (Make America Great Again). Ele não deixa claro o que isto significa. Se é voltar a ter mais de um quarto do PIB mundial; se é voltar a ser o maior exportador do mundo; se é alcançar o maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Ou será voltar aos tempos da Guerra do Vietnã, da ausência de direitos civis para os negros e do inconteste predomínio dos homens sobre as mulheres no mercado de trabalho e na educação?

Os Estados Unidos foram o bastião da democracia e da liberdade no século 20. Se elegerem Trump, um homem com atitudes fascistas para com as pessoas e o poder, o mundo seria transformado. Trump é misógino, racista e xenófobo. Alardeia com orgulho sua ignorância e incoerência. A verdade é qualquer coisa que lhe seja conveniente. Suas ideias políticas são ridículas, quando não horripilantes. No entanto, suas atitudes e ideias são menos perturbadoras do que seu caráter: ele é narcisista, gosta de intimidar, e difunde teorias da conspiração. É assustador considerar de que maneira um homem como ele poderia usar os poderes de que dispõe um presidente

O fato é que Donald Trump tenta capitalizar o sentimento de impotência e frustração do enorme segmento empobrecido da classe média dos EUA, que sonha com a volta da riqueza e do status de superpotência do passado. Para tanto, o candidato do Partido Republicano difunde intolerância e propostas populistas, usa palavras vulgares, se gaba de comportamento sexista e apela para os sentimentos mais mesquinhos do “instinto animal” do eleitorado, em especial, dos homens brancos com baixo nível de escolaridade, sua crucial base eleitoral.

Segundo Martin Wolf, o principal colunista econômico do jornal Financial Times: “Os Estados Unidos foram o bastião da democracia e da liberdade no século 20. Se elegerem Trump, um homem com atitudes fascistas para com as pessoas e o poder, o mundo seria transformado. Trump é misógino, racista e xenófobo. Alardeia com orgulho sua ignorância e incoerência. A verdade é qualquer coisa que lhe seja conveniente. Suas ideias políticas são ridículas, quando não horripilantes. No entanto, suas atitudes e ideias são menos perturbadoras do que seu caráter: ele é narcisista, gosta de intimidar, e difunde teorias da conspiração. É assustador considerar de que maneira um homem como ele poderia usar os poderes de que dispõe um presidente”.

Hillary Clinton é considerada, no momento, a pessoa com maior experiência política dos EUA e pode se tornar a primeira mulher a chegar ao comando da Casa Branca. Seria um grande avanço na situação de gênero. Porém, ela não é uma liderança carismática e é atacada em várias frentes: pelo uso de um servidor particular quando era Secretária de Estado, pela captação de recursos para a Fundação Clinton, por palestras milionárias para o banco Goldman Sachs e outras firmas de Wall Street, por falhas na segurança da embaixada americana em Benghazi na Líbia, por não ser sincera em relação ao seu estado de saúde, não ser confiável, etc. Enfim, Hillary é questionada pela direita, mas também pela esquerda que a identifica como parte do establishment democrata e de Washington e participante da elite dos 1% mais ricos do país.

As pesquisas de intenção de voto indicavam uma pequena margem a favor de Hillary Clinton, faltando um mês para as eleições de 8 de novembro. Mas a divulgação pelo jornal Washington Post de uma gravação com comentários obscenos sobre mulheres feitos há 11 anos pelo candidato Donald Trump, gerou uma crise interna no partido Republicano e catapultaram as chances de uma mulher se tornar “Comandante em Chefe”. Parece que o partido Democrata ruma para o terceiro mandato consecutivo na Casa Branca (fato inédito desde Roosevelt-Truman).

Todavia, o partido Republicano, na oposição ferrenha, pode continuar controlando as duas casas do Congresso. Assim, a divisão de poderes, que teoricamente significaria uma força da democracia, na prática ameaça paralisar o país. Por exemplo, depois da morte do juiz conservador da Suprema Corte, Antonin Scalia, o presidente Obama indicou o juiz Merrick Garland, considerado um liberal moderado, mas os senadores republicanos se recusaram a realizar as audiências para confirmar (ou negar) a indicação. O impasse político também se repete toda vez que é preciso elevar o teto da dívida pública.

Os EUA vivem uma disputa política anômica e paralisante. O antropólogo Peter Turchin, no recente livro “Idade da discórdia”, considera que a história dos EUA segue um padrão cíclico, com períodos de integração social (como no “New Deal”), seguido de momentos de desintegração, discórdia e violência (como na Guerra de Secessão). Para o autor, o aumento da pobreza, da desigualdade, dos fuzilamentos em massa, das ameaças ambientais, tem provocado muitas controvérsias e impasses.

Duelo versus discussão

Busto de Trump e Hillary, do artista do Sri Lanka, Upali Dias. Foto de Lakruwan Wanniarach/ AFP
Busto dos adversários Trump e Hillary feito pelo artista do Sri Lanka, Upali Dias. Foto de Lakruwan Wanniarach/ AFP

As eleições americanas não estão seguindo o padrão iluminista do império da razão e da inteligência, uma vez que tem predominado a irracionalidade do medo, da vingança e da raiva. As sociedades civil e política estão polarizadas e o dissenso tem vencido o consenso. Os escândalos sexuais abundam de ambos os lados (desculpem o sarcasmo!). Os debates presidenciais rancorosos parecem mais duelos, onde os ataques pessoais e os insultos suplantam a discussão de propostas programáticas consistentes, refletindo o estado atual da política americana. Tampouco os candidatos Gary Johnson, do partido Libertário e Jill Stein, do partido Verde, foram convidados para os confrontos televisionados.

O debate público poderia contribuir para salvar a economia, mas as forças políticas não se entendem. Tudo indica que a polarização e a intransigência que vigoraram nos oito anos da presidência de Barack Obama devem prosseguir no próximo mandato, em um momento em que os problemas reais se agravam e a produção de bens e serviços imbrica no caminho do baixo crescimento e da estagnação secular, como tem mostrado o ex-reitor de Harvard e ex-secretário do Tesouro, Larry Summers.

Para Thomas Friedman, renomado colunista do New York Times: “Seria uma insanidade colocar Donald Trump na Casa Branca”. Mas há a percepção de que a vitória de Hillary Clinton seria apenas a prevalência do mal menor, pois nenhum dos dois candidatos tem se colocado à altura dos desafios atuais dos EUA e do mundo.

Se Tocqueville voltasse aos Estados Unidos em pleno século XXI, provavelmente, ele não se surpreenderia tanto com o atual declínio relativo das condições materiais de vida, mas sim com a crise da democracia americana. Nenhum país tem condições de seguir em frente, se não existe uma maioria política sólida capaz de definir um rumo a ser seguido. E o mais grave é que isto seria absolutamente necessário para reverter as fraquezas internas e externas contemporâneas, pois, em termos de inclusão econômica, iniquidade social e  degradação ambiental, parece que os EUA estão marchando, incondicionalmente, na direção de um precipício.

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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